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O social e o cultural nas relações interfuncionais do desenvolvimento infantil

2 TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E SEUS PRESSUPOSTOS

2.3 O social e o cultural nas relações interfuncionais do desenvolvimento infantil

O desenvolvimento psicológico humano ocorre a partir da confluência entre o ser biológico e o seu meio – cultural, social e histórico. A base orgânica, ao entrar em contato com

11 É importante pontuar que o termo defeito tem seu tempo histórico e datado, pois era o utilizado à época do autor, início do século XX.

o meio em que está inserida, reestrutura-se como um todo e compõe uma formação psicofisiológica única (Vigotski, 2018b). Assim, o psiquismo se desenvolve a partir da reestruturação contínua de Funções Psicológicas – tal como o pensamento, a memória, atenção, etc. – (Vygotski, 2012), que se relacionam mutuamente e se transformam entre si. No decorrer dessa transformação, novos caminhos surgem por meio de uma ressubordinação interfunções, na qual algumas funções passam por uma situação de mais dominância em determinado período do desenvolvimento, mas, ainda assim, atuam o tempo todo em conjunto, dependendo umas das outras (Vigotski, 2018b).

Dessa forma, o desenvolvimento psicológico ocorre tal como em uma orquestra: mesmo que cada músico toque seu instrumento e desempenhe um papel individual, somente juntos formam o resultado. A peça que se escuta é não só a junção dos instrumentos, mas a transformação de todos os sons em um produto único e expressivo. Mesmo que um instrumento tenha um eventual destaque, estão a todo tempo atuando em unidade. Assim, a orquestra só é o que é a partir da relação de todos os instrumentos em conjunto. (Luria, 1981). E nesse movimento dialético e dinâmico entre as funções acontece o “caminho da reestruturação do sistema antigo e da sua transformação num novo sistema” (Vigotski, 2018b, p. 109). É importante destacar que o que existia antes não deixa de existir, apenas se reelabora, em unidade, para a nova – e única – neoformação12.

Esse Sistema Psicológico, conjunto de Funções Psíquicas que se relacionam em destaque e em conjunto (Vigotskib, 2018), é composto por Funções Psíquicas Elementares e Culturais13. As Funções Elementares – biológicas – convergem de forma dialética com Funções

12 A cada idade se forma um todo dinâmico que desempenha um papel específico em cada momento do desenvolvimento (Prestes, 2013).

13 Também denominadas Funções Psíquicas Inferiores e Superiores. Compreende-se que os conceitos anteriores passam uma ideia errônea de hierarquia e/ou dicotomia no processo de desenvolvimento, como se fosse fragmentado. A partir das leituras de Vigotski, e algumas vezes até citado pelo próprio, a pesquisadora entende que a melhor forma de as interpretar é denominando-as como biológica/elementar e cultural, sem desconsiderar a unidade e constante transformação entre si.

Psíquicas Culturais, tal como um rio que aflui ao mar. A atenção, por exemplo, que inicialmente é involuntária, a partir dessa intersecção biológico-cultural, transforma-se em atenção voluntária – ao mesmo tempo que a involuntária não deixa de existir. É importante observar que esse processo não se compõe de forma mecânica, a partir da soma do desenvolvimento de cada função de forma isolada, mas em interdependência. Todas as funções continuam se correlacionando e “em cada etapa etária, diferentes funções em distintos graus estão separadas da consciência como um todo e são diferenciadas internamente em diferentes graus (Vigotski, 2018b, p 101). As funções que ganham destaque em um determinado momento, se apoiam nas que antes estavam em dominância, mas não deixam de se correlacionarem, já que uma parte da outra, o que as mantém entrelaçadas.

Nesse processo, ocorrem alterações significativas da atividade da consciência, pois a partir dessa relação conjunta interfuncional, “a consciência em sua totalidade adquire uma estrutura nova” (Vigotski, 2018b, p. 102). Assim, cada função tem um papel essencial no desenvolvimento psíquico como um todo e, com isso, a personalidade vai se constituindo de forma única em cada pessoa. Logo, as funções se desenvolvem em todos os seres humanos inseridos na cultura, mas o “como”, a forma que vão se relacionar será única para cada indivíduo.

Dessa maneira, é necessário dar ênfase à complexidade do desenvolvimento psicológico e sua diversidade, além de o compreender como dinâmico, irregular e não linear. Também é importante entender que não ocorrem só evoluções, já que as involuções fazem parte desse processo. Portanto, desenvolver “significa, antes de tudo, mudança das relações, mudança da própria organização do sistema” (Vigotski, 2018b, p. 120) para a tomada de consciência. Desde o princípio, tudo é social, mas é no decorrer desse processo que o “eu” toma consciência desse mundo social e se desenvolve. Assim, o meio é parte integral nessa

transformação individual, sendo os seres humanos relações sociais neles mesmos (Vigotski, 2001).

No transcorrer desse processo de (re)organização psíquica, no qual o ser biológico transforma-se em humano a partir da cultura, vale ressaltar que sua estrutura biológica permanece, sobretudo, a partir das consequências dessa transformação. É possível dizer que “os rios da vida e do simbólico mesclam-se para dar origem a um novo rio que, sem perder suas características, torna-se uma forma diferente de vida” (Pino, 2018, p. 232). Ao considerar os “rios da vida” a natureza biológica, e o “simbólico” a criação social, conclui-se que o biológico-cultural confluem nessa unidade e “fundem-se, sem confundir-se, para constituir a vida humana” (Pino, 2018, p. 232, grifos do autor). Sendo assim, a partir da reorganização desse sistema como um todo e do aparecimento de novos traços, ocorre o que chamamos de desenvolvimento humano.

Ressalta-se que cada pessoa terá uma reestruturação psíquica única a partir da Lei Geral do Desenvolvimento, que considera o processo do desenvolvimento um só, e o que muda é o modo como cada um irá se desenvolver (Vygotski, 1997). Assim, no decorrer do desenvolvimento psicológico, novas particularidades surgem, sendo que, em “etapa14, a criança se apresenta como um ser qualitativamente específico” (Vigotski, 2018b, p. 30). Nesse processo “cada função, sistema e aspecto do desenvolvimento tem seu período ideal e mais intenso” (Vigotski, 2018b, p 104). Sendo assim, de forma didática, em um momento predomina a percepção, em um outro a memória, atenção, etc. Apesar disso, não é correto dizer que elas surgem de forma repentina e isoladas, pois, como dito anteriormente, elas se relacionam entre si dependendo uma da outra.

14 O termo etapa não considera o desenvolvimento mecanicista e/ou estático para cada idade específica, mas sim como parte de um processo complexo que se mantém constantemente em dinamismo. Os períodos de desenvolvimento para Vigotski levam em consideração a intersecção biológico e social, uma unidade pessoa-mundo (Vigotski, 2018).

Portanto, essas funções se entrelaçam no constante movimento entre elas. Tal como uma dança, ora predomina no desenvolvimento a percepção, ora a percepção e memória, ora o pensamento, e assim por diante. No transcorrer do processo, transformam-se entre si e em suas configurações predominantes do todo, mas mantêm a unidade e o movimento. O conjunto de funções que se relacionam interconectadas se torna complexos sistemas psicológicos (Vigotski, 1999). Observa-se, assim, que “em cada etapa do desenvolvimento há uma neoformação central que parece guiar todo o desenvolvimento e é responsável pela reestruturação de toda a personalidade da criança” (Prestes, 2013, p. 302). Nesse sentido, apesar de muitas vezes identificada como uma função, defende-se, aqui, a imaginação como um desses Sistemas Psicológicos fundamentais para o desenvolvimento como um todo, que ganha importante destaque na primeira infância.

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