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3 OS PROCESSOS CRIADORES DA CRIANÇA COM AUTISMO: DO BRINCAR AOS BRINQUEDOS

3.1 Revistando o estudo de Kanner: um foco para além das limitações

Apesar da conclusão final de que existia uma deficiência inata e biológica nas crianças com autismo, Kanner (1943) descreve, em seu estudo, que a maioria dos casos obteve um progresso significativo no desenvolvimento, com o decorrer dos anos. Observa, ainda, que identificou nas famílias um modo diferente de se relacionar com essas crianças. Ao mesmo tempo que os responsáveis percebiam o isolamento social como o pilar principal das dificuldades de seus filhos, percebiam também a facilidade dessas crianças em memorizar nomes. Assim, passavam a interagir com essas crianças, orientando-as a desenvolverem a memória, pois a identificavam como uma habilidade entre tantas limitações. Apesar disso, como desenvolviam a memória apenas como um exercício, as palavras acabavam por não ter valor semântico, o que desfavorecia a comunicação social. Outro dado intrigante é que aquelas crianças descritas sem desenvolvimento da fala foram vistas formando palavras com os lábios, em silêncio, além de algumas palavras soltas em voz alta, o que o autor sugere ser uma possibilidade de que apenas não tivessem interesse em desenvolver a fala (Kanner, 1943).

Outro ponto importante observado nas descrições dos casos, é que se identificou um déficit significativo na compreensão de conceitos e uma inflexibilidade de pensamento, em que tudo parecia ter sentido literal, dificultando a comunicação. Alguns falavam em 3a pessoa, mas apenas porque pareciam repetir, inclusive em sua entonação, algo que haviam escutado. O estudo descreve, ainda, que esta característica durava, mais ou menos, até os 6 anos. Também observou que intrusões do mundo externo, em geral, pareciam ser incômodas, desde os

momentos de alimentação, aos barulhos externos. Frisou que não parecia ser o barulho em si que incomodavam as crianças, tendo em vista que podiam produzir barulhos próprios em altíssimo som, mas sim aqueles que interrompiam seu isolamento. Nesse sentido, acabavam por demonstrar uma limitação na variedade de atividades, o que fazia com o que o cotidiano se tornasse rígido e sistemático, de forma quase obsessiva (Kanner, 1943).

Apesar de todos esses pontos que, inclusive, se assemelham com a forma como o espectro é caracterizado ainda nos dias atuais (tanto nos manuais, como nos estudos da neuropsicologia), é interessante observar que o autor identificou que todas as crianças – em unanimidade – brincavam, porém de uma forma descrita como rígida (Kanner, 1943). Nesse sentido, as 11 crianças descritas demonstravam um interesse específico em coisas que não se modificavam, inanimadas, tais como os objetos. Dessa forma, todas elas foram caracterizadas com um interesse maior por objetos do que pelas relações humanas, o que as levava, segundo o autor, por diversas vezes, a usarem partes do corpo de pessoas de seu convívio apenas como um instrumento. Além disso, observou-se que entre pares não brincavam, mas podiam ficar por horas brincando com objetos, inclusive em um espaço com outras crianças, sem manter contato social. E mesmo sem o contato físico, demonstravam, em alguns casos, memorizar o nome dos colegas e características físicas destes. Outro ponto descrito é que se identificou que algumas crianças tinham interesses por pessoas apenas em fotos, nas quais estavam estáticas, além de não entenderem a diferença entre o real e a representação (a foto), mesmo que não apresentasse nenhum déficit cognitivo (Kanner, 1943).

Por fim, no artigo foi descrito que havia um fechamento para o que era externo desde o “início” – apesar de todas as crianças estarem com 4 anos em diante, Kanner (1943) pontua que traz essa informação dos relatos de familiares –, o que se desencadeava em incapacidade nas relações sociais, embora houvesse boa relação com os objetos, que são, por sua vez, artefatos culturais construídos por pessoas. O autor descreveu que os comportamentos

pareciam ser apenas uma reprodução de um hábito obsessivo, que resultava em uma dificuldade de adaptação a mudanças, além de uma capacidade mnésica desprovida de significado. Ainda assim, enfatiza, em seu estudo, que 10 dos 11 casos demonstraram progressos no desenvolvimento de forma significativa, mesmo com um atraso, se comparado ao padrão socialmente construído e considerando seus diferentes níveis de comprometimento (Kanner, 1943).

Dessa forma, Kanner (1943) especificou que entre os 5 e 6 anos, as crianças que observou abandonaram a ecolalia e se apropriaram melhor da comunicação social. Assim como identificou que entre os 6 e 8 anos, elas começaram a brincar em grupos, mesmo que ainda de forma periférica. Ademais, observou que as crianças que tiveram mediação, estiveram em escolas e contato com pares, desenvolveram-se mais, inclusive obtendo trabalho quando chegavam à vida adulta (Kanner, 1943). Apesar disso, finaliza dizendo que “estas crianças vieram ao mundo com uma incapacidade inata de estabelecer o contato afetivo habitual com as pessoas, biologicamente previsto, exatamente como outras crianças veem ao mundo com deficiência física inata ou intelectual” (Kanner, 1943, p. 250, tradução e grifos meus).

Sendo assim, percebe-se a contradição: pontuam-se as limitações, porém observam-se também os progressos significativos, especialmente quando essas crianças tinham acesso a espaços coletivos com pares de desenvolvimento. E, ainda assim, conclui-se acerca de uma “incapacidade inata” e questões “biologicamente previstas” (Kanner, 1943). Dessa forma, mesmo com as possibilidades descritas desde aquela época, a ênfase se direciona aos déficits, que, por sua vez, são produtores de estigmas. Assim, a conclusão recai sobre a limitação. Sem pensar na criança de forma integral, há uma fragmentação do seu desenvolvimento, pois se desconsidera todo seu potencial através do meio social. Nesse sentido, é preciso ir no caminho ao contrário, os caminhos para além do que se vê. Para além do déficit, quais são as possibilidades da criança com autismo?

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