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A caminho da comunidade: a observação no Centro Comunitário

4 METODO

4.2 A caminho da comunidade: a observação no Centro Comunitário

Toma-se a comunidade como eixo norteador dessa pesquisa. É por meio dela que se discute a saúde e as práticas corporais. Para não perder esse referencial de vista, a condução da pesquisa teve como guia a seguinte pergunta: O que a comunidade nos apresenta e ensina para repensar e enriquecer nossos referencias teórico-práticos sobre a saúde e as práticas corporais? Esta foi a segunda etapa da investigação e aqui se lançou mão da observação como técnica de pesquisa.

35 Primeiro foram realizadas duas tentativas via correio eletrônico, como sugerido pela gerência. Como não

houve retorno, tentei fazer contato pessoalmente nos dias em que estava na UBS para realizar as entrevistas com as outras profissionais, mas também não foi possível (atendimento externo). Depois, pedi confirmação do endereço eletrônico com a gerência e realizei a última tentativa via e-mail, também sem retorno.

As observações foram realizadas no “Centro Comunitário Raposo Tavares”36 que se localiza dentro do território da equipe branca, durante encontros/reuniões ou atividades oferecidas de modo regular após, primeiramente, a autorização da administradora/secretária do Centro Comunitário e, posteriormente, de cada responsável pelas atividades/grupos. Antes do contato com a administradora, também conversei, por intermédio de uma agente da equipe branca e moradora da COHAB, com a “zeladora”, que mora com o marido e dois filhos em uma das salas do centro. Foi ela quem me orientou, inicialmente, sobre quais atividades eram oferecidas. Foi também esta agente que me apresentou à administradora.

O período de observação foi definido de acordo com a frequência com que as atividades aconteciam (semanais ou quinzenais), assim como com os limites de acesso da pesquisadora. O intuito foi acompanhar as atividades por um período que possibilitasse maior familiarização com o espaço e os grupos. Como a estratégia para mediar a entrada da pesquisadora no campo se daria por meio dos profissionais da UBS, os contatos com a coordenadora da equipe branca foram retomados logo após a realização do exame de qualificação em julho de 2011. No entanto, as atividades estavam interrompidas no Centro Comunitário devido ao período de férias. Por isso, as observações tiveram início em agosto de 2011 quando os grupos da equipe branca no Centro Comunitário foram retomados. A partir daí, conheci as outras atividades oferecidas no local que foram acompanhadas a partir do momento em que os contatos e as autorizações foram estabelecidos. Elas se estenderam até dezembro de 2011, quando o último grupo em atividade entrou em férias.

É preciso considerar que se o tempo de observação não foi maior em número de meses ele foi intenso do ponto de vista da frequência com que a pesquisadora esteve presente na comunidade, em média quatro vezes por semana, em períodos diferentes de acordo com o oferecimento das atividades. Além disso, também foram observados, de modo menos frequente, espaços fora do Centro Comunitário, mas que faziam parte da área da COHAB: a quadra, a praça e o parque. Para o registro das observações utilizou-se, inicialmente, um diário de campo37. As anotações eram feitas de modo mais objetivo em um caderno durante

36 Trata-se do Centro Comunitário da COHAB da área branca. De acordo com a entrevista da coordenadora, ele

abriga atividades da sua equipe e também da equipe vermelha; tem uma administradora e oferece outras atividades não ligadas à UBS, como aulas de Judô, distribuição de leite e de cestas básicas. Ela conta também que esse Centro Comunitário é uma referência para a população e foi construído com apoio de uma igreja católica em um terreno que havia ao seu lado “cedido” pela prefeitura.

37 O Diário de Campo agrega os registros escritos sobre as observações realizadas na pesquisa. De acordo com

Minayo (2007), ele é como um caderno de notas que acompanha diariamente o investigador para registrar os dados que observa, como impressões e sensações pessoais e suas modificações com o tempo, conversas informais, comportamentos. Becker (1999) sugere que as anotações sejam realizadas o mais breve possível após a observação e que descrevam as situações, as conversações, a relação das pessoas entre e si com o espaço, o mais detalhadamente possível.

ou logo após as observações. Posteriormente, os dados eram desenvolvidos e acrescidos de outros detalhes por meio da elaboração de relatórios digitais.

Tinha-se como pressuposto da observação conseguir uma aproximação com a comunidade sem “alterar” seu cotidiano, para observar os grupos e as relações que se dão em seu meio. Entretanto, é preciso considerar que não é possível preservar o ambiente totalmente inalterado com a nossa presença, condição que pede equilíbrio entre aproximação e distanciamento. Isso porque em algumas situações o pesquisador só poderá perceber elementos importantes se houver condições mínimas de confiança e aceitação deste pelo grupo. Sendo assim, um suposto distanciamento para não interferir no meio pesquisado pode tornar-se fator de retraimento dos sujeitos.

Nas palavras de Martins (2009), “é uma ingenuidade imaginar que o pesquisador possa se tornar participante de grupos cuja situação social exacerba seus critérios de alteridade e torna precisa a linha que neles separa o nós e os outros” (p. 16). Justifica sua posição de recusar os pressupostos positivistas de neutralidade no relacionamento entre pesquisador e as populações estudadas, pois nas situações de conflito – como é o caso das fronteiras entre a dominação da sociedade “civilizada” brasileira e os territórios indígenas ou entre os grandes proprietários de terra e os camponeses estudados pelo autor – esse distanciamento pode impedir que os atores principais revelem os dados mais importantes.

Quando o intuito é apreender a realidade da perspectiva dos sujeitos e seu grupo, com seus valores, representações e modos de ser, a relação com o pesquisador é fundamental para que se propicie uma abertura, na medida do possível, minimizando as desconfianças entre pesquisador e o sujeito da pesquisa. Além disso, uma compreensão mais fecunda desses dados só será possível por meio da aproximação do contexto real vivido por essas pessoas. Desse modo, a realização das observações sugere um cuidado particular, um trabalho paciente, sem prescindir de uma postura ética em relação aos participantes, no sentido do respeito ao seu tempo, a sua história, ao seu ambiente, a sua linguagem, independente do seu envolvimento ser mais ou menos direto com a pesquisa.

Oliveira (2006), em estudo sobre a cultura solidária em cooperativas populares, conta que durante a pesquisa seu esforço esteve voltado para alcançar a confiança das pessoas. Foi fundamental expor claramente o significado da sua presença e da necessidade de acompanhá-las, para, depois, fortalecer aos poucos a nova interação por meio do tempo e da convivência. Lembra que a aceitação inicial dos sujeitos em receber o pesquisador não significa que ele seja merecedor de confiança, condição necessária para que as pessoas se sintam encorajadas a manifestar francamente seus modos de ser. Assim,

[...] o pesquisador precisa continuamente criar ‘laços’ que podem consolidar essa aproximação, sincera entre ambos, de maneira que as falas e as observações sejam mais leves e autênticas, destituídas de medos e superficialidade que, na ausência de confiança, podem conduzir tantos as falas como as atitudes (OLIVEIRA, 2006, p. 15).

No entanto, isso não é pressuposto na relação entre os sujeitos envolvidos com a pesquisa e também não é fácil de construir. Segundo Bosi (2004), às vezes, falta ao pesquisador maturidade afetiva ou mesmo formação histórica para compreender a maneira de ser dos sujeitos. Neste caso, sobressaem-se as representações individuais. Por outro lado, a autora sugere que tal limitação pode ser superada à medida que o pesquisador permite-se entrar no ritmo da pesquisa.

O desafio, portanto, está em minimizar ao máximo essa distância, uma vez que não se pode apagá-la. O exemplo extremo e comovente dessa tentativa de aproximação com a realidade vivida é encontrado na trabalho de Simone Weil (1996). Segundo a autora, “um homem de talento pode, graças às narrativas e com o exercício da imaginação, adivinhar e descrever até certo ponto, de fora [...]. Mas não vai muito longe”. Na sua perspectiva, é preciso estar mais próximo da condição do outro: “como abolir um mal sem ter percebido com clareza em que ele consiste?” (p. 154).

Assim, Weil (1996) se propôs a situar o problema da condição operária por meio do resultado de seu contato direto com a vida da fábrica. Dessa forma, encontramos em seu texto observações “sensoriais” em relação à sua experiência. Nas suas palavras está mais do que o problema do trabalho fabril, da exploração do operário, nelas estão cansaço, frio, dor, desgosto, indiferença e “servidão”. Estão também constatações que só puderam vir à tona mediante seu desprendimento de viver na pele a condição operária38. Como ele constatou que o trabalho na fábrica se refletia na vida das pessoas além do cansaço físico, ele trazia também o impedimento do pensamento, da criação, da tomada de consciência de uma situação, minando a busca por mudança.

As suas observações mostram a importância de estar próximo e sensível à condição do outro, para compreendermos mais claramente o que pode estar movendo ou não

38 É outro exemplo a contrariedade que se estabelecia entre o operário e as situações que introduziam mudanças

no trabalho. Admitia-se que eles não sofriam com a repetição e a monotonia do trabalho, pois se notava que, muitas vezes, uma mudança de fabricação causava contrariedade. Weil consegue dar outra perspectiva dessa situação: “A mudança produz o alívio e, ao mesmo tempo, contrariedade; contrariedade às vezes forte, no caso de trabalho por peças, por causa da redução do ganho [...]. Mas, mesmo que o trabalho seja pago por hora, há contrariedade, irritação, por causa da maneira pela qual é ordenada a mudança. O novo trabalho é imposto de repente, sem preparação, sob a forma de ordem à qual é preciso obedecer sem réplica” (p. 155). Então, o que traz contrariedade não é a mudança, a diminuição da monotonia, mas a maneira como ela é imposta. Sem o seu envolvimento, provavelmente ficaríamos apenas com interpretação limitada e tendenciosa dessa situação, perderíamos as sutilezas que escapam da nossa compreensão imediatista.

suas atitudes. Desse modo, além de uma descrição marcante e real do operário e da fábrica, o trabalho de Weil (1996) remete também a uma questão metodológica. O seu desprendimento de viver dia-a-dia com aqueles e com a situação com a qual se queria entender mostrou que algumas coisas só podem ser percebidas, além do que é superficial, ou do que é esperado por opiniões pré-determinadas, se estivermos de fato envolvidos com o universo que pesquisamos. Em uma perspectiva bem mais humilde, me perguntei: Como compreender o que é uma comunidade e como ela se relaciona/lida com a saúde e as práticas corporais sem conhecê-la? Sem estar perto das pessoas que lá vivem, das relações que se estabelecem em seu meio, das suas condições de vida?

Fica no exemplo de Weil (1996), também como ser humano39, a abordagem profunda e cuidadosa de seu estudo, que nos sugere um respeito autêntico não só pelas pessoas que pesquisamos, mas pela condição que têm na fábrica, na comunidade, na vida. E que essa postura não nos afasta ou “contamina” nossos dados, pelo contrário, pode trazer aos olhos aquilo que está por trás do aparente, onde o que de mais significativo está.

O trabalho de Bosi (2000) também é fundamento nessa direção. Orienta desde os cuidados na condução do período de observação e contato com os sujeitos, até o modo de direcionar perguntas, no sentido de conseguir clareza e maior proximidade com aquilo que de fato se quer investigar. Em “Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias”, Bosi (2000) nos lembra que

qualquer pesquisa sobre a leitura em meios operários se arriscará a ficar na mera constatação de que a indústria cultural provê o único alimento dos sujeitos considerados, a não ser que o pesquisador tente ir além da pergunta ‘o que lê uma operária?’, e indagar das potencialidades realizáveis nos entrevistados (o que gostaria de ler uma operária?) (p. 92).

Antes de determinar a priori é preciso relacionar os hábitos com as aspirações declaradas para verificar com objetividade a hipótese citada, pela qual a leitura mais procurada pelas operárias responde principalmente a tendências compensatórias, evasivas e gratificadoras. Nas palavras da autora: “a comparação entre o certo e o provável dá uma complexidade nova à sondagem e evita que se tome o factual pela fatal” (BOSI, 2000, p. 93).

Oliveira (1999), em seu livro “Vidas Compartilhadas: cultura e co-educação de gerações na vida cotidiana”, descreve os caminhos metodológicos utilizados na pesquisa sobre o universo cultural na vida cotidiana, e chama a atenção para o distanciamento entre pesquisador e pesquisado que pode surgir da aplicação de técnicas que buscam o total

39 A esse respeito ver o texto Simone Weil. In: BOSI, E. (Org.). Simone Weil: a condição operária e outros

estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

controle do objeto e que acabam gerando “[...] o esvaziamento da percepção em cada um de nós acerca dos homens, das coisas e do mundo” (p. 50).

Neste sentido, no caso da observação, é necessário não trabalhar apenas com o que é aparente, mas “[...] ensejar um reencontro do movimento e nele divisar contradições, acordes que dão ritmo a vida social”, e mais: “ceder ao convite para perceber sempre de novo, trabalho saliente e infinito [...]” (OLIVEIRA, 1999, p. 51). Isso é relevante porque, ao nos depararmos com o novo, os estímulos são muitos e nossos sentidos podem ficar “confusos”. De acordo com nossa atenção, aos poucos as coisas vão se tornando mais claras e constituem um sentido. É o trabalho perceptivo que colhe as determinações do real, as quais se tornam estáveis para o nosso reconhecimento por um tempo determinado (BOSI, 2004).

Assim, nas observações, é na dinâmica social que se dá o tempo que propicia a abertura para significar os acontecimentos, para encontrar o momento “maduro” para realizar aproximações, buscar compreensões mais profundas. Tempo que pode nos deixar um pouco mais distante da esfera do “Eles”. Algo que foi amenizado com a convivência que fui estabelecendo com as pessoas que frequentavam o Centro Comunitário. Foi com o tempo que o receio de fazer os primeiros contatos e de ter ou não a aceitação de cada grupo foi substituído pelas conversas, pelas trocas de informações e histórias, pelos cumprimentos quando andava na rua, pelos convites para participar de comemorações e eventos. É preciso estar consciente dessa outra temporalidade, que não é a do relógio ou do interesse imediatista do pesquisador. Na verdade, um desafio que inclui outros elementos da vida do grupo que queremos observar inclui a condição do outro.

4.3 Desafio posto: a comunidade como referência para pensar o trabalho em saúde e as