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6 A COMUNIDADE COHAB RAPOSO TAVARES – FASE II

6.2 As práticas corporais na comunidade

6.2.1 Atividades formais

Foram consideradas formais as atividades com práticas corporais que eram oferecidas no Centro Comunitário e na ETEC (pois cedeu espaço para dois grupos que eram originalmente desenvolvidos no Centro Comunitário) com dias e horários fixos sob a responsabilidade de um profissional, sendo: o Judô, o grupo Corporal e o de Capoeira.

As aulas de Judô aconteciam60 no salão do Centro Comunitário de segunda e quarta-feira, com turmas pela manhã e também pela tarde, no total de quatro turmas. O projeto é uma parceria entre o Centro Comunitário e o Instituo Aurélio Miguel. Gilmar, o professor, explicou que não há vínculos com a prefeitura, pois quem mantém a atividade é o Instituto, inclusive com quimonos, tatames e pagamento do profissional. A participação é aberta a toda a comunidade. Há uma certa divisão das turmas por níveis, mas não com um

60 No retorno que fiz entre março e maio de 2012 para planejar uma devolutiva para o Centro Comunitário, as

aulas tinham sido remanejadas para outros dias e horários, abrindo uma nova turma também de sábado de manhã.

critério rígido. Foi possível presenciar situações em que alunos participavam de duas turmas, precisavam mudar de horário devido a compromissos ou para melhorar a participação e também a própria mistura de níveis de faixas e de idade entre alunos de uma mesma turma. Foram observadas as aulas de quarta-feira à tarde sistematicamente e de segunda de manhã e tarde de modo menos frequente.

As turmas têm uma boa participação, especialmente nos níveis mais iniciais. Cheguei a observar aulas com variação entre quatro a dezoito alunos, de diferentes faixas etárias, conforme o dia. A maioria dos alunos chegava ao Centro Comunitário sozinha ou com um colega, diferente do que presenciamos em academias e clubes, pois ali não havia um movimento de carros e de pais deixando seus filhos para mais uma atividade do dia, ou mesmo a preocupação de que algo poderia acontecer... Uma criança ir sozinha ao Centro Comunitário não representa um risco, pois está no seu “território”.

Nas primeiras turmas, onde estão os mais novos, o professor sempre procedia recebendo-os no salão comunitário, deixando um momento livre. As crianças brincavam entre si, às vezes o professor fornecia uma bola, em outras eles se organizavam para ver o que iam fazer, e muitas vezes as brincadeiras mais pareciam “brigas”, mas ao sinal de início da aula eram interrompidas para “formar” o posicionamento já trabalhado pelo professor.

As atividades incluíam exercícios de aquecimento, exercícios específicos de defesa e ataque, e outros em que, por meio de atividades lúdicas, eram postos em situações que simulavam o momento da luta em si. Havia também atividades e exercícios que objetivavam trabalhar habilidades e capacidades específicas, como força, flexibilidade, coordenação e algo muito destacado por Gilmar, que era o raciocínio e a capacidade de pensar e analisar a situação para tomar a decisão de como “encaixar” ou “se livrar” de um golpe.

O professor também procurava perceber o ritmo da turma. Por exemplo, em um dia os alunos estavam muito agitados, então ele terminou a aula deixando-os na posição deitada e orientou dizendo que estavam livres para gritar o quanto quisessem, bater braços e pernas com força no tatame, para extravasarem. No final estavam cansados e o que no começo parecia a maior farra para eles, foi espontaneamente sendo posto de lado, a exaustão levou-os à calma de novo. Ou nos dias mais quentes, a intensidade dos exercícios era diminuída; ou ainda trabalhava com mais atividades lúdicas à medida que se aproximava o período de férias. Um recurso muito utilizado pelo professor era trabalhar de modo que os alunos com maior graduação de faixa auxiliassem os outros, tanto em exercícios específicos como em situações de combate. Algo que aconteceu praticamente em todas as aulas. Os alunos não encaravam essa situação como “estar em desvantagem”, compreendiam que nessa condição

aprendiam com o outro colega ao mesmo tempo em que podiam melhorar seu desempenho, uma vez que eram postos em uma situação em que “não haveria moleza”. Algumas vezes a situação era vista como engraçada, pois havia uma diferença muito grande de idade e altura entre os alunos, nesses casos os mais velhos ficavam em uma condição de cuidado em relação ao mais novo.

Nesse sentido, há também uma preocupação que parte dos próprios alunos em ajudar o outro. Por exemplo, em uma atividade de maior movimentação, João Carlos se propõe a ficar próximo à parede para que “ninguém bata a cabeça”. Em outro caso, Gilmar pediu para que um aluno que lutava bem, o Igor, fosse par com outro que, segundo o professor, era muito agitado, fazia os movimentos com força e de maneira brusca, “mas não é por mal”, sugerindo que o menino teria algum problema. A função de Igor era lutar com

Márcio sem machucá-lo, de saber lidar com a sua “intensidade”. O menino sinalizou para o professor mostrando que entendia a situação e, por isso, teria um cuidado maior com o colega.

Outro ponto é a questão da disciplina, do respeito e da relação entre as aulas de Judô e outras atividades do cotidiano dos alunos, seja na escola ou na família. É claro que muito desse aspecto está relacionado à filosofia da modalidade e também à proposta do projeto, que tem caráter social. Segundo Gilmar, “além do Judô também tem a preocupação

de educar”. Assim, contracenavam durante a aula medidas corretivas de caráter disciplinar,

como “pagar cem polichinelos” e “quem não se dedicar e só ficar brincando vai sair fora”, para quem fizesse algo considerado inadequado, como mexer com o colega ou atrapalhar a aula com muita bagunça, e a preocupação em saber se está tudo bem com os alunos, compreender mudanças de comportamento, como os questionamentos sobre se estava acontecendo alguma coisa em casa, e explicações da importância da formação educacional, do caráter e do respeito pelo outro para a vida de cada um.

Percebia uma preocupação em considerar a vida dos alunos fora do contexto da aula, nas suas relações com a família e a escola. Em várias situações presenciei uma “investigação” atenta do professor junto aos alunos e também aos pais, além dos seus depoimentos que mostravam conhecer um pouco da história de cada um e das suas mudanças. Em um caso, o professor conversou com a mãe de um menino, explicou que ele sempre chegava falando que estava com dor de cabeça e nesse dia novamente não fez aula por esse motivo. Aos poucos, foi perguntado pra a mãe como eram os hábitos do menino, se comia bem, qual horário de dormir, se ficava muito no videogame... Nesse ponto pareceu encontrar a resposta. A mãe respondeu com franqueza, disse que estava cansada de pedir para o filho dormir cedo e para diminuir o tempo nos jogos, mas não adiantava. Gilmar aconselhou que no

máximo às 22h00 era para o menino estar na cama e, se não parasse de jogar, era “para ‘cortar’ o cabo do computador”. Também quando uma aluna não se sentiu bem, o professor

pediu para ela se sentar e depois “tomar um ar” do lado de fora. Fez várias perguntas, se comeu, se estava com bronquite e, por fim, se estava tudo bem na casa dela. No final disse que queria falar com sua mãe, desconfiava que o mal estar não tinha causa física...

Nas aulas também foi possível notar que havia um movimento entre os pré- adolescentes em buscar no esporte um meio de ascensão social. Em várias situações surgiam os comentários entre os meninos e também entre as meninas de seleções e “peneiras” que tinham participado para entrar em algum clube, especialmente para jogar futebol como a Portuguesa, o Corinthians e o Grêmio de Osasco. Em um exemplo, chegou uma menina do segundo horário e o professor perguntou se ela tinha ido à Portuguesa. Ela disse que sim, mas ainda não tinha feito o teste. Ele pediu, então, para avisá-lo quando iria acontecer porque queria encaminhar mais três meninas para o teste no futebol. Em outro, ouvi um dos alunos falar que não poderia se machucar nas semanas seguintes porque teria um teste de futebol no Grêmio de Osasco. Essa relação com o esporte de rendimento também apareceu no Judô. O professor fazia observações sobre o potencial de alunos para competir profissionalmente. Em um caso particular relatou a dedicação de uma menina de 15 anos, que treinava em dois horários, quando não tinha aula na escola vinha treinar de manhã e a tarde, se destacava em competições e, por isso, acreditava em seu potencial. Pretendia investir nela para as Olimpíadas de 2016. A relação do esporte com o futuro profissional também apareceu no sentido de que alguns já demonstravam interesse em seguir carreira na área estudando Educação Física.

As competições faziam parte do treinamento, pois elas contavam para melhorar a graduação de faixas dos alunos. Mas os alunos não eram obrigados a participar, nem sempre tinham condições. Para eles, isso representava também motivo de orgulho e realização. Presenciei essa situação, por exemplo, quando os alunos voltaram de uma competição em que as meninas tinham ganhado o “inter-CEUS”. Daiane quis mostrar o troféu para mim e, como sabia que era formada em Educação Física, perguntou se para ser professora precisava ter troféu. Um dos meninos que estava assistindo, com um skate na mão, se aproximou orgulhoso para dizer: “eu sou primo dela!”; ou Jorge que ficou em terceiro lugar na sua categoria na

competição interestadual que ocorreu no Esporte Clube Corinthians, sua medalha foi exibida e compartilhada com os colegas.

De modo geral, ainda que o grupo trabalhasse com o treinamento, a ele se agregavam questões educativas e de formação, não só social, mas também para

encaminhamentos futuros, mediadas pelas relações estabelecidas entre professor-alunos e alunos-alunos. Entre estes, particularmente, elas são marcadas pela convivência na comunidade, pelo estudo na mesma escola e reforçados pelo grupo do Judô.

Os grupos Corporal e Capoeira eram realizados na ETEC de sexta-feira à tarde em horário concomitante. Essas atividades estavam vinculadas à UBS Jardim Boa Vista sob coordenação do setor de Terapia Ocupacional. De acordo com uma das profissionais responsáveis e também com a secretária do Centro Comunitário, os grupos aconteciam originalmente lá, mas depois que o prédio da ETEC ficou pronto procuraram fazer uma parceria com esta instituição por dois motivos: o excesso de calor nos dias de sol, devido ao tipo de construção do Centro Comunitário e ao barulho, pois como as atividades aconteciam ao mesmo tempo, o barulho de uma atrapalhava a outra.

A participação nesses grupos estava mais voltada para pessoas da comunidade que tinham algum déficit físico ou mental, mas também existia abertura para outras pessoas que quisessem participar. De acordo com as profissionais e estagiárias dos grupos, a ideia de ter duas atividades era oportunizar as mães e/ou cuidadores que traziam as crianças/adolescentes para fazer atividade a possibilidade de também participar de alguma prática, enquanto estariam apenas esperando, e destinar esse momento para cuidar de si. Em relação aos objetivos, o maior deles era promover a socialização de pessoas com alguma deficiência. Algumas, como é o caso do Ricardo, têm nesse grupo uma forma de inserção social importante, uma vez que não passaram pelo processo de escolarização formal61, como contou a Letícia.

Os grupos tinham um esquema interessante de desenvolver as atividades. No início as duas turmas ficavam juntas, momento em que as responsáveis e as estagiárias davam avisos, informavam como seriam as atividades e realizavam exercícios de alongamento. Geralmente as responsáveis sempre estimulavam que os alunos ajudassem a conduzir os exercícios. Depois, os grupos se dividiam. De modo geral, as mulheres ficavam no grupo Corporal em que se trabalhavam exercícios de dança sênior, com auxílio de cadeiras, bolas, fitas elásticas e colchonetes. A seguir, havia uma sequência de alongamentos e, por fim, uma massagem em duplas realizada com bolinhas. Já os jovens, meninos e meninas, em menor quantidade, iam para o grupo de Capoeira. Contavam também com a participação de Seu

61 No final do período de observação, pude ver que Ricardo tinha começado a estudar. Nas aulas do MOVA que

acompanhei no Centro Comunitário sempre o encontrava, pois antes de ir para sua sala, ele passava pelas outras duas, cumprimentava as professoras, conversava um pouco e só depois se dirigia para sua turma inicial de alfabetização.

Inácio, um senhor que sempre ia ao grupo. Nesta atividade, além de aprender a jogar capoeira, também era trabalhado o canto das músicas e o uso dos instrumentos.

No momento, as atividades da capoeira eram conduzidas por Cristiano, um jovem62 morador de um bairro vizinho à COHAB, com prática em capoeira, que trabalhava no grupo junto com uma terapeuta ocupacional da UBS que também tinha experiência, mas na época estava em licença maternidade. As estagiárias também tinham um papel fundamental na organização e desenvolvimento dos dois grupos. No final as turmas se encontravam novamente na sala inicial para encerrarem as atividades do dia, geralmente formando uma roda e declarando o “Salve!” da capoeira juntos.

As particularidades desses grupos são muitas, mas a que chamava mais a atenção era o modo como conciliavam pessoas de diferentes idades e condições física e mental, ao mesmo tempo em que, apesar das diferenças e da divisão das atividades, mostravam se reconhecerem como um só grupo. No primeiro caso, uma estratégia trabalhada era valorizar aquilo que cada um podia e sabia fazer. No exemplo de Seu Inácio, o único idoso que frequentava a turma de capoeira, predominantemente composta por jovens, sua participação tornava-se marcante devido a sua experiência com a modalidade e, apesar de não realizar mais os movimentos, golpes e ginga, conduzia a parte instrumental do grupo se destacando com o pandeiro. Em certa aula, a roda estava quase formada e Seu Inácio ainda estava sentado e não demonstrava ânimo para se agregar a ela. Cristiano percebeu e o chamou. Ele continuou sentado, parecia não estar motivado, aí o capoeirista pegou o pandeiro e o entregou a Seu Inácio que imediatamente se levantou e foi para a roda. Já o segundo caso era percebido em diferentes momentos, particularmente quando aguardávamos as pessoas chegarem para iniciar as aulas, todos se reuniam no mesmo lugar; na forma como mantinham o compromisso em iniciar e terminar as aulas juntos; e pelos relatos que ouvia sobre os passeios realizados, nos quais havia participação dos alunos do Corporal, da Capoeira e outras pessoas da comunidade. Em um exemplo, seu Inácio entregou para a terapeuta ocupacional um papel com vários desenhos que ele tinha feito a mão reproduzindo exercícios de alongamento. O material foi elogiado pela profissional e compartilhado com os dois grupos. Em outro, temos as conversas que aconteciam entre todos, e a aproximação devido à convivência no bairro também permitia que soubessem um pouco o que se passava com o outro, o lugar onde trabalhavam, o motivo pelo qual alguém havia faltado, quem tinha ido a alguma festa, o que fazia da ida aos grupos

62 A ideia de Cristinao trabalhar com o grupo de Capoeira surgiu da necessidade que ele teve de prestar serviço

na UBS, daí as profissionais procuraram aproveitar alguma experiência que o jovem já tinha, no caso a prática com a capoeira. Terminado o período de prestação de serviço ele decidiu continuar atuando no grupo.

um momento de encontro também. Em alguns dias aconteceu de as turmas terem que se juntar devido, por exemplo, ao número baixo de alunos ou à ausência do professor de capoeira. Tal situação não era vista com contragosto, os meninos que faziam capoeira experimentaram a ginástica, a massagem, e se surpreenderam com a experiência.

Também eram oferecidas atividades diferenciadas. Os passeios contavam com apoio da UBS que conseguia carros especiais para transportar cadeirantes. Alguns deles foram visitar uma exposição de capoeira realizada no espaço cultual de um banco na cidade de São Paulo e o parque do Pico do Jaraguá. Cristinao também conseguiu organizar o “batismo” da capoeira que aconteceu em uma parceria com seu mestre que é professor do Centro Poliesportivo da USP.

Nos encontros também houve espaço para ver as fotos dos passeios, produzir materiais como cartazes que expressavam a vivência dos grupos e para discutir o direcionamento dos mesmos, nos momentos em que havia problema em relação à participação ou à possibilidade de ficarem sem o professor de capoeira, de modo a reforçar a reflexão sobre as vivências.

No entanto, a questão da participação dos moradores em termos de quantidade nas atividades, um tema destacado nos resultados da primeira fase da pesquisa campo, aparece como algo que “intriga” as profissionais no sentido de identificar os motivos que levam a uma fraca participação em relação ao que seria esperado. Por um lado, Letícia considerava que a COHAB realmente era carente de espaços para as práticas corporais. Contou que aos sábados

“os jovens disputam a tapa a quadra da escola para poder jogar”, e aí prevalece o “jogo de poder dos mais fortes e mais velhos sobre os mais novos”. Por outro lado, quando havia uma

oportunidade, como os grupos Corporal e Capoeira, percebia que o número de pessoas que se interessava era baixo e havia uma oscilação muito grande.

De modo geral, considero que a aproximação entre os grupos é resultado tanto da relação que as pessoas têm devido à convivência na comunidade como pela postura assumida pelas profissionais, em um claro compromisso em oportunizar às pessoas não só um momento para a prática corporal mas também de melhorar a qualidade de vida sobretudo por meio do desenvolvimento da vida social. Do mesmo modo, nas observações no decorrer do semestre e também nas atividades de final de ano, foi possível notar que havia por parte da equipe que atuava com o grupo Corporal e Capoeira a intenção de aproximar e envolver a comunidade no que era oferecido. Podem ser citados: o reconhecimento do trabalho de Cristiano, que era morador de um bairro próximo à UBS Boa Vista, mas não estava formalmente vinculado ao serviço; as atividades oferecidas em que valorizavam as histórias e vivências dos alunos; até a

colocação mais objetiva no encerramento das atividades no final do ano quando a coordenadora das estagiárias da Terapia Ocupacional disse que a festinha significava não só a confraternização de final de ano, mas também uma forma de agradecer a comunidade pela participação, pois “não só os profissionais e a UBS oferecem alguma coisa, mas também a comunidade tem a sua contrapartida, sua participação, que permite essa troca, esse aprendizado”.