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2 APROXIMAÇÕES COM O CONCEITO DE COMUNIDADE

2.2 Dinâmicas da comunidade: o local e o social

2.2.1 As relações sociais da perspectiva do bairro

Segundo Hoggart (2001), nos bairros a opinião dos vizinhos assume uma importância que pode ser superior a que é atribuída em outros lugares. Os membros do proletariado observam e são observados com uma intensidade que, em espaço tão limitado, dá

15 As cooperativas pesquisadas tinham formações diferentes: uma composta por pessoas de classe popular e outra

por recém-formados das áreas de Engenharia, Arquitetura, Administração e Sociologia, a maioria de origem de famílias de classe média.

margem a interpretações equivocadas, e até mesmo maldosas, daquilo que realmente se passa. O grupo não gosta de ser escandalizado ou atacado por um dos seus próprios membros; opõe- se à ideia de mudança exercendo sobre os seus integrantes uma pressão conformista. Pode não se verificar o desejo de superar os vizinhos, mas existe uma forte pressão de nivelamento pelo mais baixo. É por isso que os membros do grupo recorrem muitas vezes para o poder convincente do comportamento normal ou mediano.

Mayol (2008), que trata as práticas culturais de usuários da cidade, aprofunda a discussão em relação ao bairro. Este é entendido como um espaço onde a vida cotidiana acontece, por meio da relação com o outro como ser social no espaço público. Para o autor, o desafio reside em compreender o domínio que o usuário faz da relação entre espaço privado e espaço público, por meio de ações específicas: as táticas.

Um primeiro ponto para entender essas ações é olhar para a organização da vida cotidiana. Segundo Mayol (2008), dois aspectos são fundamentais: os comportamentos e os benefícios que se espera obter dos mesmos, que se tornam visíveis e ganham sentido no espaço social do bairro. “O bairro aparece assim como o lugar onde se manifesta um ‘engajamento’ social, ou, noutros termos: uma arte de conviver com parceiros (vizinhos, comerciantes) que estão ligados a você pelo fato concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição.” (p. 39). A regulação desses aspectos se dá por meio do conceito de conveniência. Esta seria, “[...] no nível dos comportamentos, um compromisso pelo qual cada pessoa, renunciando à anarquia das pulsões individuais, contribui com sua cota para a vida coletiva, com o fito de retirar daí benefícios simbólicos necessariamente protelados” (p. 39). Assim, há uma aceitação de “contratos sociais” para que a vida cotidiana seja possível.

Este conceito é o elemento chave que possibilita a apropriação do espaço de forma a propiciar o equilíbrio entre a proximidade imposta pela necessidade de conviver e a necessidade de preservar a vida privada. Mayol (2008) destaca as relações/encontros que acontecem para atender as necessidades cotidianas dos sujeitos e a comunicação entre os mesmos por meio dos códigos de linguagem. O contato interpessoal que acontece nesses encontros não é calculado previamente, isso faz com que o usuário mantenha códigos sociais precisos, buscando o reconhecimento do que não é controlável na coletividade de bairro. As pessoas que se encontram nessa coletividade não são nem totalmente anônimas, devido à proximidade, nem totalmente integradas na rede de convivência preferenciais.

Mayol (2008) também coloca o bairro em uma perspectiva de “dentro” e “fora”. Afirma que ele é parte da cidade onde os espaços público e privado são delimitados, mas, ao mesmo tempo, interdependentes um ao outro. O bairro constitui “o termo médio de uma

dialética existencial entre o dentro e o de fora.” (p. 42). E mais, ele se inscreve na história do sujeito como marca de pertença, uma vez que é a configuração primeira de todo processo de apropriação do espaço como espaço da vida cotidiana pública.

Neste sentido, também “os bairros não só têm uma fisionomia como uma biografia. O bairro tem sua infância, sua juventude e sua velhice” (BOSI, 2004, p. 73). Com base em depoimentos de história de vida, a autora percebe que o bairro é uma totalidade estruturada, comum a todos e que traz um sentido de identidade. O que dá vida ao bairro é sua “fisionomia humanizada”, é o que permite sua continuidade e transformação. O trabalho dos moradores o valoriza, marca uma história de conquista e adaptação. Porém, há interferência do poder econômico.

Interesses imobiliários transformam a “paisagem”, compram casas, constroem prédios, descaracterizam quarteirões. Fazem uma desconstrução do bairro que se reflete na vida das pessoas: afastam os conhecidos, desfazem trajetos, encobrem a história16. Para o idoso isso é ainda mais marcante, pois há nos moradores do bairro o sentimento de pertencer a uma tradição, a uma maneira de ser que anima a vida das ruas e das praças, dos mercados e das esquinas (BOSI, 2004). Nessas condições, portanto, é preciso considerar que os espaços cada vez mais moldados em função de interesses econômicos interferem nessa relação mais qualitativa e compartilhada entre vizinhos, como os autores vêm descrevendo.

Segundo Mayol (2008), a relação com o bairro favorece a utilização do espaço urbano pelo usuário não só do ponto de vista formal, mas como maneira de se apropriar dele, no sentido de uma privatização do espaço público. Relações de vizinhança, passeios, comércios, trajetos, lugares, tudo isso faz do espaço urbano um lugar de reconhecimento. O próprio caminhar no bairro é diferente do caminhar até o trabalho já que este é marcado pela necessidade de cumprir horário e obrigações.

Para garantir a convivência por meio da conveniência, são utilizadas táticas e a linguagem ganha destaque, pois a prática cotidiana do bairro é uma convenção coletiva implícita, não escrita, porém todos os usuários a entendem por meio dos códigos de linguagem e de comportamento. Assim, a prática do bairro exige que os usuários atendam a

16Componentes culturais também são envolvidos nesse processo. Pesquisas realizadas por Serpa (2007) em

bairros populares da cidade de Salvador mostram que a religiosidade e a festa são exemplos de elaborações socioculturais que unem a vida no bairro. No caso de Salvador, elas representam e também condicionam a maior parte das manifestações culturais dos bairros populares. No entanto, o autor destaca que a incorporação dos bairros populares da cidade ao processo de produção capitalista produz mudanças evidentes, incluindo o desaparecimento gradual da experiência, privando os moradores de sua história e da capacidade de integrar-se numa tradição. Desse modo, a desintegração da cultura é evidenciada por meio da conversão dos objetos culturais em mercadorias sociais, que podem circular e se converter em moeda de troca de toda espécie de valores, sociais e individuais.

um sistema de valores e comportamentos para que cada um consiga sair-se bem no seu papel social, mesmo que isto implique em certa dissimulação.

A questão do comportamento, por sua vez, está diretamente relacionada ao corpo. Este é visto como suporte fundamental da mensagem social (gestos, expressões faciais, palavras, postura) porque nele se faz visível o respeito ou os desvios em relação aos códigos e ao sistema de comportamentos (MAYOL, 2008). A conveniência é que vai conjugar o corpo propriamente dito, a maneira de se apresentar nas diversas instâncias do bairro e os benefícios que se espera obter do domínio progressivo dessas instâncias. Assim, Mayol (2008) destaca duas faces do conceito de conveniência: uma negativa, pois ela reprime o que “não convém”, o que não corresponde aos códigos aceitáveis pelo grupo social; e a outra positiva, pois se ela se impõe como coerção ela o faz com o objetivo de conseguir o beneficio simbólico do

reconhecimento.

Mayol (2008) vê nas relações cotidianas de consumo de alimentos e serviços elementos particularmente relevantes para compreender o conceito de conveniência e a linguagem corporal. Nessas relações de consumo, a conveniência constitui uma ordem de equivalência onde aquilo que se recebe é proporcional àquilo que se dá. Assim, há mais que uma relação econômica entre o comerciante e o freguês, há uma relação de fidelidade, de

reconhecimento. No entanto, sugere que é preciso ter um equilíbrio para manter o contato

estabelecido pelo costume e não cair em uma familiaridade excessiva. Situação essa que gera uma tensão que deve ser resolvida a cada momento pela atitude corporal (gestos, expressões faciais, palavras).

Nesse momento, pensando nas problemáticas da realidade vivida pelos habitantes de favelas de São Paulo, questiona-se: Qual será o significado dos trajetos no bairro para essas pessoas? Quais as diferenças para aqueles que vivem em lugares onde de fato é possível caminhar e aqueles onde os espaços são restritos, onde não há calçadas, ou que são delimitados por vielas e córregos, na maioria das vezes, sujos? Como o corpo se expressa nessas condições? Neste sentido, é preciso ter um olhar mais atento sobre o lugar de moradia e as condições de vida que influenciam não só as relações sociais, mas também a apropriação e os usos dos espaços.