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2 APROXIMAÇÕES COM O CONCEITO DE COMUNIDADE

2.3 Comunidades urbanas e condições de vida

2.3.1 Política, economia e espaço

Em relação ao papel do Estado no provimento de diversas políticas, Marques (2010) menciona que vários estudos sobre o tema mostram que há um descompasso entre a distribuição da estrutura social com a estrutura de fornecimento de serviços; e a questão da

18 Outro exemplo é dado por Carreteiro (2003). Em pesquisa realizada com adolescentes de uma favela do Rio de

Janeiro, a autora observou que quando estão fora do ambiente da favela os adolescentes passam por situações de preconceito “velado”. Dois casos são citados, um deles ocorreu na visita a uma exposição, onde a euforia dos jovens na realização de uma atividade foi atribuída por outras pessoas ao fato de serem “favelados”; e, em outro, a necessidade de deslocamento em maior quantidade para fazer as visitas ser acompanhado de monitoramento policial enquanto estavam no metrô.

segregação interferindo, por exemplo, nos processos de conquista de emprego. Tais estudos também indicam que em média há uma melhoria significativa da provisão de serviços para os mais pobres, mas, “[...] apesar disso, grandes desigualdades persistem, e a pobreza mostra uma dimensão territorial, levando a circuitos socialmente negativos de cumulatividade associados à concentração territorial de pobreza” (p.13).

Vasconcelos (2000), ao discutir as implicações entre qualidade de vida e habitação, lembra que, muitas vezes, os modelos habitacionais são elaborados de forma separada dos interesses comunitários, representam os interesses imobiliários e a política de moradia, e tentam mascarar a má distribuição do espaço nas cidades. Os modelos de habitação propostos reproduzem planos que não condizem com as necessidades habitacionais e não dão conta de atender a variedade de elementos relativos à qualidade de vida, como a acessibilidade dentro da própria moradia e a infraestrutura em torno das construções. Sugere que se pense em uma psicologia do habitar para considerar a subjetividade, a questão de gênero, da relação corpo-casa e do território como locus simbólico.

Nas palavras de Ecléa Bosi (2004), “recuperar a dimensão humana do espaço é um problema político dos mais urgentes. A sobrevida de um grupo se liga estritamente à morfologia da cidade; esta ligação se desarticula quando a especulação urbana causa um grau intolerável de desenraizamento” (p. 76).

Especificamente no que diz respeito ao espaço público urbano, Serpa (2007) mostra que ele é fortemente determinado e transformado por interesses mercadológicos. Destaca a sociedade e as implicações do modo de vida contemporâneo sobre o espaço e as relações que se dão no mesmo. Uma das problemáticas que emergem desse contexto se refere à fragmentação do tecido sociopolítico espacial e à formação de entraves territoriais na rede urbana das metrópoles que leva, por sua vez, às formas de autossegregação dos habitantes. Segundo o autor, a urbanização, de modo geral, passa a ser modelada pelos circuitos de acesso aos espaços de consumo, sejam eles públicos ou privados.

Há também uma padronização do espaço e sua transformação em produto. De acordo com Serpa (2007), a análise das cidades modernas, das periferias urbanas e das novas construções mostra que tudo se parece. Os espaços tornam-se repetitivos, homogêneos. Resultam de gestos e atitudes também repetitivos que transformam os espaços urbanos em produtos que podem ser vendidos ou comprados. Contudo, o autor considera que o espaço público é, sobretudo, social e, por isso, contém as representações das relações de produção, que, por sua vez, enquadram as relações de poder, não só nos espaços públicos, mas também nos edifícios, nas obras de arte. No caso particular dos parques, o autor afirma que eles são

construídos com uma uniformização visual e funcional e os compara ao tipo de construção dos shopping centers19.

Estas considerações estão de acordo com as características do espaço da modernidade definidas por Lefebvre (2001), que são: a homogeneidade, a fragmentação e a hierarquização. Segundo o autor, o espaço homogêneo se fragmenta em lotes, parcelas, o que, por sua vez, produzem guetos isolados e “pseudoconjuntos” ligados de forma irregular aos arredores e aos centros. A hierarquia aparece na formação de espaços residenciais, espaços comerciais, espaços de lazer, espaços para os marginais. A homogeneidade encobre as situações reais e os conflitos implicados nos espaços. O autor ainda observa que essa lógica ou esquema do espaço se generalizou tanto que é possível observar efeitos semelhantes no saber, na cultura, enfim, no funcionamento da sociedade inteira.

No que se refere ao espaço social, Lefebvre (2001) afirma que ele não pode se reduzir a um simples objeto, a um produto. Por outro lado, ele também não é uma abstração, uma vez que engloba as coisas produzidas, compreende as relações em sua coexistência e sua simultaneidade. O conceito de espaço engendra um movimento dialético específico, que não anula a relação produção-consumo aplicada às coisas, mas a amplia.

Do mesmo modo, Serpa (2007) diz que, no caso do domínio público, ele não pode ser reduzido às dimensões materiais do espaço urbano. É ele que nos reúne, nos aproxima uns dos outros e, ao mesmo tempo, evita também que nos choquemos, o que está de acordo com Lefebvre (2001), para quem a forma do espaço é o encontro, a reunião, a simultaneidade. Essa reunião envolve não só os seres vivos, mas tudo o que há no espaço, tudo o que é produzido pela natureza ou pela sociedade: coisas, objetos, obras, signos e símbolos. Assim, o espaço urbano reúne as multidões, os produtos nos mercados, os atos e os símbolos.

O desafio maior da sociedade de massas não seria as multidões, a quantidade de gente, mas a perda da força de ligar os indivíduos, dialeticamente relacionando-os e separando-os (SERPA, 2007). O autor observa que atualmente o envolvimento cívico no espaço público é fraco, os comportamentos e as relações são movidos pela indiferença civil e pelo conformismo. O espaço público não é partilhado e, sim, subdividido em espaços privatizados, por meio da criação de barreiras simbólicas entre os diferentes grupos. Desse

19Segundo Lefebvre (2001), uma das lógicas da espacialização refere-se justamente à visualização, que é

considerada uma estratégia, consciente ou inconsciente, mostrada na verticalidade das casas-torres, dos edifícios públicos e, sobretudo, dos prédios estatais. Pretende-se que por meio do visual o poder seja percebido.

modo, a efetivação da noção de espaço público não se reduz à soma de processos de apropriação por um coletivo de indivíduos.

Por exemplo, a convivência na vizinhança da cidade contemporânea ainda é muito condicionada pelas diferenças entre classes sociais. Segundo Serpa (2007), nos bairros populares, a limitação de oportunidades, a pobreza e o isolamento relativos à insegurança e ao medo acabam por fortalecê-la e torná-la parte fundamental da trama de relações familiares. Já nos bairros de classe média, os contatos entre vizinhos são mais seletivos e pessoais, pois o maior poder aquisitivo faz diminuir a necessidade de ajuda mútua e aumentar a necessidade individual de espaço, o que pode gerar um maior isolamento no mundo privado.

Com base na revisão desenvolvida, foi possível destacar a existência de uma dinâmica particular na comunidade, uma trama de modos de ser entre o grupo, as pessoas que a compõe, e as influências e trocas com a sociedade de modo geral, que superam o entendimento trazido apenas na discussão conceitual em torno do tema. Por outro lado, também se reconhece, como nos trabalhos de Kowarik (2009), Hoggart (2001) e Mayol (2008), situações que se aproximam das colocações conceituais.

As relações sociais se mostraram como algo fundamental na vida das comunidades urbanas, seja pela busca da melhoria da moradia e do bairro, seja para amenizar as dificuldades de um dia-a-dia comum, como nos mostraram Hoggart (2001) e Kowarik (2009). São elas que dão vida e significado à comunidade. Dessa forma, “as relações fazem parte do conjunto de elementos que constrói as condições de vida dos indivíduos em sentido multidimensional, produzidas de forma paulatina, tanto na constituição dos seus padrões de relação, quanto na aquisição de grande parte de seus atributos” (MARQUES, 2010, p. 188).

Particularmente no que diz respeito às condições de vida, os autores indicam que há fortes associações e efeitos entre esta e o modo de ser das comunidades urbanas. Mostram que elas podem carregar estigmas vinculados a preconceitos que subestimam e penalizam as pessoas pelo lugar onde moram. Mas são também exemplos de como lidar coletivamente com os problemas do dia-a-dia, de criar estratégias que permitem amenizar um viver muitas vezes comprometido pela pobreza, o que poderia levar os indivíduos a tornarem-se mais sensíveis aos problemas coletivos. E, em meio a tudo isso, ainda é preciso ter forças para também salvaguardar a própria individualidade.

A forma de morar marca substancialmente a convivência social. Isso pode ser percebido, por exemplo, no trabalho de Hoggart (2001) ao descrever a vida nos bairros proletários ingleses; de Kowarik (2009) ao tratar das diferenças entre aqueles que vivem em

cortiços, autoconstrução nas periferias e em favelas; e de Serpa (2007) ao indicar as diferenças entre os bairros de classe popular e média.

A moradia também traz alguns estigmas, como aqueles sofridos pelos habitantes de favelas, muitas vezes associados à criminalidade e à violência, o que representa mais uma problemática a ser enfrentada por aqueles que já se encontram vivendo em uma condição de vulnerabilidade social. Além disso, estas questões se enquadram em uma lógica espacial que é orientada muito mais por interesses políticos e econômicos do que sociais (LEFEBVRE, 2001; SERPA, 2007), que irão interferir também na relação que a comunidade estabelece com seu entorno e vice-versa.

Estes pontos, relações sociais, condições de moradia, espaço público-privado, discriminação... vão encontrar eco também na saúde. A saúde coletiva, de modo particular, é uma área que nos ajuda a compreender essas implicações, pois trabalha com uma perspectiva da saúde que privilegia as necessidades e os determinantes sociais de saúde. Nesse sentido, lidar com esse contexto pode tornar o trabalho em saúde denso e complexo, porém importante em um processo de mudança. Essa aproximação entre saúde e comunidade não visa entender esta última como passiva diante das condições que a caracterizam, mas que ela carrega consigo um potencial na busca por mudanças que lhe sejam positivas e que diferentes “forças”, como as ações de saúde, podem ser mobilizadoras desse processo.