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5 TRABALHO EM SAÚDE E COMUNIDADE: APONTAMENTOS A

5.5 Aproximações com o conceito de comunidade

5.6.1 Aspectos facilitadores

O vínculo com os sujeitos e suas famílias é considerado pelos profissionais como o aspecto mais positivo do trabalho com a comunidade. O vínculo criado facilita o atendimento e a intervenção, pois permite uma compreensão maior entre as partes e dos problemas enfrentados. O contato de modo mais frequente com o usuário permite conhecê-lo como “pessoa” e a entrelaçar o trabalho com seu modo de vida. De uma perspectiva mais técnica, isso contribui para desenvolver a prevenção e promoção da saúde e propicia o acompanhamento dos usuários e realizar possíveis adequações, em relação às orientações e ações propostas.

O vínculo é a parte mais positiva que existe [...], não só o vínculo emocional, mas ao conhecer a realidade de trabalho e de vida dessas pessoas, você consegue fazer com que a sua consulta, o seu grupo seja mais efetivo. Marisa

E o bom é todo esse lado que gente conversou também, da possibilidade de fazer esse vínculo, de conhecer a pessoa realmente, de trabalhar com a família não só com a pessoa, tentar fazer a promoção da saúde né, não só vê doença, então é muito bom. Jaqueline

Positivo é que, assim, você faz um vínculo mesmo, você conhece, você tem condição de conhecer a família, assim... tem famílias que até nos convidam pra almoçar né, então é um vínculo muito gostoso mesmo. Sueli

A coisa boa que eu vejo é essa proximidade né, esse vínculo, porque isso na maneira que tem aqui eu nunca tinha visto acontecer, né, nesses vinte anos. Sofia.

O que eu acho positivo é o vínculo, você tá em contato com a pessoa, você poder tá na casa dela, ver a situação da moradia né, ver a situação social mesmo dela, se a pessoa trabalha, ver o conflito familiar. Marcelo

A parte positiva é que a gente consegue desenvolver a prevenção com eles, tendo esse vínculo próximo com eles da prevenção, que isso ajuda bastante. Lúcia

Ele também é visto como algo importante porque a aproximação traz, como consequência, maior reconhecimento e confiança pelos usuários no trabalho das equipes. Em contrapartida, os profissionais sentem-se mais realizados profissionalmente:

[...] eu acho que eles valorizam bastante, principalmente a gente aqui, a gente sente muito isso, a valorização da gente, profissional, e eu acho que isso pra eles é fundamental [...] apesar de ainda, é lógico, [ser] impossível absorver tudo. Beatriz

[...] você ter essa proximidade com eles, você ver que eles confiam em você, que você pode resolver algumas [coisas], tipo o que você fala tem peso e que vai ajudar e que vai resolver. Rosana

Na verdade, eu acho que assim, a coisa de convidarem você, de trazerem bolo, porque eu vou almoçar e eu ganho muitos beijos e ganho presente, assim, a gente é muito querido pelo o que a gente consegue falar. Sofia [...] eu gosto muito e tenho uma proximidade com a comunidade muito boa, principalmente na minha área. É... eu acho isso muito legal, quando às vezes eu comento que peguei o [...] teste de gravidez de uma mulher que deu positivo eu fiz todo o pré-natal e acompanhei essa criança até os dois anos de idade. Aí eu vejo aquela coisa né, e aí eu brincava com a mulher lá que tava gestante que a criança ia ser ‘mó’ sapeca e de repente ela é mesmo sapeca né, essa brincadeira né. Então, ver essa parte do desenvolvimento, ver esse vínculo é muito gostoso, é legal. Rosana

Junto ao vínculo, outro ponto de destaque foi o contexto de vida. Conhecer a comunidade é importante para poder trabalhar com os problemas reais, entender o contexto e as condições de vida das pessoas para poder lidar com elas, o que permite ampliar a visão que se tem sobre a saúde.

[...] a gente com um contato maior com as famílias né, a gente tá atendendo aqui no consultório, acha que tem alguma coisa errada, vai na casa pra ver como é. A gente tem a possibilidade de ver como a família vive né. Então, como é dentro da casa dela, ou como tá a comunidade, como tá ao redor de onde ela mora, isso é positivo. Os agentes eu acho que é um ponto muito positivo, porque eles são o espelho da comunidade. Julia

É que eu acho que você levanta os problemas, você começa a trabalhar, você começa a fazer área de uma outra forma, não adiante você ter dez vagas de criança se eu tenho cinqüenta. Então, eu acho que é bom você conhecer a comunidade pra você trabalhar com os problemas reais que ela tem, das necessidades que ela tem. Flávia

Então você sabe que existem orientações de saúde ou de educação em saúde que você não vai conseguir fazer porque naquela realidade não se aplica, e você conhece qual é a realidade. Marisa

Então, vem aquela pessoa aqui direto com crise de rinite, com crise de asma, não adianta você só é... fazer intervenção medicamentosa, só o tratamento clínico. Em que condições essa pessoa vive? [...] Eu acho que o PSF possibilita bastante eu enxergar além do indivíduo que tá na minha

frente, porque não é todo mundo que vai ser assim tão transparente “olha

na minha [casa] não tem...”, “eu tenho esgoto a céu aberto”, não é todo mundo que vai chegar e vai contar esse tipo de coisa. Então você tem como entender, né, pelas condições habitacionais, de saneamento, pela dinâmica familiar, pela história de vida, você entender um pouco porque aquela pessoa tá tendo aquele tipo de reação. Tatiana

Outros relatos ajudam a compreender essas questões, pois as exemplificam com situações vividas no dia-a-dia. São dados que ganham mais vida e mostram a trama de

relações e possibilidades envolvidas que misturam vínculo e contexto de vida. Dizem respeito ao momento e às circunstâncias da vida, aos valores e às crenças que cada um carrega consigo, o que faz de cada atendimento algo singular. Uma orientação técnica, que a princípio parece a mesma para todos, nestas condições mostra seus limites e sua dureza, é preciso ser repensada e até colocada em suspenso. Ao profissional é apresentado o desafio de “negociar” com o outro, que não pode mais ser visto como receptor passivo da orientação.

A gente vê o paciente dentro da comunidade como um todo. Então, por exemplo, eu vejo o paciente que é hipertenso onde ele mora, porque eu tenho que fazer a medicação dele. Um evento simples, se ele não tem um banheiro perto como é que ele vai usar um diurético? Como que você vai saber? Como que ele vai saber a insulina dele de noite se ele não tem um cuidador? Então eu tenho que arrumar um cuidador preocupado com o vizinho. Dulce Eu chego na porta de uma paciente diabética, ela é dependente por que ela não consegue subir a escada da casa dela porque tem uma seqüela de AVC. Bom, mas ela é super ativa, ela cozinha o dia inteiro, a primeira vez que eu fui na casa dela, faz dois meses, o médico falou o seguinte: ‘olha ela tá

tomando a medicação toda errada, vai lá e orienta’. Eu cheguei e até deixei

ela falar, mas eu tinha uma missão, eu tinha que orientar a medicação e ela queria saber. [Foi assim] da primeira, da segunda, da terceira vez, da quarta vez ela foi pro uso da insulina. Orientei o uso da insulina. Eu sei que outro dia eu fui fazer uma visita com a dentista e a dentista ia fazer uma... eu sei que eu saí da casa dela e fui ver outro paciente e voltei. Quando eu voltei elas estavam trocando receita, e lá ficou ela trocando receito quarenta minutos. Foi a melhor visita porque eu descobri que ela nunca vai fazer a dieta, porque ela acredita piamente que comida abençoada não faz mal pra diabete. E aí ela tem um forno antigo, sabe, aquela coisa linda! E eu fui abrir e vi que tava cheio de pão e ela disse: ‘mas eu não como esse pão, é só quando eu faço torrada’. E eu, ‘ah...’. E fechei o forno. Aí você fala ai ‘meu Deus! Um ano de trabalho pra nada’, porque eu cansei de explicar que não era pra comer pão, mas eu acho que eu esqueci de falar da torrada (risos). Uau! Eu esqueci de falar da torrada! Olha, então assim, sem conhecer a comunidade é impossível trabalhar, você está fingindo que trabalha, então o vínculo com a comunidade é tudo [...]. Luciana

[...] a gente da receita pro paciente aí ele volta, “mas o senhor não fez aquilo que a gente orientou”, “fiz, a senhora mandou eu tomar dois comprimidos assim, assim, assim”, “não, não era dois”. Aí você começa, “espera aí, faz o seguinte, eu expliquei isso aqui pro senhor, agora lê pra

mim e vê o que o senhor entendeu”. Ele não sabe ler. Maria

Outros relatos indicam resultados obtidos devido ao vínculo e ao reconhecimento do contexto de vida, na relação próxima e na compreensão do processo de trabalho mais contínuo. São respostas para o trabalho e mudanças que acontecem na vida das pessoas que se revelam no dia-a-dia dos grupos, nas intervenções, nas consultas, nas visitas domiciliares, nas conversas que, de outro modo, como no atendimento apenas de consultório, seriam mais difíceis de observar.

[...] Então, a gente tem uma parte de idosos grande que não saber ler e aí? E a gente tem no bairro várias escolas de alfabetização pra idosos, tem inclusive uma igreja que eles têm até um método muito bom, mas é difícil convencer aquele idoso a ir. Mas nesse bairro tem recurso, as pessoas que estão sem serem alfabetizadas é, teoricamente, porque querem, não falta espaço, por medo, por receio, por vergonha, a maioria por vergonha né na realidade. Mas a gente consegue, uma boa parcela a gente conseguiu que eles fossem pra aula pra serem alfabetizados, então já consegue ver... a colheita já existe, não é tanto como a gente gostaria, mas já existe. Maria Porque me incomoda e a droga entrou direto aí, muita droga, muito craque. É que é o seguinte, tem um rapaz, ele até veio hoje aqui por sinal, ele há pouco tempo usava cocaína, fumava, bebia, essa coisa toda. Ele veio aqui um dia e disse “eu quero sair dessa, minha mulher, agora meu filho vai nascer e eu não gostaria que ele me visse nessa situação”, “a melhor coisa que você já fez foi isso, porque eu até posso te dar uma ajuda, mas o mais importante é sua família, sua mulher”. Ele ta mais de ano sem nada, sem nada, nada, nada, melhorou a condição de vida dele. Hoje ele já vem aqui com a moto dele e tal. E eu até coloquei pra ele a gente vai precisar fazer uma reunião, algumas pessoas que queiram e você vai ser um depoente de história. Ele fala a mesma linguagem. Claudio

Apontamento 7 - As relações e a proximidade com a comunidade: elemento chave no trabalho em saúde

A característica de solidariedade e proximidade entre vizinhos em uma comunidade, muitas vezes exercitada para lidar com as dificuldades do dia-a-dia, é também percebida como importante para o trabalho das equipes. Ela é citada de modo mais recorrente para caracterizar o lado positivo da aproximação com a comunidade, o que só pode ocorrer se em ambos os lados houver envolvimento. Portanto, de certo modo, essa lógica da comunidade também está presente no trabalho em saúde.

Na área da saúde, a construção de vínculo não se refere apenas a uma tentativa de tornar as ações mais humanizadas entre serviços de saúde e usuários, mas de acordo com Campos (2003) é um recurso terapêutico que visa qualificar o trabalho em saúde. O vínculo diz respeito ao profissional, ao usuário, à equipe, a outros profissionais específicos e ao serviço. O autor explica que o usuário do serviço desenvolverá o vínculo quando confiar que a equipe é importante e pode contribuir, de algum modo, para a conservação de sua saúde. Para os profissionais, o vínculo torna-se possível quando assume o compromisso com a saúde daqueles com quem atua. O movimento que constitui o vínculo está na procura de ajuda de uns e na resposta oferecida por outros, portanto, não parte apenas do profissional.

Para explicar os tipos de vínculo que podem ser construídos, Campos (2003) lança mão do conceito de “transferência” oriundo da Psicanálise para dizer que no vínculo com

pessoas ou alguma instituição está presente a “transferência” de afetos. Esses afetos são bilaterais e podem ser positivos ou negativos. Quando positivo constitui-se como apoio para passar por momentos difíceis, lidar com problemas. Assim na relação de cuidado o profissional teria também o papel de “estimular a capacidade de as pessoas enfrentarem problemas a partir de suas condições concretas de vida” (p.70).

Esse vínculo, não só no sentido emocional, mas para o enfrentamento de uma situação específica, é percebido no relato de Claudio, que mostra como a confiança do usuário e a sensação de se sentir apoiado pelo profissional, foram importantes para passar por um momento de mudança importante em sua vida. Já o de Tatiana chama a atenção para o vínculo como facilitador para “acessar” as condições concretas de vida do outro. Algo que merece destaque porque essa situação não é simples. De acordo com Vasconcelos (2010), a rejeição social e a experiência opressora tanto com profissionais como com pessoas de outras classes sociais, faz com que muitos temam em se mostrar e sintam vergonha de expor sua realidade. Em decorrência disso, é possível também que se tornem desconfiados ou mesmo agressivos. A dificuldade também pode estar do lado do profissional quando o preconceito contra o pobre urbano impede que veja e compreenda a condições de vida dos usuários (VASCONCELOS, 2010). Assim, a construção de vínculo, também nas relações profissionais, necessita de uma base de confiança, construída aos poucos, num processo de reconhecimento e aceitação.

No caso da saúde, esse apoio assume características específicas de acordo com as necessidades das pessoas e também dos recursos das equipes, de modo que ele não diz respeito apenas à “ligação” entre as partes. Campos (2003) destaca que para identificá-las é preciso atentar aos padrões de transferência presentes no atendimento individual ou em grupo e oferece exemplos das diferenças de apoio que podem ser demandados:

A alguns haveria de se ofertar mais atenção, a outros estimular uma diminuição no consumismo de procedimentos. A alguns ajudá-los a se cuidarem melhor, a olharem mais para os filhos, familiares, comunidade; a outros ajudá-los a escaparem da obsessão de controlar o mundo e de fazer tudo perfeito. E realizar tudo isso durante o atendimento clínico normal: consultas, grupos, curativos, visitas, caminhadas, etc... (CAMPOS, 2003, p. 70).

Nesse movimento de aproximação em que o profissional apoia o usuário e este retribui com o reconhecimento do seu trabalho diminui-se a distância entre o “Nós” e o “Eles”. É preciso considerar que devido à quantidade de pessoas sob responsabilidade de uma equipe e também das particularidades de cada um, os padrões de vínculo não serão sempre os mesmos.