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A categoria democracia e suas utilizações

CAPÍTULO 1 – Sociedade Civil e Democracia

1.2 A categoria democracia e suas utilizações

A conquista de direitos, na história da humanidade, está associada a lutas de movimentos populares. Inicialmente, os regimes liberais garantiam direitos apenas aos proprietários e detentores do poder econômico. Nesses sistemas, a esfera da política era afeita ao Estado, em sentido estrito, conforme definido por Gramsci (apud COUTINHO, 2008). Ocorre que a existência humana cria necessidades, as quais, para serem satisfeitas, impõem a organização de grupos que lutem por sua realização. Por meio dessas lutas, conquistam-se direitos civis, como, por exemplo, o sufrágio universal, direito

de associação sindical, a associação em partidos, os direito de greve. Muitas dessas conquistas ocorrem por meio de revoluções burguesas, como, por exemplo, a Revolução Francesa, que teve como corolário a instituição da democracia formal na França. Os sujeitos coletivos vocalizam suas demandas por meio de associações, agremiações, partidos, entidades, significando a ampliação dos espaços das disputas políticas e do exercício da política.

Com a complexificação das sociedades, a ação política deixa de estar restrita apenas aos burocratas do Estado, porta-vozes dos interesses das classes dominantes, havendo uma ampliação do espaço da política, bem como dos sujeitos envolvidos. “[...] o Estado, ao se ‘ampliar’, deixou de ser o instrumento exclusivo de uma classe para se converter na arena privilegiada da luta de classes...” (COUTINHO, 2008, p. 29). Nessa afirmativa, Coutinho utiliza o conceito de Estado ampliado de Gramsci, ou seja, a sociedade política e a sociedade civil em relação dialética.

A luta de classes nas sociedades mais desenvolvidas, que Gramsci cunha de “ocidentais”15, trava-se, sobretudo, no espaço da sociedade civil. Trata-se, em última instância, de ampliar a conquista de espaços no interior do próprio Estado, construindo estratégias que façam com que a classe hegemônica se veja impelida a atender às reivindicações das massas organizadas.

[...] democracia é sinônimo de soberania popular. Ou seja: podemos defini-la como a presença efetiva das condições sociais e institucionais que possibilitam ao conjunto dos cidadãos a participação ativa na formação do governo e, em consequência, no controle da vida social. (COUTINHO, 2008, p. 50).

Democracia, na perspectiva gramsciana, também é um instrumento de projeto. Trata-se de um processo político que objetiva a superação da lógica de produção e reprodução da sociedade capitalista. O que está em jogo é a emancipação humana; a socialização da riqueza produzida. Conforme já abordado, o móvel da luta é a disputa pela hegemonia.

                                                                                                                         

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“No oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação”.(GRAMSCI. Cadernos do cárcere, v. 3, p. 262).

(...) o fato de que haja um número cada vez maior de pessoas participando politicamente de modo organizado, constituindo-se como sujeitos coletivos, choca-se com a permanência de um Estado apropriado restritamente por um pequeno grupo de pessoas, ou seja, apenas pelos membros da classe economicamente dominante ou por seus representantes. Essa contradição só pode ser superada — superação que é precisamente o processo de democratização — na medida em que a socialização da participação política se expresse numa crescente socialização do poder, o que significa que a plena realização da democracia implica a superação da ordem social capitalista, da apropriação privada do Estado, e a consequente construção de uma nova ordem social, de uma ordem social socialista. (COUTINHO, 2008)16.

O conceito de cidadania também é de fundamental importância na discussão sobre democracia.

Cidadania é a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado. (COUTINHO, 2008, p. 50- 51).

Gohn (1994, p. 2-3) extrapola a ideia de cidadania individual para a cidadania coletiva, afirmando que a luta de diversos grupos tem como marco característico a coletividade, as conquistas de políticas e serviços para além da cidadania formal.

Na cidadania coletiva temos dois marcos referenciais. O primeiro remete às origens clássicas do cidadão da polis grega, pois diz respeito a uma dimensão cívica, onde os cidadãos exercitam virtudes cívicas e tem na comunidade onde vive a sua referência imediata. Há obrigações e deveres a cumprir-se. O segundo marco remete à contemporaneidade, ou aos tempos pós modernos. Ela diz respeito a busca de leis e direitos para categorias sociais até então excluídas da sociedade, principalmente do ponto de vista econômico (lutas pela terra a partir de favelados, por exemplo, categoria social antes considerada como marginal ao sistema econômico, hoje vista como parte dele, como bolsão da miséria e do subemprego), e do ponto de vista cultural (lutas contra a exclusão social de certas categorias sociais, como as mulheres, as minorias étnicas etc.). Assim, a cidadania coletiva privilegia a dimensão sociocultural, reivindica                                                                                                                          

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COUTINHO, Carlos Nelson. Democracia: um conceito em disputa. Disponível em: <http://socialismo.org.br/2008/12/democracia-um-conceito-em-disputa/>. Acesso em: 12 jan. 2013.

direitos sob a forma da concessão de bens e serviços, e não apenas a inscrição destes direitos em lei; reivindica espaços sociopolíticos sem que para isto tenha que se homogeneizar e perder sua identidade cultural.

Nas sociedades modernas, a democracia representativa tem se mostrado insuficiente para as diversas questões da vida em sociedade (LUCHMANN, 2002). O Brasil, até a década de 1930, mantinha no Estado o centro e comando da política, com uma sociedade civil ainda frágil. Após esse período é que, lentamente, ganha corpo uma sociedade civil, de início ainda muito atrelada ao Estado e com atuação de cunho fortemente corporativista, até a sua ampliação, seu fortalecimento e sua autonomia em relação ao Estado. Coutinho (2008, p. 111) afirma que a nação brasileira foi construída a partir do Estado e não a partir da ação das massas populares. E prossegue: [...] isso impediu que nossas “elites”, além de dominantes, fossem também dirigentes. O Estado moderno brasileiro foi quase sempre uma ‘ditadura sem hegemonia’. (idem, p. 111).

Nesse processo, a sociedade civil coloca a necessidade de democratizar o Estado para além dos processos formais da democracia representativa. Coloca também a necessidade de criação de formas de controle da sociedade sobre a gestão da coisa pública, inclusive dos recursos públicos, para além do que já está instituído na legislação. O sentimento corrente da ausência de freios na corrupção, no clientelismo e outras práticas danosas, sobretudo da classe política, impõe a necessidade de controles mais rígidos e perenes da sociedade. A mera sanção eleitoral, posta na democracia formal, de periodicamente escolher, ou não, legitimar ou não, uma opção política é muito restrita. Ademais, deve-se considerar que o poder econômico e midiático atual subverte a possibilidade de uma escolha baseada apenas em elementos factíveis da gestão política.

Na Constituição de 1988, essa questão ganha corpo, com a criação de diversos mecanismos de participação da sociedade civil. A Carta brasileira institui formalmente a articulação da democracia representativa com a participativa, ou democracia deliberativa, além de mecanismos de democracia direta. Já no parágrafo único do artigo 1o essa articulação é explicitada. Em diversos outros artigos, parágrafos e incisos, a participação da sociedade civil

está prevista. O artigo 14 prevê os mecanismos de democracia direta, como o plebiscito, referendo e a iniciativa popular, que ainda carecem de regulamentação.  

Contudo, esse modelo não é algo novo, nem tampouco invenção brasileira. Coutinho registra que “essa proposta de uma nova forma de governo baseada na articulação dentre democracia representativa e democracia direta já faz parte do patrimônio teórico do movimento operário e socialista”, (COUTINHO, 2008, p. 33-34).

Moroni (2005, p. 4) também aborda essa questão, insistindo no fato de que a democracia participativa não anula a democracia representativa.

A legitimidade do sistema sustenta-se na legitimidade da democracia participativa como arranjo institucional que amplia a democracia política. Por sua vez, a legitimidade da democracia participativa fundamenta-se no reconhecimento de que esse novo arranjo possibilita a construção de espaço público de conflito/negociação, ampliando, por isso, os processos democráticos, e não como substituição ou oposição à democracia representativa.

Outro traço, no Brasil, é o fato de que o Estado sempre foi dominado e esteve submetido a interesses privados. Embora seja um traço comum de regimes capitalistas, no Brasil, isso ocorreu e ainda ocorre de maneira muito acentuada.

A tomada de decisões, na visão rousseauniana, é proposta de forma totalmente individual, em que a decisão do cidadão não deve sofrer nenhum tipo de influência. Essa visão foi denominada de democracia agregativa, pois parte da agregação pura de opiniões (LUCHMANN, 2002). Já na democracia deliberativa, para que a decisão seja coletiva, é imperativo os processos de debate, discussão e argumentação, visto que as opiniões individuais podem e tendem a ser mudadas. Nesse sistema, a participação é igualitária e pública e o processo dialógico é condição para se chegar ao melhor argumento.    

Uma das questões colocadas nessa discussão, e que será abordada no decorrer do texto, é a de que os conselhos não têm conseguido garantir a participação dos excluídos da vida política. A socialização da política ainda é algo muito distante para grandes parcelas da população brasileira. E, no que diz respeito aos conselhos, tal participação não tem sido garantida, em face do

formato dos conselhos, que prevê eleições de representantes da sociedade civil organizada e também em face da dinâmica assumida por esses espaços institucionais, que os distanciam de uma relação mais próxima das bases sociais.

É certo que a sociedade civil brasileira, em seu processo de luta pela garantia de um país democrático, obteve algumas importantes conquistas. Contudo, passado esse momento da conquista formal, era mister a continuidade da luta para regulamentar os diversos dispositivos previstos na Carta Magna e para tornar efetiva sua realização.

O forte consenso em torno do ideário participacionista, a partir dos anos 90, veio acompanhado de uma diversificação dos fundamentos normativos que historicamente conferiram legitimidade à prática participativa. Assim, se nos anos 70 e 80 a participação legitimava-se em referência a ação contestatória dos “sem voz”, associando-se fortemente às utopias transformadoras, a partir de meados dos anos 90, esse ethos passa a conviver e a disputar a capacidade de nomeação e significação das experiências participativas com um novo conjunto de valores que encontra nos desafios e expectativas de uma gestão pública eficaz sua fonte de legitimidade. (TATAGIBA; TEIXEIRA, 2006, p. 3).

Do final dos anos 70 até os dias atuais, a trajetória da sociedade civil, no Brasil, tem sido de diversas conquistas e também de muitos desafios e dúvidas em relação às estratégias. Dentre essas estratégias, sobressai a participação institucionalizada, debatida principalmente nos espaços dos Conselhos.

Se, na experiência pretérita, a aposta era na educação popular e nos conselhos populares, na atualidade, quais são as apostas? Entender, dentre as diversas possibilidades de coexistência da democracia representativa com a democracia participativa, a que está afeita à participação nos conselhos setoriais de políticas, é nossa tarefa. Para tanto, caberá compreender a gênese dos conselhos e sua trajetória até as possíveis configurações atuais.

A discussão sobre democracia está diretamente ligada à ideia de participação. Participação no sentido mais amplo do termo, que implica participar dos processos decisórios, para além da escolha de um ou mais representantes. O conceito de participação na democracia implica a inclusão de todos os membros de uma comunidade nas discussões e decisões coletivas.

Não se trata apenas de influenciar as decisões, mas de fato decidir, tendo em vista o bem comum, a vontade geral e a justiça social.

No próximo capítulo, aborda-se como o movimento da infância, ao ser um dos sujeitos da luta pela redemocratização do Brasil, conquista uma legislação que muda o paradigma de atenção às crianças e aos adolescentes brasileiros, e, ainda, algumas experiências conselhistas, de maneira a compreender esse formato de participação democrática.