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Experiências pretéritas de conselhos no Brasil

CAPÍTULO 2 – Conselhos – Expressões da Democracia Participativa

2.2 Experiências pretéritas de conselhos no Brasil

Fazendo remissão à história da formação social brasileira17, que não é possível desenvolver no escopo desta dissertação, é sobejamente conhecido que, a despeito de diversos movimentos e lutas populares, a historiografia oficial pouco valorizou e deu visibilidade a eles. Como resultado, temos o conhecimento do nosso passado a partir do olhar das classes dominantes18. As classes populares são historicamente tratadas pelo Estado por meio da coerção e/ou do assistencialismo. No início do século XX, a questão social passa a ser tratada como caso de polícia e, paralelamente, de forma muito precária inicia-se alguma política estatal na área da previdência.

Apesar de existirem experiências de conselhos, no Brasil, anteriores à década de 1970, é nessa época que esses espaços institucionais passam a ocupar posição de destaque e relevância na sociedade brasileira. Sobre a característica dos conselhos nesse período, afirma Ribeiro (2011, p. 117):

Os conselhos existentes no Brasil até a década de 1970 são apresentados como canais de participação controlada, de caráter consultivo ou opinativo, com o objetivo de conhecer as demandas da população e sem poder de intervenção nos processos decisórios.

As lutas empreendidas pela sociedade civil contra o Estado autoritário, que no Brasil perduraram por mais de 20 anos, foram capazes de amalgamar, a partir do final dos anos 1970, os diversos grupos em torno de uma causa comum e dar impulso para a retomada do papel protagônico dos movimentos populares.

A sociedade civil brasileira, profundamente marcada pela experiência autoritária do regime militar instalado em 1964, experimenta, a partir da década de 70, um significativo ressurgimento. Esse ressurgimento, que tem como eixo a oposição ao Estado autoritário, foi tão                                                                                                                          

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Para a compreensão da história da formação da sociedade brasileira nas suas diversas dimensões (social, política, cultural, econômica, linguística, étnica), é imprescindível a leitura dos autores denominados clássicos: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Raymundo Faoro, dentre outros.

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Maria da Glória Gohn, em seu livro História dos Movimentos e Lutas Sociais, faz um resgate e uma análise importante sobre as lutas populares no Brasil. Outra referência utilizada para este capítulo é a tese de doutorado de Natalina Ribeiro, intitulada Sujeitos e Projetos em

significativo que é visto, por alguns analistas, como de fato a fundação efetiva da sociedade civil no Brasil, já que sua existência anterior estaria fortemente caracterizada pela falta de autonomia em relação ao Estado. (AVRITZER, apud DAGNINO, 2002, p. 9).

Gohn (2002) diferencia três tipos de conselhos no Brasil do século XX: 1) conselhos comunitários dos anos 70 – criados pelo próprio Executivo para auxiliar na administração municipal; 2) conselhos populares dos anos 80 – resistência de esquerda ao regime militar; 3) conselhos institucionalizados (gestores) dos anos 90 – criados nos três níveis de governo, têm caráter interinstitucional.

Ressaltando os “conselhos populares”, Szwako (2012, p. 25), a partir de sistematização feita pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)19, explica a diversidade de modelos na experiência histórica de fins da década de 1970, com destaque para a área da saúde.

Com efeito, o rótulo “conselhos populares” compreende uma variedade de outros formatos que eram chamados de comissões de bairros, conselhos comunitários e também assembleias, como foi o caso da Assembleia do Povo de Campinas (GEP/URPLAN, 1988). A despeito dessa variedade, que encerra nuances quanto à eleição e composição da representação, esses formatos compartilhavam sua disposição de luta orientada para o aparato estatal, para os executivos municipais, sobretudo. De acordo com um censo realizado pelo Ibase (1987), experiências desse tipo chegavam a 168 casos, nos quais partes organizadas das periferias das capitas e grandes centros urbanos “participavam” das administrações municipais em várias áreas como comunicação, habitação e posse de terra, abastecimento, dentre outras. E, entre essas áreas, o peso conquistado pelos conselhos de então ficou mais claramente evidenciado na saúde: “as comunidades organizadas e administrações municipais encaminham reivindicações da população por melhores condições de saúde, seja através da escolha de agentes de saúde nos bairros, ou ainda através da organização de Conselhos Populares que discutem e fiscalizam a política implementada pelos órgãos públicos” (IBASE, 1987, cap. 3).

Gohn (2002, p. 11-12) destaca três experiências entre os conselhos populares:

                                                                                                                         

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O Ibase é uma organização da sociedade civil fundada em 1981, dentre outros, pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Tem como objetivo a radicalização da democracia e a afirmação de uma cidadania ativa. Disponível em: <http://www.ibase.br/pt/quem-somos>.  

Dentre os conselhos populares que se destacaram no cenário urbano daquele período vale registrar, entre outros, três exemplos significativos: os Conselhos Populares de Campinas, no início dos anos 1980; O Conselho Popular do Orçamento, de Osasco; e o de Saúde da Zona Leste de São Paulo. Este último foi criado em 1976, a partir do trabalho de sanitaristas que trabalhavam nos postos de saúde daquela região, articulados ao Partido Comunista, mas, ao mesmo tempo, vivenciando o clima de participação gerado pelas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. Os conselhos de Campinas desenvolveram-se também articulados aos programas das pastorais religiosas e deram origem ao movimento "Assembleia do Povo". Cumpre recordar também a importância dos conselhos em algumas experiências de gestão municipal que já se tornaram referências históricas, em que a participação popular era uma das diretrizes básicas, tais como Lages, em Santa Catarina (Conselho de Pais); Boa Esperança, no Espírito Santo (Conselho de Desenvolvimento Municipal); e Piracicaba, em São Paulo (gestão 1976-82).

No final dos anos 70 e início dos anos 80, o número de novas iniciativas expande-se, tendo em comum a luta contra o autoritarismo e as precárias condições de vida de grande parcela da população, principalmente nas periferias dos centros urbanos. Partindo de necessidades locais, os movimentos funcionavam basicamente na estratégia de pressão do poder público local, no sentido da garantia de políticas públicas e serviços públicos nos bairros.

A visibilidade obtida por esses movimentos, a partir da sua expansão e também do agravamento das condições de vida nos bairros periféricos, impôs novas tarefas e atitudes desses grupos, como a necessidade de interlocução e negociação com o poder público, a aproximação de parlamentares e figuras públicas, a aproximação de partidos políticos, enfim, uma complexificação que passou a gerar desagregação dos grupos e o distanciamento entre direção e base.

Considerando as experiências históricas, os conselhos populares no Brasil, podem ser citados como os precursores do atual formato dos Conselhos Gestores de Políticas. Contudo, a prática conselhista tem apontado para os mais diversos formatos e soluções, ante os desafios que são vivenciados no cotidiano da experiência, não havendo um modelo único desse espaço institucional.

Os conselhos, nos moldes definidos pela Constituição Federal de 1988, são espaços públicos com força legal para atuar nas políticas

públicas, na definição de suas prioridades, de seus conteúdos e recursos orçamentários, de segmentos sociais a serem atendidos e na avaliação dos resultados. A composição plural e heterogênea, com representação da sociedade civil e do governo em diferentes formatos, caracteriza os conselhos como instâncias de negociação de conflitos entre diferentes grupos e interesses, portanto, como campo de disputas políticas, de conceitos e processos, de significados e resultantes políticos. (RAICHELIS, 2006, p. 109).

A forma conselho, da maneira que foi idealizada e que vem sendo experimentada no Brasil, é um dos muitos arranjos institucionais. Junto, uma série de outros formatos de participação, como as Conferências, os Orçamentos Participativos, as Audiências Públicas, cresceram exponencialmente e se constituem, hoje, como uma realidade inconteste e que altera o desenho da sociedade brasileira.

Uma das compreensões plausíveis para esse modelo é o do alargamento da representação formal. As chamadas instituições participativas extrapolam as formas tradicionais de representação existentes na democracia formal, baseada na representação parlamentar. Isso ganha impulso com a emergência de diversos movimentos sociais classificados como minorias até então; ex.: movimento de mulheres, movimento negro, movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis (LGBT). Também esses espaços indicam a possibilidade de imposição de controle social aos atos das administrações públicas do País.

É importante contextualizar que essas transformações ocorrem num cenário de crise do Estado de Bem-Estar Social e são aproveitadas pelas classes no poder, que intensificam a estratégia do estado mínimo, da priorização do ajuste fiscal e da terceirização da operação das políticas sociais por meio das Organizações Não Governamentais (ONGs); medidas que, associadas a outras tantas são inseridas na denominada “reforma” do Estado e vendidas com roupagem de modernidade e avanço.

Garantidos de forma legal, os conselhos passam a ser implementados nas diversas políticas setoriais e em ritmos e formatos diversos, próprios de cada área da política, e nos três níveis de governo. Além dos conselhos, boa parte das políticas preveem a criação de fundos de financiamento dessas políticas, também com suas especificidades, e ainda são estimuladas e intensificadas as conferências, como momentos importantes de debates e avaliações sobre as políticas aplicadas e seus resultados, bem como

necessários ajustes e medidas, constituindo-se como espaço de construção de agenda de trabalho dos conselhos20.

A publicação Novas Lentes sobre a Participação: Utopias, Agendas e

Desafios, resultado de pesquisa no âmbito federal, aponta o incremento

exponencial no número de espaços de participação, dentre os quais as conferências, os conselhos gestores, orçamentos participativos, as audiências públicas, dentre outros, principalmente após a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao comando máximo do governo federal21.

Sabe-se, ainda, que as conferências, realizadas nas mais diversas temáticas, movimentam centenas de milhares de pessoas pelo Brasil todo; que o número de conselheiros, contados os níveis municipal, estadual e nacional, é maior do que o de representantes dos Legislativos, que a capilaridade dos conselhos e dos espaços de participação é um fato, existente em praticamente todos os municípios do País, sendo que muitos municípios possuem um número grande de conselhos dos mais diversos temas.

Essa realidade, em que a participação passa a penetrar na estrutura do Estado, altera o discurso e a postura de parte da sociedade civil organizada. Em vez da oposição e do confronto direto com o Estado, o que se busca é a participação nos processos de planejamento, decisão e controle das políticas.

A previsão, criação e atuação de conselhos gestores de políticas é uma realidade no Brasil. Sob os mais diversos formatos, interessa-nos salientar a importância da participação e do controle social, numa perspectiva democrática em favor da coletividade. Segundo Gohn (2003, p. 22):

Com os Conselhos, gera-se uma nova institucionalidade pública, pois eles criam uma nova esfera social-pública ou pública não estatal.                                                                                                                          

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Conferências são espaços institucionais de deliberação das diretrizes gerais de determinada política pública. São mais amplos que os conselhos, envolvendo outros sujeitos políticos que não estejam necessariamente nos conselhos, razão pela qual têm também caráter de mobilização social. Governo e sociedade civil, de forma paritária, por meio de suas representações, deliberam de forma pública e transparente. Estão inseridas na chamada “democracia participativa” e no “sistema descentralizado e participativo”, elaborado a partir da Constituição de 1988, e que permite a construção de espaços de negociação, de consensos e dissensos, compartilhamento de poder e a corresponsabilidade entre o Estado e a sociedade civil. As conferências nacionais são precedidas de conferências municipais/regionais e estaduais e organizadas pelos respectivos conselhos. (MORONI, 2009, p. 115).

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Esta publicação é produto do projeto Arquitetura da Participação – Avanços e Desafios da Democracia Participativa: Renovando as Utopias, desenvolvido pelo Instituto Pólis, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Trata-se de um novo padrão de relações entre Estado e sociedade, porque eles viabilizam a participação de segmentos sociais na formulação de políticas sociais e possibilitam à população o acesso aos espaços nos quais se tomam as decisões políticas.

Esse novo arcabouço institucional é composto por diversas instâncias participativas, sendo que aos conselhos deliberativos é atribuído o controle social sobre as políticas públicas.

A área da infância e adolescência, com importante papel na luta pela democratização do País, conquista diversos avanços na legislação e em consonância com o modelo instituído, também teve prevista, nas três instâncias de governo, os Conselhos de Direitos, assim como os Fundos da Infância e Adolescência, e, nos municípios os conselhos tutelares. No ano de 1995, registra a realização da 1a Conferência dos Direitos da Criança e do Adolescente. Antes de adentrarmos na temática dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, cumpre registrar quem foram os sujeitos da luta pela mudança da legislação que culminou na promulgação, em 1990, do ECA.

Quem eram os movimentos e grupos que lutaram por essa conquista e que denominamos de movimento da infância? Como se organizaram? O que defendiam? Quais mudanças aconteceram em relação ao período anterior? Mesmo não sendo escopo desta dissertação um estudo aprofundado desse movimento, cumpre-nos, ao menos, fazer uma breve descrição, que contribuirá para a compreensão da realidade atual.