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CAPÍTULO 2 – Conselhos – Expressões da Democracia Participativa

2.3 O movimento da infância

Segundo Santos et. al. (2009), a visão sobre infância e, consequentemente, as formas de intervenção na vida dessa parcela da sociedade, sofre modificações, ao longo da história. Podem ser identificados três modelos, que demarcam essas transformações na história brasileira.

1. A soberania paterna associada ao caritativismo religioso: vigeu de 1500 até meados de 1800 e tinha na família a instituição central, pois as crianças e os adolescentes eram inteiramente governados pela família, sem intervenção estatal.

2. Do Estado de Bem-Estar Social à ação filantrópica: de 1850 até a década de 1970, a intervenção estatal era de cunho assistencialista, e baseado no modelo médico-legal, com ênfase nos aspectos sanitários.

3. Direitos da criança associados à ação emancipatória cidadã: a partir dos anos 70, e com ênfase na década de 1980, há um movimento de questionamento ao modelo de atenção à infância. O modelo assistencial coercitivo passa a ser alvo de uma série de movimentos e pessoas que trabalhavam com crianças e adolescentes, já buscando formas alternativas ao modelo que vigia até então, principalmente por causa dos denominados “menores de rua e menores infratores” que eram a face mais visível do problema.

As práticas alternativas, contudo, também são questionadas enquanto modelo comunitário que atenua parcialmente o problema, sem, contudo, constituir-se numa política articulada que incida nas questões estruturais da problemática que aflige as crianças e os adolescentes. A partir daí, há uma mobilização no sentido de garantir no ordenamento jurídico e também nas políticas e serviços oferecidos um novo paradigma que superasse a visão da criança pobre como objeto de intervenção do adulto, para um novo paradigma, em que a criança e o adolescente são vistos como sujeitos de direitos e em condição peculiar de desenvolvimento.

Institui-se, portanto, o paradigma da proteção integral, que é assim explicado por Santos et. al. ( 2009, p. 35):

A doutrina da proteção integral foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo art. 227 da Constituição Federal de 1988. Destacamos três aspectos para sua compreensão:

- Princípio de cooperação no que se refere à atuação da família, da sociedade e do Estado na proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes. Isso significa que qualquer ameaça ou violação dos direitos infanto-juvenis coloca a família, a sociedade e o Estado em situação irregular, não mais a criança e o adolescente.

- A dignidade das crianças é espelhada pela cidadania. Para tanto, essa doutrina reúne os direitos civis, tais como a vida e a liberdade, e os direitos sociais, econômicos e culturais, como a saúde, a profissionalização e a cultura, entre outros.

- Absoluta intolerância com todas as formas de vitimização da criança e do adolescente, tais como negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Tal politica fundamenta-se na maneira pela qual a doutrina compreende a criança: um sujeito de direitos em peculiar processo de desenvolvimento.

Esse caminho, que culminou com o novo ordenamento jurídico, previsto no artigo 227 da Constituição de 1988, foi trilhado por muitos e importantes sujeitos. Em nossa pesquisa, tivemos a oportunidade de entrevistar dois desses militantes e defensores dos direitos das crianças e dos adolescentes brasileiros: Wanderlino Nogueira Neto e irmã Maria do Rosário Leite Cintra.

Numa das passagens importantes da entrevista com a irmã Maria do Rosário, ela relata como se deu o processo de organização do grupo que elaborou o ECA:

O ministro da Justiça na ocasião, Paulo Brossard, quando viu na Constituição, o artigo 227, depois, tem outro artigo que fala que esse artigo vai ser operacionalizado. Ele encarregou o Dr. Munir Cury, que era chefe do Ministério Público aqui; Dr. Alyrio Cavallieri, do Rio de Janeiro; e Dr. Amaral, de Santa Catarina. O cabeça era o Dr. Munir Cury. E ele tinha dificuldade enorme de falar com o Cavalieri, que não queria saber de mudar o código, pois tinha sido um dos autores do código de 79, inclusive da questão da situação irregular. Ele com outros americanos. Então o Dr. Munir não podia dialogar com o Alyrio Cavallieri. O Dr. Amaral estava longe. Aí, numa reunião, estávamos fazendo todo esse caminho, e tínhamos trabalhado muito no artigo 227, teve passeata, teve manifestação na Praça da Sé, e, quando foi aprovada a Constituição, em 5 de outubro de 1988, em 5 de novembro já estávamos numa dessas semanas ecumênicas, trabalhando o artigo 227, em vista do Estatuto, e transformamos cada palavra do artigo em um capítulo. É dever da família garantir o direito à vida (capítulo sobre a vida), etc. E o Dr. Munir encontrou conosco e perguntou: “Porque vocês estão fazendo isso?”. Estamos fazendo. É a sociedade civil se mexendo. “Posso participar do grupo com vocês? Vocês querem participar do grupo comigo?” Aí começamos a nos unir. Foi um trabalho do Ministro da Justiça querendo operacionalizar a Constituição e a sociedade civil organizada fazendo o seu caminho, aqui no caso, sobretudo, o caminho ecumênico, religioso, mas ecumênico, que foi das 12 semanas. Foi uma riqueza muito grande e muito intensa, a participação dos diferentes grupos. Quando nos reuníamos, estávamos fazendo os capítulos. Antes, discutíamos o tema. E eu tinha a minha sacola. Um dia, Paulo Afonso perguntou: “Irmã? O que tem aí embaixo, que qualquer assunto que eu falo, a senhora tira um papel?” Eu falei: É que já discutimos tudo isso antes. Por isso, tem um livrinho que está escrito assim: o povo fez a lei.

(Maria do Rosário Leite Cintra, entrevista em 19/03/2013).

A riqueza de detalhes contida nos relatos da irmã Maria do Rosário, remete a uma situação de união de esforços e de superação de divergências em torno de um objetivo comum. Contribui sobremaneira para alimentar a

prática atual numa perspectiva de que é possível, não negando as divergências e diversidade de interesses, convergir em torno de objetivos comuns.

Dr. Jurandir Marçura era o mais resistente: “Isso aqui não é de Estatuto, isso aqui não é de lei”. Olímpio veio ajudar depois.

Paulo Afonso, como mediador, o que ele fazia? “Vamos lá dentro e vamos ver.” Aí ele falava: “Encaixa aqui, encaixa ali”, e voltava com a solução. Foi um trabalho corporativo. Um trabalho que tinha divergências. Teve uma divergência assim. Estávamos procurando saber quais eram os deveres das crianças. Estávamos numa sala grande e o Deodato Rivera, que é um cientista político do Rio de Janeiro, ficava na máquina, não tínhamos computador, era máquina de escrever ainda. Dever de não pisar na grama, dever de obedecer aos pais, dever de frequentar a escola. E ele foi agrupando. Já não aguentávamos mais. Aí, chegamos em casa e conversei com Camilo (meu irmão): Camilo, estamos lá reunidos, procurando todos os deveres da criança. Ele disse: “Os deveres da criança, são os da pessoa humana. Vocês estão procurando e vão encontrar todos os deveres. O que a criança tem é o direito de ser ajudada a cumprir os seus deveres, de ser preparada para os seus deveres”. Aí não pusemos. Tem gente que fala que o Estatuto é só de direitos. Os deveres são todos. O principal direito que a criança tem é de saber quais são os seus deveres, que são todos os da pessoa humana, só que ela vai cumpri-los de acordo com a sua maturidade, de acordo com a sua capacidade. Então, teve uma riqueza de contribuição, de participação, de consulta. (Idem).

E prossegue, retratando detalhes importantes e curiosos:

Não tínhamos a técnica jurídica, a linguagem jurídica. Sabíamos porque tínhamos perguntado nas semanas ecumênicas, através de fichas para todos os educadores presentes e para as crianças: O que vocês querem que conste no Estatuto, o que querem que conste na constituição? As crianças faziam com desenho, os educadores preencheram fichas. Então falávamos: Eles querem que apareça isso, querem que apareça aquilo. Agora, eles vinham e falavam: “Põe em tal capítulo, põe de tal jeito”. Na hora de entregar o documento, havia dois caminhos. Ou conseguir 10% dos eleitores ou entregar o anteprojeto para um parlamentar, e foi escolhido esse caminho, por ser mais rápido. Dos deputados, foi escolhido o Nélson Aguiar, que tinha sido presidente da Funabem, que conhecia a área da criança e, no Senado, o Ronan Tito, que era de Minas e também conhecia. Nélson veio até nós e foi falado para ele: “Você vai se apresentar na Câmara como autor”. A mesma coisa foi dita para o Ronan Tito: “Mas não foram vocês que escreveram. Então, vocês tem um compromisso conosco. Um compromisso informal. Vocês não vão mexer sem falar conosco, sem nos consultar, porque nós discutimos, pensamos”. Então, era telefone para cá, telefone para lá. E o grupo se revezava.

Quase sempre carregávamos o Edson Seda, porque do grupo era o único advogado. Os outros eram assistente social, psicólogo. (idem).

Quais foram as principais mudanças que o ECA – Lei 8.069/1990 estabeleceu, em relação ao antigo Código de Menores – Lei 6.697/1979?

Como já afirmamos, houve mudança de paradigma, de compreensão sobre a infância e a adolescência. O Quadro 1 estabelece um comparativo entre o que era previsto nas legislações anteriores e o que propugna o ECA.

Quadro 1: Comparativo entre o Código de Menores de 1979 e o Estatuto da Criança e do

Adolescente

Aspecto Considerado

Código de Menores (Lei 6.697/1979 e Lei 4.513/1964)

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990)

Base doutrinária Direito tutelar do menor. Os menores eram objeto de medidas judiciais quando se encontravam em situação irregular, assim definida legalmente.

Proteção integral. A lei assegura direitos para todas as crianças e adolescentes sem discriminação de qualquer tipo.

Visão da criança e do adolescente

Menor em situação irregular, objeto de medidas judiciais.

Sujeito de direitos e pessoa em condição peculiar de

desenvolvimento. Concepção político-

social implícita

Instrumento de controle social da infância e da adolescência vítima da omissão e

transgressão da família, da sociedade e do Estado em seus direitos básicos.

Instrumento de desenvolvimento social, voltado para o conjunto da população infanto-juvenil do País, garantindo proteção especial àquele segmento considerado de risco social e pessoal.

Objetivo Dispor sobre a assistência a menores entre 0 e 18 anos em situação irregular, e entre 18 a 21 anos, nos casos previstos em lei, por meio da aplicação de medidas preventivas e terapêuticas.

Garantia dos direitos pessoais e sociais por meio da criação de oportunidades e facilidades, permitindo os desenvolvimentos físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade.

Efetivação em termos de política social

Medidas restringem-se ao âmbito da Política Nacional de Bem-Estar Social (Funabem e congêneres); segurança pública; justiça de menores.

Políticas sociais básicas; políticas assistenciais (em caráter supletivo); serviços de proteção e defesa das crianças e adolescentes vitimizados; proteção jurídico-social.

Aspecto Considerado

Código de Menores (Lei 6.697/1979 e Lei 4.513/1964)

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990)

Princípios da política de atendimento

Políticas sociais compensatórias (assistencialismo) e

centralizadas.

Municipalização das ações; participação da comunidade organizada na formulação das políticas e no controle das ações. Estrutura da política

de atendimento aos direitos da criança e do adolescente

O Código traz como retaguarda dos juízes a Funabem, as Febems e os programas comunitários. A Segurança Pública também tem papel central, além da Justiça de Menores.

Muda a concepção sistêmica de política e estabelece o conceito de rede. Cria os conselhos dos direitos, fundos dos direitos da criança e os órgãos executores das políticas básicas, incluindo entre elas os programas assistenciais.

Funcionamento da política

Traçada pela Funabem, executada pelas Febems e congêneres.

O órgão nacional traça as normas gerais e coordena a política no âmbito nacional. Posição do

magistrado

Não exige fundamentação das decisões relativas à apreensão e ao confinamento de menores. É subjetivo.

Garante à criança e ao adolescente o direito a ampla defesa. Limita os poderes do juiz. Mecanismos de

participação

Não abre espaços à participação de outros atores que limitem os poderes das autoridades policial, judiciária e administrativa.

Instâncias colegiadas de participação (conselhos

paritários, Estado-sociedade) nos níveis federal, estadual, e

municipal. Vulnerabilidade

socioeconômica

Menores carentes, abandonados e infratores devem passar pelas mãos do juiz.

Situação de risco pessoal e social propicia atendimento pelo Conselho Tutelar.

Caráter social Penaliza a pobreza por meio de mecanismos como: cassação do poder familiar e imposição da medida de internamento a crianças e adolescentes pobres.

Falta/insuficiência de recursos deixa de ser motivo para perda ou suspensão do poder familiar. O Conselho Tutelar

desjudicionaliza os casos exclusivamente sociais. Em relação à

apreensão

É antijurídico. Preconiza (art. 99, § 4o) a prisão cautelar, hoje inexistente para adultos.

Restringe a apreensão a:

flagrante delito de infração penal; ordem expressa e fundamentada do juiz.

Direito de defesa Menor acusado de infração penal é “defendido” pelo curador de menores (promotor público).

Garante ao adolescente, autor de ato infracional, defesa técnica por profissional habilitado

(advogado). Infração Todos os casos de infração

penal passam pelo juiz.

Casos de infração, que não impliquem grave ameaça ou violência à pessoa, podem sofrer remissão, como forma de

exclusão ou suspensão do processo.

Aspecto Considerado

Código de Menores (Lei 6.697/1979 e Lei 4.513/1964)

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990)

Internação provisória Medida rotineira. Só em caso de crime cometido com grave ameaça ou violência à pessoa.

Internamento Medida aplicável a crianças e adolescentes pobres, sem tempo e condições determinados.

Só aplicável a adolescentes autores de ato infracional grave, obedecidos os princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Crimes/infrações

contra crianças e adolescentes

Omisso a respeito. Pune o abuso do poder familiar, das autoridades e dos

responsáveis pelas crianças e adolescentes.

Fiscalização do cumprimento da lei

Não há fiscalização do Judiciário por nenhuma instância

governamental ou não governamental. Órgãos do Executivo não promovem, em geral, política de participação e transparência.

Prevê participação ativa da comunidade e, por meio dos mecanismos de defesa e proteção dos interesses coletivos, pode levar as autoridades omissas ou transgressoras ao banco dos réus.

Fontes: Código de Menores (1927), Quadro sinóptico comparativo entre as Leis 6.697/1979 e 4.513/1964 (Código de Menores e Política Nacional do Bem-Estar do Menor) e o projeto ECA – Projeto de Lei 1.506 (Câmara Federal/dep. Nelson Aguiar) e 193/1989 (Senado Federal/sen. Ronan Tito). Quadro elaborado por Costa e reproduzido pelo Fórum Nacional DCA, com acréscimos de Pereira (1998) e Santos (1997).

Como é possível depreender, as mudanças são de grande monta; trata- se realmente de uma mudança de paradigma, o qual para se consolidar necessita que o esforço dos que lutaram por esta conquista tenha prosseguimento e incorpore novos sujeitos. É uma legislação ainda nova e que indica a necessária alteração em diversas estruturas sociais, econômicas e culturais para que a conquista formal possa de fato tornar-se substantiva na vida de crianças e adolescentes. Para essa luta, a sociedade civil agora é chamada e dispõe de um novo lócus de atuação, que são os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente.

2.4 Os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente –