• Nenhum resultado encontrado

PARTE I A INEVITABILIDADE DA PALAVRA

2. Um ensino oral: oralidade-gesto (Abbé Deschamps)

2.1 A centralidade do mestre no ensino dos Surdos-Mudos

A educação dos surdos-mudos competia a um mestre dotado de uma grande sensibilidade e paciência, contribuindo para a evolução e o progresso dos alunos. A eficácia da acção educativa dependeria igualmente da disposição dos alunos e das circunstâncias que os fizessem assimilar, pela maneira mais fácil, as lições do mestre e que melhor se lhes adaptasse (Abbé Deschamps, 1779, p. 316). Deste modo, Deschamps esperava que o seu método pudesse contribuir para o exercício da emulação dos sábios e dos verdadeiros amigos da humanidade. Esta forma diferente de educar era “uma ciência nova”, cabendo aos mestres ser muito pacientes e munir-se de uma grande força para atender aos progressos dos discípulos, mesmo que eles fossem pouco sensíveis, num molde educativo que, somente com o tempo e um trabalho de persistência, aperfeiçoasse e desse os seus frutos. Aqueles que se dedicassem a esta forma de ensino, deveriam saber transmitir o alento aos discípulos sempre que os seus esforços se multiplicassem e parecessem em vão, evitando que o desespero neles se instalasse, bem como a falta de vontade e a desconcentração (id., p. xlix).

A chave do sucesso educativo do professor encontrava-se em saber reanimar a coragem, sempre que os obstáculos se interpusessem na sua humanística missão, para prosseguir com sucesso a educação do surdo-mudo. As faltas relativas à aplicação e à coragem eram dois maus aliados, podendo dar lugar às dificuldades e a um entrave à progressão do ensino dos surdos-mudos. Os mestres não podiam esperar um caminho fácil e de glória, pois que o seu trabalho seria demasiado moroso e muito dificilmente seria reconhecido pelas famílias que acreditavam que tal educação podia ser desenvolvida em apenas alguns meses. Apenas sob a protecção do Governo da Nação os Mestres poderiam alcançar a honra e a recompensa pelo árduo trabalho e desgostos que lhes eram inerentes. Promovendo a emulação e a disseminação educativa especial da população surda, dignificando a profissão dos Mestres que se dedicassem a esta arte, o Governo da Nação assumiria tais compensações. No entanto, somente um príncipe, dotado de grande sensibilidade pela felicidade dos povos, consideraria o seu poder para implementar instituições destinadas à educação dos surdos-mudos, manifestando desta forma o seu amor pelos homens (Abbé Deschamps, 1779, p. liij-liv).

A obra de Deschamps, Cours Élémentaire d’Education des Sourds et Muets, principiava com o sistema de educação na forma de sinais metódicos, havendo dois objectos principais que podiam captar a atenção de todas as almas sensíveis: a

linguagem dos sinais e a da fala (Abbé Deschamps, 1779, p. 1). Embora reconhecesse que os sinais ou gestos fossem a linguagem natural dos surdos-mudos, o autor ressalvava não estar provado que esta via de comunicação fosse a melhor para os educar (id., p. 11). Deschamps afirmava que o saber adquirido por via dos gestos ou de sinais era extremamente limitado e moroso de construir no tempo. O conhecimento natural teria de ser complementado com uma educação adequada, onde a fala também pudesse ser entendida pelo surdo, privado do sentido da audição. Sem isso, ficaria incompleto o conhecimento do surdo-mudo no que respeitava à linguagem de sinais e à mímica, que apenas lhe podiam satisfazer necessidades básicas de vida. Faltava facultar-lhes o acesso ao mundo sensitivo, o da fala, acompanhado de gestos e sinais, onde a sua atenção era captada pelos sons desencadeados pelo aparelho fonador, assomando uma capacidade de leitura da fala e elevando o surdo-mudo ao maior grau da racionalidade humana.

Assim, a educação do surdo, para além de contemplar a linguagem dos sinais e dos gestos, deveria abranger o entendimento da linguagem falada pelos seus semelhantes. A representação dos objectos que era vital para a compreensão do surdo não estaria apenas cativa da linguagem de sinais, mas também da linguagem oral, habituando-o a captar a sua atenção para o movimento dos lábios, na articulação das palavras e fazendo-o entender a inteligência da fala. Esta última disposição não era mais difícil de descobrir ou adquirir do que a linguagem gestual. As ideias abstractas iam muito para além do gesto, da imagem do objecto que lhes corresponde, da localização ou do espaço que pudesse ocupar, sendo disso um exemplo a ideia de Deus.

Encontrava-se assim um paradoxo entre a linguagem dos signos e a do discurso oral e sensível, indo esta muito para além da materialidade que era dada a conhecer aos entes privados da audição. A predominância da fala sobre o gesto convencionado e a mímica contradizia os princípios educativos preconizados por l‟Épée quando defendeu que o ensino dos surdos-mudos deveria assentar numa linguagem de sinais que era a sua linguagem natural. De facto, com a adopção de uma sequência de sinais poder-se-ia atenuar a problemática da ausência da fala, impedindo o surdo de confundir sentimentos abstractos com os objectos palpáveis.

Mas para Deschamps, a leitura labial, através da articulação das palavras emitidas pelos seus semelhantes, era fundamental porque mais facilmente o surdo poderia entender a partir do verbo, enquanto signo, a sua conjugação e a acção sobre

todos os objectos. A fala adequava-se à explicação da natureza das coisas que se queria ensinar ao surdo, tal como os gestos o ajudavam a conhecer os objectos. Estava lançada uma das bases para a Educação do surdo-mudo, que assentava em duas áreas da linguagem: a dos signos dactilológicos e a da articulação; a leitura labial, com a predominância do órgão da visão e a sua capacidade física e intelectual para a aprendizagem da fala (Abbé Deschamps, 1779, p. xlviij).

Assim como dois seres, uma vez educados e nutridos da mesma maneira, poderiam desempenhar diferentes papéis na sociedade, no que se refere à formação da moral e da conduta, também os surdos-mudos, uma vez descobertos os meios de lhes ministrar os conhecimentos sensíveis, poderiam desempenhar na sociedade os mesmos papéis que os seus semelhantes. Deus era devolvido àqueles seres, porque, uma vez educados no seu conhecimento, o sistema de comunicação pela fala não os afectaria, tal como não poderia afectar um sistema de fala de uma língua estrangeira e desconhecida a um ouvinte. A fala deveria representar para o surdo não um som, mas a leitura de um registo em que se acostumasse a ter a percepção da posição dos órgãos da fala, na pronunciação das letras e/ ou das sílabas, sentindo a colocação e o posicionamento da língua na cavidade oral, nos dentes; o sopro e seus diferentes graus; a abertura da boca; as forças que se imprimiam na inspiração e na expiração do ar; os lábios mais ou menos cerrados; os movimentos físicos da face necessários. Desta forma, a fala tomava acessibilidade ao surdo, complementando o seu conhecimento, tal como a linguagem dos sinais lhe provia o conhecimento per se.

A linguagem de sinais tomaria a primazia na comunicação entre os próprios surdos-mudos e a da fala com os seus semelhantes na sociedade. Por contraponto, para l‟Épée, a sistematização e a estruturação do ensino dos sinais era a melhor forma de educar os surdos-mudos. Os sinais, os gestos e a mímica, na sua generalidade, substituiriam as funções das diferentes classes de palavras, de uma forma geral, especial e abstracta, podendo ser conjugados e declinados como na linguagem falada. A linguagem dos sinais convencionados eclodia como uma nova linguagem, pelo elemento gesto visual. Esta linguagem gestual faria desabrochar uma arte universal de comunicar, através dos sinais, dos gestos e da mímica, que permitia ao surdo exprimir as ideias, os pensamentos, todas as sensações e percepções abstractas. Era então possível combinar uma diversificada variação de gestos, tal como nas palavras sucintas,

plenas de sentido na linguagem oral, em tudo o que respeitava ao mundo físico, dos objectos, ou à moral.

Com tempo, grande dedicação, reflexão profunda, um julgamento são e com a mais viva e criativa imaginação, associadas ao mais perfeito conhecimento da gramática, l‟Épée iniciava a génese de uma língua gestual no maior grau de perfeição, onde as ideias e as sensações abstractas e a transmissão dos sentimentos seriam passíveis de se revelar pelo surdo-mudo, através da mímica. De acordo com o Abbé Deschamps (1779),

Il était réservé à un génie aussi vaste que le sien, d‟inventer une langue des signes qui pût suppléer à l‟usage de la parole, être prompte dans son exécution, claire dans ses principes, sans trop de difficulté dans les opérations. Voilà ce qui M. l‟Abée de l‟Epée a exécuté avec l‟applaudissement général, et le plus mérité. Quelque belle que soit sa méthode, nous ne la suivons cependant point, fondés sur ce que nous croyons nos principes moins compliqués, plus faciles à être saisis et à être expliqués, beaucoup moins multipliés que ceux des signes; persuadés d‟ailleurs que notre méthode, dans ses effets, produit au moins autant d‟avantages. (pp. 38-39)