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PARTE I A INEVITABILIDADE DA PALAVRA

3. Ensino de uma língua de sinais (Abbé de l‟Épée)

3.5 O método oral

A segunda parte da obra do Abbé de l‟Épée era dedicada ao ensino oral. Nas observações preliminares, o abade chamava a atenção para a controvérsia dos direitos de autor deste método, salvaguardando que tivera acesso a um manual espanhol mas que, para o caso da língua francesa, ele tornara-se absolutamente inútil, senão na inspiração do alfabeto manual que aí se encontrava impresso e na franca possibilidade de o adaptar à língua francesa. Tomou o cuidado de cumprir todos os procedimentos legais para a sua utilização. Já na posse da obra de M. Bonnet, um dos seus assistentes chamara a atenção para que aquela era muito semelhante à obra, em Latim, de Amman, um médico suíço que residia na Holanda, cujo título versava a Dissertatio de loquelá Surdorum & Mutorum.

Assim, uma vez consultadas as duas obras, Abbé de l‟Épée foi por elas guiado, pela excelência que lhes atribuía, e construiu o seu conhecimento com a finalidade de o aplicar na educação dos seus discípulos.

Informava ainda que, ao tempo, se discutia a autoria na inovação da arte de ensinar os surdos a falar, dando-se o mérito inventivo ao espanhol M. Bonnet com a obra Arte para Ensenar à Hablar los Mudos. No entanto, Bonnett era acusado de ter feito plágio de autores mais antigos e Amman, por sua vez, teria copiado Bonnett. Concluía o Autor com a sua opinião relativa à questão do mérito da invenção ou dos plágios entre Autores, aferindo serem questões somenos importantes, porquanto Amman tinha introduzido o seu método na Holanda e Bonnet na Espanha, bem como Wallis na Inglaterra. Pelo avanço da Medicina, outros tantos sábios de vários países, mesmo sem terem acesso às referidas obras, centraram a sua atenção e o maior interesse em conhecer a anatomia do aparelho fonador; uma vez dotados de conhecimentos científicos, trabalharam os órgãos da fala, investigando, pelos mesmos métodos empíricos, o seu funcionamento, durante dias e anos a fio, sendo possível que todos tivessem alcançado resultados semelhantes. Outrossim, enquanto sábios e académicos, certamente haviam consultado as obras de vários Autores que lhes permitiam construir uma “obra nova”, acrescentando o conhecimento. Abbé de l‟Épée elegia dois Mestres que se haviam dedicado ao ensino dos surdos-mudos, os quais, em sua opinião, representavam as “duas chamas de luz” que aclararam a mente, dando-lhe um grande impulso no desenvolvimento da sua Arte, não somente ao tomá-las como referência,

mas igualmente por se terem apropriado delas ao ponto de conseguirem construir o seu próprio método.

Abbé de l‟Épée firmava-se na experiência de ter educado gémeas surdas, pela arte dos signos metódicos, e fundamentava-se num conselho que houvera recebido, aos 16 anos, do seu professor repetidor de Filosofia – o qual, segundo o Autor, era um excelente metafísico, pois havia-lhe demonstrado que não há qualquer ligação natural, entre as ideias metafísicas e as palavras que o ser humano capta através dos ouvidos, podendo estas ser igualmente entendidas através da escrita, ao serem captadas pela visão. O desenvolvimento das ideias metafísicas dependeria da inteligência humana e do entendimento do seu significado, sendo independente das formas ou modos, mais ou menos eficazes, na arte de transmissão aos discípulos. Fora a partir daquele momento que o Autor desmistificara a centralidade e a importância da oralidade e da acuidade auditiva, enquanto eixos únicos de transmissão e de aquisição dos conhecimentos, havendo muitos outros factores ou meios que poderiam ser utilizados na arte de ensinar a metafísica ou de alcançar o pensamento abstracto. Desta forma, fizera a sua primeira incursão na arte de educar os surdos pelo método dos sinais (Abbé de l‟Épée, 1784, p. 159).

Todavia, como consignara um capítulo ao ensino da oralidade nos surdos- mudos, Abbé de l‟Épée introduzia o método de articulação das vogais e sílabas simples, instruindo o leitor na forma como procedia no domínio do ensino oral. Primeiramente, o mestre cuidava da higiene dos seus discípulos, mandando-os lavar correctamente as mãos. Seguidamente, traçava a vogal “a” na mesa e, tomando a mão do aluno, fazia entrar o 4.º dedo na boca do mestre, até à segunda articulação. Nesse momento, o professor pronunciava forte e claramente a vogal “a”, chamando atenção para que a língua do professor ficava quieta elevando-se ligeiramente até ao nível do seu dedo. Durante este ensaio, o aluno conservava o dedo na boca do mestre e posteriormente tinha lugar o ensino da vogal “e”, retomando o mesmo procedimento, mas, desta feita, fazendo observar que a língua do professor se elevara um pouco mais. Tinha então lugar um novo procedimento, ao mudar o dedo do aluno para o local do palato; neste momento retomava a articulação da mesma vogal, observando que a língua do mestre se aproximava dos dentes caninos e que a sua boca não se encontrava totalmente aberta no ensino dos diferentes fonemas da vogal “e”.

Após estas operações, o mestre invertia os papéis e era ele que introduzia o dedo na boca do discípulo, para que o mesmo pudesse imitar e operacionalizar as duas vogais “a” e “e”, obtendo a atenção visual do surdo em todos os procedimentos. As acções eram sempre secundadas pela escrita da vogal, na mesa ou no quadro. Desta forma, continuava o ensino de “l‟a” e “l‟é”, seguidamente “i”e “l‟i”. Já para a vogal “o”, apenas deveriam perceber o som emitido através dos lábios, que se posicionavam de uma forma própria, pronunciando o som a que lhe correspondia. Para a vogal “u” o mestre simulava apagar uma vela ou uma pequena chama e sucessivamente descrevia, em pormenor, todos os sons que se deveriam articular para as restantes letras do alfabeto.

Abbé de l‟Épée afirmava a necessidade de os alunos serem ensinados por um mestre hábil e inteligente, que os fizesse operacionalizar todas as fases no ensino da oralidade (Abbé de l‟Épée, 1784, p. 170). Era ainda necessário que o ar emitido pela fala fosse canalizado para os órgãos próprios do aparelho fonador, de modo a que os surdos aprendessem a desviá-lo directamente dos pulmões. Para remediar tal situação, o mestre conduzia a mão do surdo à sua garganta, perto do nó, fazendo-os sentir as diferenças nas vibrações dos sons, nas suas diversas partes, como as consoantes “q” “g” “r” e outras, como “p” e o “t” que retomavam a boca, a lìngua, o palato e os dentes (id., pp. 172-196). Introduzia depois as consoantes e vogais, nomeadamente “pa, pe, pi, po, pu”, fazendo notar à criança o movimento cerrado dos seus lábios e a saìda do ar, com uma certa violência, devendo os alunos repetir sempre os exercícios. O mesmo para o ensino dos dissìlabos “bá, bé, bi, bo, bu”, dado que o “b” era uma vogal que se pronunciava de forma mais suave que o “p”. Para ensinar estas diferenças, o mestre posicionava a sua mão sobre a do aluno ou sobre o seu ombro e comprimia-a fortemente, fazendo-o olhar para os seus lábios que se apresentavam fortemente comprimidos, um contra o outro, logo que pronunciasse a palavra “pa”. Após, pressionaria mais suavemente a mão ou o ombro do discípulo, comparando à menor pressão que exercia quando pronunciava as palavras “ba, bé, bi, bo, bu”. Introduzia então a letra “t”, sempre acompanhando com o registo escrito, “tá, té, ti, to, tu”, fazendo os alunos observar a ponta da língua entre os dentes, ao nível superior e inferior, e levava os seus dedos perto do local onde emitia um pequeno sopro (p. 175). Para maior facilidade na compreensão da arte de ensinar a falar os surdos, erigimos um quadro síntese, contendo o faseamento das lições e o seu grau crescente de dificuldade, a saber:

Quadro 5

Síntese dos conteúdos das lições no método do ensino oral Registo

escrito

Apresentação das sílabas e sua

articulação

Prosódia: protocolo da acção educativa

Escrita das palavras sobre a mesa ou quadro “d”: “dá, de, di, do, du”

A letra “d” soava como um amolecimento da letra “t”. O mestre deveria proceder à distinção entre as duas consoantes ao bater fortemente com a ponta do dedo indicador direito, na mão esquerda. De seguida, repetia o gesto mas com um bater mais suave, na mão esquerda. Para sentir o som da consoante seria feito o mesmo procedimento para a letra “t”.

“f”: “fá, fe, fi, fo, fu”

A letra “f” era a que apresentava maior facilidade de se pronunciar. O mestre pronunciava fortemente a sìlaba “fá” e posicionava a parte dental superior, sobre o lábio inferior, fazendo os alunos sentir o ar expirado ao pronunciar as sílabas.

“v”: “va, vé, vi, vo, vu”

O mestre tomava a mão do aluno posicionando-a na horizontal a quatro dedos de distância do seu queixo. Nessa altura soprava de uma maneira sensìvel, o fonema “v”, fazendo alguns jogos de distinção entre os fonemas “f” e “v”. “z”: “za, zé, zi,

zo, zu”

Os mesmos procedimentos anteriores, mas fazendo observar a posição dos lábios e da língua no palato e nos dentes.

“ch”: “cha, ché, chi, cho, chu”

O mestre posicionava o dedo dentro da boca e chamava atenção para o forte impulso que dava na saída do ar ao pronunciar a sílaba. Que o meio da língua era pressionada no palato, distendendo-se e vindo bater nos dentes molares. Os surdos teriam oportunidade de colocar a sua mão em frente da boca do mestre sentido a vibração ao pronunciar a sílaba “cha”. De seguida, o mestre repetiria o mesmo procedimento mas na cavidade oral dos alunos.

“ca”: “…, …,co, cu”

Com a mão do aluno em torno da sua garganta para que pudesse sentir claramente o som emitido, o mestre pronunciava fortemente a sìlaba “ca”. De seguida, mostrava que a sua língua recuava na cavidade bocal para logo se unir ao palato e fazia observar o efeito da pressão nos flancos laterais da cara (ou bochechas). O aluno repetiria a mesma acção coadjuvado pelo mestre.

Logo que os alunos pronunciassem as sílabas anteriores, não haveria dificuldade em adquirir as seguintes, decorrente das semelhanças na articulação.

“Ka”: “Ké, Ki, Ko, Ku”

“Qua”: “qué, qui, quo “

“Ga”: “gué, gui, go, gu”

Estas apresentavam uma pronúncia mais suave do que as sìlabas anteriores, fazendo notar que o “g” sem a vogal “u”, e junto de um “é” e de um “i”, pronunciavam-se como “jé” e “ji”. O mesmo procedimento tinha lugar em torno da garganta do mestre, salvaguardando que a impulsão do ar era feita de forma mais suave.

“la”,lè, li. Lo, lu

Em primeiro lugar o Mestre fazia observar que a sua língua se dobrava sobre si própria, batendo com a ponta no palato; em 2.º, que a língua se soltava suavemente para produzir a sílaba “l”, para logo se reposicionar para pronunciar a sìlaba “a”, exemplificando com a observação de um gato e a posição da sua língua, quando bebia o leite ou a água.

“ma”: “mé, mi, mo, mu”

Já para as sìlabas “ma” o trabalho era retomado em torno dos lábios que se juntavam e cerravam, tal como se fizera com os fonemas “p” e “b”, não havendo uma pressão tão grande nos lábios como para as consoantes anteriores. E ainda que o ar deveria ser expelido pelo nariz. Assim o mestre fazia os alunos sentir a pressão dos lábios e com os seus dedos indicadores posicionavam-nos sobre as narinas do mestre.

“na”: “né, ni, no, nu”

A letra “n” podia pronunciar-se de forma semelhante à letra “t”, trazendo a parte posterior da lìngua para perto dos dentes incisivos superiores, pressionando-os firmemente, onde os alunos durante o procedimento colocariam os seus dois dedos sobre as duas narinas do mestre.

“ra”: “ré, ri, ro, ru”

Referia o Mestre que o Dr. Amman afirmava ser esta a sílaba de maior grau de dificuldade em articular. l‟Épée contornava o problema, sorvendo um pouco de água e uma vez dentro da boca executava os movimentos necessários para se efectuar um gargarejo. De seguida, os surdos operacionalizavam a actividade. O mestre recorria ainda à apalpação em torno da garganta fazendo-os sentir a vibração própria. E ainda, quanto à cavidade bocal fazia sentir a semelhança na sua abertura tal como na vogal “e”.

“e”, “eu”, “uo”

Para o “e” mudo fazia notar aos alunos as diferenças na abertura da cavidade oral e nos lábios, onde o ditongo “eu” também merecia uma atenção especial. E ainda a pronúncia do “uo” que se referia quanto à sua localização à garganta e à boca e o ditongo “eu”, ao lábio inferior, um pouco mais descaído. Para tal o mestre recorria à ideia da forma como sopravam nas mãos durante o Inverno para as aquecerem, emitindo naturalmente o som “eu”.

Fonte: Adaptação à Segunda Parte da obra La Véritable Manier

d’Instruir… (1784), de Abbé de l‟Épée