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PARTE I A INEVITABILIDADE DA PALAVRA

2. Um ensino oral: oralidade-gesto (Abbé Deschamps)

2.2 Representações simbólicas do surdo-mudo na aprendizagem da fala

Com ecos da filosofia de Rousseau, a natureza estava presente na educação da criança surda. Tal como a aprendizagem natural do nome dos objectos que rodeiam a criança que utiliza o órgão da audição, também à criança surda se deveria dar as mesmas oportunidades de aprendizagem, aprendendo a ler com os olhos a fala e o nome de todos os objectos da natureza. Contudo, para que existisse sucesso nesta incursão educativa era necessário que a criança surda aprendesse a servir-se do órgão da visão, sem qualquer dificuldade e de forma espontânea, da mesma forma que os seus semelhantes se serviam do órgão do ouvido; deveriam ser diligenciados todos os esforços para lhe captar atenção nas mensagens articuladas pelos lábios, entendendo a ordem e os nomes dos objectos, memorizando-os. De modo natural, desde a infância, aprenderia a ler a fala dos ouvintes, captando mais facilmente o mundo físico, aprendendo com e no meio que a rodeava. Entendia Deschamps que os mestres, ao iniciar a instrução de um surdo, envidariam esforços para que a criança entendesse o que queriam que ela aprendesse: através da fala, aprender a leitura labial, com o auxílio do alfabeto manual ou dactilológico. Uma vez adquirida a capacidade de ler nos lábios e já familiarizada nesta leitura, a criança surda deveria ser introduzida no mundo da

escrita, para se lhes fazer entender o significado das palavras (Abbé Deschamps, 1779, pp. 50-59).

Na explicação do sentido da fala às crianças e jovens surdos, o ensino de palavras ou frases relacionadas com as necessidades básicas do ser humano (tais como beber ou comer) eram um objecto de aprendizagem muito fácil de adquirir pela criança, dizendo respeito ao mundo físico. Mas o ensino da história da religião e da moral, para além de ser mais complexo de ministrar, era também uma necessidade indispensável, porque dele dependia a formação do coração, da bondade, do carácter e a pureza das almas. No ensino da religião qualquer ser humano encontraria refúgio nas horas de maior angústia ou infortúnio, formando um crente e um cidadão.

Com o recurso à imagem, iniciava-se o ensino da cronologia e eram apresentados os acontecimentos mais importantes da história das religiões, incluindo o princípio da criação e uma sucessão gradual das matérias a ministrar. A escrita da palavra Deus seria assim apresentada ao aluno. Passar-se-ia o mesmo com a palavra terra; o terceiro objecto era o sol, para depois ensinar a ideia do firmamento. O quinto objecto era o mar, o sexto a erva, o sétimo, as árvores, os peixes na oitava; as aves tinham lugar na nona e na décima lição, os animais terrestres, na décima primeira o objecto de ensino seria apresentação do homem e da mulher. Após a exposição dos objectos e da sua representação figurativa, o mestre escreveria os seus nomes e, uma vez inculcados na memória, os alunos teriam de lhes fazer corresponder a imagem. Tinha então lugar o registo escrito dos objectos pelos alunos, podendo o mestre testar as suas capacidades para aprendizagem. Por fim, a fase do conhecimento de Deus como um ser omnipotente, todo-poderoso e acima de todos os objectos sobre a terra, bem assim como a ideia de finito e de infinito, terminava com a ideia de eternidade, pelo registo escrito e após a leitura de viva voz. Depois, o mestre introduziria as perguntas e respostas (tais como, quem fez o mundo?, como fez Deus o mundo?), a que o aluno respondia de imediato para que se habituasse a distinguir as perguntas das respostas (Abbé Deschamps, 1779, p. 60-68).

A prática pedagógica incidia no exercício da leitura, enquanto pintura de palavras, e na dactilologia: “Je ne reprends point mes élèves dans ce cas, au contraire, je les applaudis, comme s‟ils eussent prononcé la lettre que j‟avais exigé d‟eux” (Abbé Deschamps, 1779, p. 232). Inspirado no manual de M. Viard, Les Vrais Principes de la Lecture, de l'Orthographe et de la Prononciation Françoise…, de 1764, e num

silabário, da autoria de Jacob Pereira, impresso em Orleães, em 1760, a obra de Abbé Deschamps reunia as ideias mais brilhantes para a orientação dos mestres no ensino dos surdos-mudos, contidas nas duas obras (id., p. 314).

Figura 2

Les Vrais Principes de la Lecture, de l’Orthographie et de la Prononciation Françoise… (1764), de M. Viard

Para Deschamps, o mestre teria sempre um comportamento de ternura e benevolência, inteirando-se do bom estado da saúde da criança, pois era mais uma disposição natural que poderia impedi-la de aprender. O sucesso na aprendizagem dependeria mais do próprio surdo do que do professor, devendo este preocupar-se com as duas disposições essenciais: a vontade para aprender e o exercício da razão.

Da razão dependeria a compreensão do aluno do porquê da aprendizagem. Se o surdo não ouve, não sabe o que é a fala, nem a sua razão de ser. Os esforços do professor poderiam assim cair na maior inutilidade, no insucesso e no desânimo. O mestre deveria fazer entender ao discípulo o objecto da aprendizagem, fazendo nascer nele a disposição e a vontade para aprender. Os mecanismos mais adequados para desencadear a vontade consistiam “na maneira mais natural” do surdo entender as

diferentes fases da aprendizagem e como eram colocadas em prática; servindo-se da fala e dos sinais, o mestre far-lhe-ia entender que, tal como qualquer ouvinte, ele também poderia fazer a leitura da fala: ler o movimento dos lábios seria como um “exercìcio de pintura das palavras”, conforme se poderia desenhar qualquer personagem num papel. O mestre deveria ainda exemplificar o mecanismo do funcionamento de uma aula com alguém que não fosse surdo, fazendo entender que a interacção entre os dois se baseava entre aquele que perguntava e no que respondia, podendo acontecer essa interacção em papéis alternados.

Estes procedimentos tinham como objecto exemplificar como se desenvolvia uma aula, no mundo da oralidade. Os mecanismos desencadeados pelo órgão da fala podiam mesmo ser adaptados ao mundo dos surdos, bastando recorrer à leitura labial e ao abecedário gestual, para desencadear a interacção na comunicação e na aprendizagem: “A ces principes indispensables nous joignons ceux de l‟Alphabet dactylologique, ou manuel, qui n‟est autre chose qu‟en espèce d‟écriture qui se fait par le moyen des doigts” (Abbé Deschamps, 1979, p. 84).

Após o exercício de entendimento do objecto do ensino e a sua aprendizagem, tinham lugar a leitura e o registo dactilológico e posteriormente o registo escrito. Com recurso ao alfabeto manual, o mestre introduzia a interpretação e a compreensão do exercício da fala, com as variações físicas que o aparelho fonador apresentava: a posição dos vários órgãos durante fala e o efeito sonoro que produziam, sendo registados através da vista, do toque, da respiração e da expiração, do sopro, da posição mais ou menos cerrada dos lábios, das bochechas mais ou menos cheias, da posição da língua em relação aos dentes e ao palato, da variação do ar pelas narinas, entre muitas outras combinações que a criança deveria conhecer, vivenciar e apreender.

O exercício táctil visual do mecanismo do aparelho fonador era auxiliado através do uso do alfabeto manual, despontando um registo desenvolvido pelo movimento dos dedos. Estes exercícios necessitavam de ser ministrados numa relação individual com o mestre, dado que era um ensino sensorial onde o aluno deveria sentir, pelo toque, a garganta do mestre e todas as demais variantes na emissão dos sons, utilizadas no aparelho fonador e em si próprio. Os exercícios, como pormenorizado pelo Abbé Deschamps (1779) deveriam ainda ser introduzidos segundo uma ordem progressiva guiada pelos diferentes níveis de dificuldade:

L'ordre dans lequel nous rangeons les lettres qu'on leur apprend, nous a toujours réussi. C‟est lui de M. l‟Abbé de L‟Epée, dans le dixième Chapitre de son Ouvrage. Nous joindrons nos réflexions aux principes de ce célèbre Auteur. Nous ne négligerons point non plus l‟Alphabet manuel (p. 84).

Figura 3

Division des Lettres. In Les Vrais Principes de la Lecture… (1764), de M. Viard

A articulação das sílabas exigia exercícios continuados, paciência e um tempo indefinido: “Lorsque l‟usage a rendu la prononciation des voyelles, nous passons aux demi voyelles, qui sont un peu plus difficiles à saisir, est surtout les nasales” (Abbé Deschamps, 1979, p. 323). A ordem de aprendizagem das letras do alfabeto era a regular. As vogais eram o objecto primeiro do ensino, sendo ministrada em simultâneo a forma como se pronunciavam, atendendo à abertura da cavidade oral, explorando o movimento espacial da língua no palato inferior ou superior, nos dentes, bem como o ar inspirado ou expelido. Tratava-se de um verdadeiro e meticuloso jogo táctil e visual de descoberta dos sons das sílabas, suas combinações e o seu processamento. Faseadamente, eram introduzidas as semi-vogais e as consoantes que, uma vez juntas às vogais, tinham a mesma pronunciação e por ordem gradativa de outras consoantes, cuja

articulação iria da mais fácil de ser entendida, às mais difíceis: P, B, M, T, D, N, F, V, L, S, Ç, J, Z, X, C, QU, G, GU, R.

Figura 4

Alphabet manuel figuré. In Cours Élémentaire… (1779), de l‟Abbé Deschamps

Para uma melhor compreensão, era introduzido um quadro metodológico das letras do alfabeto, com a classificação da pronunciação de todas as vogais, semi-vogais e consoantes (cf. Figura 5). Os exercícios práticos seriam fundamentais para a aprendizagem da criança surda, dado que não havia um domínio mais difícil de apreender do que outro, por parte de quem se encontrava privado do sentido da audição. Apenas a forma do posicionamento da garganta e da laringe, a maior ou menor abertura da boca, a maior ou menor força na saída do ar, o posicionamento da língua no palato ou nos dentes, poderiam orientar a criança para o som da vogal ou da consoante que se lhe ministrava, acompanhando todos os movimentos do som na fala, de forma táctil e visual, e em simultâneo, com o recurso à aprendizagem do alfabeto manual e do registo escrito.

Figura 5

A combinação do som das sílabas para formar o som das palavras e a construção das frases era um processo muito moroso. Por isso, na aprendizagem da criança surda, o tempo não era computado de forma convencional (Abbé Deschamps, 1979, p. 114). Numa fase adiantada, seria necessário preparar os alunos para fazer leituras sucessivas, devendo o mestre, paralelamente, introduzir-lhes as noções e o sentido das palavras que liam. As frases deveriam ser curtas, claras, distintas e fáceis de decifrar, introduzindo o jogo de palavras pela sua analogia (id., p. 120).

Logo que estivesse adquirida esta etapa do ensino, o mestre introduziria a aprendizagem dos pronomes pessoais e a forma verbal, na primeira, segunda e terceira pessoa; seguiam-se-lhes os pronomes possessivos e relativos, considerados de um grau de menor dificuldade, dado que facilmente se substituía os nomes dos alunos pelos pronomes. Tomava então lugar a apresentação dos preliminares da religião, começando o professor por abordar as profissões. Partiria da apresentação de algumas matérias- primas e objectos que delas provinham e por quem eram transformados. A título de exemplo, o mestre poderia apresentar uma pequena caixa de madeira, em cujo interior se encontrasse um pedaço de chumbo ou de tecido, e ensinaria às crianças as profissões associadas que tinham contribuído para apresentação desses objectos, tal como a colher ou o garfo, uma peça de vestuário ou a própria caixa de madeira. Servindo-se de questões, em ideias encadeadas, o mestre perguntava aos discípulos por quem era feito o vestuário, as casas, seus diferentes tipos, as janelas, os muros, até alcançar a ideia de Deus e o princípio da criação. No ensino da criação servir-se-ia de um relógio, desconstruindo as diferentes fases da sua produção, sendo este como que uma montra de objectos necessários e úteis onde também as crianças surdas a poderiam construir, segundo as suas necessidades, fazendo associações contínuas, até chegar ao criador último, o do homem, ou seja, a Deus (Abbé Deschamps, 1979, pp. 82-129). Para a instrução da religião dos meninos surdos era necessário que o professor se apoiasse em quadros de cenas bíblicas. Tinha lugar o ensino do antigo testamento (id., pp. 129-136).

Para a aprendizagem da escrita deveria existir uma mesa adaptada, cujo tampo teria uma prateleira separada por 28 caixas, contendo tantas gavetas, quanto o número de letras do alfabeto e os sinais de pontuação. Os caracteres encontravam-se gravados em relevo, para a identificação táctil, sobretudo destinados aos meninos cegos. No interior de cada gaveta, e à letra/caracter a que lhe correspondia, os alunos disporiam de mais vinte e cinco modelos da mesma letra.

Figura 6

Mesa para aprendizagem da escrita

Apresentado o objecto de aprendizagem, o mestre deveria introduzir a palavra que lhe correspondia, devidamente colocada no primeiro de três sulcos, esculpidos na direcção horizontal do tampo da mesa. No caso dos alunos cegos, o tacto teria um papel muito importante na memorização, ao deslizarem os dedos sobre o relevo da letra. Uma vez memorizada a letra (as vogais, consoantes ou palavras), os alunos construiriam, de forma autónoma, a mesma letra ou palavra, no segundo sulco da mesa, podendo ir buscar, por meio da identificação visual ou táctil, tantas letras quantas fossem necessárias para as reproduzirem. Estes exercícios seriam executados de forma gradual, até à formação de uma frase que exigiria, por parte dos alunos, um conhecimento mais adiantado, quer pelos espaços requeridos entre as letras e a que os sulcos imbuídos no tampo também previam, quer pela necessidade do recurso aos sinais de pontuação. Pela forma operante, atingia-se as bases da sintaxe e da escrita, na educação dos surdos- mudos e dos meninos cegos (Abbé Deschamps, 1979, pp. 173-175).

As “novas técnicas” no século XVIII, como a mobìlia adaptada, letras em relevo, espelhos, penas, o alfabeto manual e uma educação pela acção táctil visual amoldavam- se à ausência de uma sensoralidade e à aprendizagem específica dos surdos-mudos e cegos, sendo concebidas como meios próprios para facilitar o acesso à aprendizagem da leitura e da escrita.

A educação e o ensino dos surdos demandavam aos mestres grande inteligência, paciência e determinação, bem como um conhecimento individual e atento dos seus discípulos, onde cada criança exigia o recurso a diferentes formas no acesso à aprendizagem da linguagem. A relação individual era um meio para obter um conhecimento mais aprofundado do aluno, exigindo uma relação de proximidade com o mestre, onde o elemento táctil visual tomava grande relevância neste processo de aprendizagem, como esclarecido pelo Abbé Deschamps (1779):

J‟approche donc sa main de mon gosier, que je lui fais toucher, et il sent à merveille ce mouvement de tremblement qui s‟y passe, lorsque je rends un son. Je lui fais mettre ensuite cette même main sur son propre gosier, et je lui fais signe de m‟imiter; par- là il parvient à modérer, à son gré, sous le doigt, sa voix, de telle manière qu‟il est bientôt en état de percevoir les plus légers accents. ... C‟est de la même manier que je déshabitue mes Elèves de jeter ce cri désagréable qui est familier à presque tous les sourds, et qui diffère singulièrement de la voix ordinaire. (p. 318)

Este processo era moroso e exigia grande disponibilidade da parte do professor, que necessitaria ser coadjuvado nessa arte por um outro adulto ouvinte, quer ao nível da continuidade do ensino no domicílio, quer durante a aula e o recurso de um espelho: “Pour lui faciliter ce travail, je lui place un miroir devant les yeux; par-là il acquiert plus aisément l‟habitude des mouvements multipliés et divers de la langue, de la mâchoire et des lèvres, nécessaires pour former des voyelles” (id., p. 319). As lições dactilofonéticas não demorariam mais de duas horas e, nalguns casos, um quarto de hora, sendo necessário pelo menos duas semanas para que a criança surda soubesse de cor as orações dominicais26.

Pelo paradigma da oralidade, a educação dos surdos-mudos pedia um modo de ensino individual, moroso, meticuloso, táctil-visual; uma forte capacidade de atenção; uma relação dual, mesmo físico-sensorial, entre o mestre e o aluno surdo; sólidos conhecimentos científicos, quer da gramática, quer da fisiologia humana. O processo da oralidade deveria ser desenvolvido em pequenos grupos aprendentes, sempre coadjuvado por um segundo adulto. O recurso a materiais inovadores facilitava o acesso

26 Abbé Deschamps pormenoriza estes dois aspectos da seguinte forma: “Rien n‟est plus aisé à prononcer que ces différentes lettres; et la méthode que j‟ai donné précédemment, m‟a toujours tellement facilité leur enseignement, que je ne me ressouviens pas d‟avoir employé pour elles plus d‟un quart d‟heure d‟instruction” (Abbé Deschamps, 1779, p. 331); “J‟appris également au fils d‟un Tailleur d‟habits, d‟Amsterdam, né sourd est muet, dans le cours de deux semaines, à lire et à savoir par coeur toute l‟Oraison dominicale” (id., p. 327).

à aprendizagem, requerendo uma grande capacidade criadora por parte de quem se dedicava ao ensino do sujeito com deficiência sensorial auditiva.