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PARTE I A INEVITABILIDADE DA PALAVRA

1. Renovação do ensino dos surdos-mudos (Jacob Rodrigues Pereira)

Oriundo de uma família de cristãos novos portugueses, ligada ao comércio da seda e do veludo na cidade de Bragança, Jacob Rodrigues Pereira (n. 1715 – m. 1780) perfilou-se no movimento do jeovismo, em França (Salgueiro, 2010), sendo-lhe atribuído um certo pioneirismo na mestria do ensino dos surdos-mudos.

Com a idade de 19 anos, Jacob Rodrigues Pereira19 diligenciava já estratégias apropriadas para ministrar o ensino dos surdos-mudos. A sua criatividade consistiu em alicerçar-se nos conhecimentos dos autores atrás nomeados e em aglutiná-los à sua intensa investigação, que se centralizou nos domínios da anatomia, da fisiologia e da linguística, particularmente no conhecimento dos órgãos da fala e da fonética. Durante uma década de investigação, associou a teoria à prática educativa, na arte da comunicação dos surdos, dado que pôde promover um ensino laboratorial que ministrava a alguns alunos surdos profundos ou com vários graus de surdez. As origens sociais destes alunos eram diversas, sendo que parte deles era proveniente de famílias pobres (Deusdado, 1995, pp. 323-330).

Data de 1745 a comprovação de ensaios educativos de Jacob Rodrigues Pereira, que se materializaram na apresentação pública de um aluno surdo de nascença, Aaron Beaumarin, que, ao atingir a centésima lição, pelo método de articulação, pronunciava a maior parte dos sons e um certo número de palavras (Deusdado, 1995, pp. 17-18)20.

19 Jacob Rodrigues Pereira nasceu em Abril de 1715, havendo desacordo quanto à sua nacionalidade: “uns dão-no como espanhol, outros reconhecem-no como português. Com efeito nasceu em Espanha no momento que seus pais viajavam na fronteira portuguesa desse país, mas os seus progenitores tinham casa em Chacim desde o século XV, como nos afirmou oralmente em Paris no ano de 1890 o seu bisneto Eugénio Pereira, banqueiro em Paris e conde de Pereire em Portugal, por graça de El-Rei D. Luìs I” (Deusdado, 1995, p. 325).

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De acordo com Seguin, os anos em que decorreram as apresentações diferem sensivelmente: “au mois de juillet 1746; au bout de quatre mois, il prononçait déjà des syllabes et des mots; et, après dix moins, il avait déjà l`intelligence d‟environ treize cents mots, et il les prononçait tous assez distinctement. Cette éducation, si heureusement commencée, fut interrompue pendant neuf moins par l‟absence du maître, et il reprit son élève qu‟au moins de février 1748. Il le trouva bien instruit qu‟il avait laissé; sa prononciation

Pereira manteve a continuidade do seu método com Asy de Etavigny, um outro aluno da sua mestria, cujo ensino teve o apogeu na apresentação ao rei Luís XV. O rei, impressionado com a eficácia deste método, intentou criar uma Cadeira para o ensino dos surdos no Colégio de França (Deusdado, 1995, pp. 17-18). O sucesso desta intervenção educativa foi alvo de publicitação nas Gazetas francesas da época, bem como da atenção de diversos intelectuais das Academias francesas (id., ibid).

A Jacob Rodrigues Pereira foi ainda confiada a educação de uma sobrinha do Vice-Rei da Sardenha, surda-muda21. O seu método de articulação, associado ao alfabeto manual espanhol (do qual adaptou oitenta sinais), bem como ao ensino da ortografia com apelo aos sentidos remanescentes, como o da visão e o do tacto, perdurou no tempo, sem contudo ter sido devidamente sistematizado e/ ou compendiado. Daí resultou uma perda incontestável para a educação dos surdos, então considerados na condição racional “um pouco acima dos animais”. O que dos seus métodos se conhecia foi sendo aplicado por vários mestres que receberam formação no colégio de Bordéus e do Sr. Magnat, em Paris, onde Pereira exerceu funções. O seu método foi aplicado nas melhores escolas, porquanto o seu pensamento já anunciava a modernidade pedagógica. Seguin (1847) manifesta da seguinte forma o seu apreço:

Alors je ne tardai pas à m‟apercevoir qu‟en recherchant une méthode perdue, je retrouvais, dans l‟auteur de cette méthode, une des têtes éminentes du dix-huitième siècle. A cette découverte, consulter les documents imprimés de cette époque, recourir aux titres de famille qui me furent ouverts par les petits-fils de Jacob Rodrigues Pereire eux-mêmes, et par leur respectable oncle, M. J. Rodrigues, tel fut mon premier élan. (pp. 6-7)

Para Seguin, deve-se ao ilustre judeu português Jacob Rodrigues Pereira – “On appelait alors indifféremment Juifs portugais ou nouveaux chrétiens les premiers Israélites admis légalement en France par les ordonnances de Henri II” (Seguin, 1847, p. était devenue très vicieuse, et la plupart qu‟il avait appris étaient sortis de sa mémoire, parce qu‟il ne s‟en était pas servi pendant un assez long temps pour qu‟ils eussent fait des impressions durables et permanents. M. Pereire commença dont à l‟instruire, pour ainsi dire, de nouveau, au mois de février 1748, et, depuis ce temps, il ne l‟a pas quitté jusqu‟à ce jour (juin 1749). Nous avons vu ce jeune sourd et muet à l‟une de nos assemblées de l‟Académie; on lui a fait plusieurs questions par écrit, il y a très répondu, tant par écriture que par la parole” (Seguin, 1847, pp. 3-4). Também de acordo com Aron Borg, J. Pereira era “ um português” que se ocupava “em 1740 em La Rochelle com a Educação dos Surdos- Mudos, e depois em Paris no ano de 1748 adoptando o método dos sobreditos espanhóis Ponce, e Bonnet, e depois que ele perante a Academia das Ciências em Paris fez examinar em 1751 o seu mais hábil discípulo Sabronneaux de Fontenay enteado do duque de Chaulnes…” (Aron Borg, 1828, pp. 17-18).

21 Jacob Pereira foi ainda convidado pelo Vice-Rei da Sicília a tomar em suas mãos a educação da fala de uma filha surda do Vice-Rei, mas ficou impossibilitado de assumir de imediato o contrato educativo em Palermo (Seguin, 1847, pp. 45-46).

2). Ainda para este mesmo autor, deve-se a Rodrigues Pereira o início da mestria do ensino oral dos surdos na França:

Nous pouvons citer à ce sujet un fait tout nouveau dont nous venons d‟être témoins. M. Jacob Rodrigues Pereire, Portugais, ayant cherché les moyens les plus faciles pour faire parler les sourds et muets de naissance, s‟est exerce assez long temps dans cet art singulier pour le porter à un grand point de perfection. Il m‟amena, il y a environ quinze jours, son élève, M. d‟Azy d‟Étavigny. Ce jeune homme, sourd et muet de naissance, est âgé de dix-neuf ans. (p. 2)

Edouard Seguin reuniu todos os documentos que existiam na época e constatou que Jacob Pereira iniciou os seus estudos na arte de ensinar os surdos, sendo ainda um jovem adulto – “Quand Pereire commença, il sortait presque de l‟adolescence” (Seguin, 1847, p. 17). Com base numa carta que Jacob Pereira recebera (em 9 de Setembro, expedida de Bordéus, no dia 23 de Agosto de 1734, cujo emissário era o senhor Bardot), Seguin conclui que, no ano de 1734, com a idade de 19 anos, o interesse de Pereira pela arte de ensinar os surdos era uma realidade. O conteúdo expresso na missiva referia-se a um pedido de informação que Jacob Rodrigues Pereira expressara a Bardot sobre todas as obras existentes consagradas ao ensino dos surdos-mudos de nascença. A carta informava não só de uma vasta listagem de obras dedicadas ao ensino dos surdos, como também de outras ajudas para o ensino de alunos com surdez; mas Bardot dava como adquirido que de pouco serviriam a Jacob Pereira estas informações dado ser intenção deste último ensinar a falar os meninos surdos de nascença (id., p. 19).

Apenas no início do ano de 1745, após uma dezena de anos dedicados ao estudo dos surdos no maior sigilo, Jacob Pereira apareceu em público, perante Academia do Colégio dos Jesuítas, com o menino Aaron Beaumain, de 13 anos, surdo de nascença, provando que, em pouco tempo, lhe ensinara a pronunciar as letras do alfabeto e mesmo algumas frases correntes. Decorrente daquela apresentação pública, d‟Azy d‟Etavigny, tesoureiro real dos impostos em La Rochelle, confiar-lhe-ia a educação de seu filho. Seria a partir dos contratos celebrados entre Etavigny e Pereira que se delinearia o esboço metodológico na arte de ensinar os surdos de nascença deste pedagogo, já que Jacob Rodrigues Pereira sempre se pautou pelo sigilo no seu método de ensino.

Nos quadros 1 e 2, apresenta-se uma sistematização do método de ensino de J. Rodrigues Pereira.

Quadro 1

Planeamento anual: A acção pedagógica de Jacob Rodrigues Pereira Início da

prestação de serviços

14-06-1746

Pagamento “3,000 livres22”, repartido de acordo com as metas estabelecidas para aprendizagem do aluno.

Tempo previsto no plano de ensino: 1 ano Local do ensino Permanência do Mestre em La Rochelle: 1 ano Avaliação estádio desenvolvimento

Primeiras diligências educativas de Pereira

Avaliar eventuais malformações nos órgãos do aparelho fonador; outras deficiências bem como aptidão intelectual;

Avaliar a acuidade auditiva do aluno.

Objectivo Geral

Ensinar o aluno a ler e a pronunciar os nomes dos objectos “correntes, visìveis e necessários à vida” na Lìngua francesa;

Levar o jovem d‟Azy a um grau de conhecimento que lhe permitisse expressar de viva voz o que lhe aprouvesse, dentro de um quadro programado de ensinamentos, no que concerne as coisas reais, visíveis e mais necessárias à vida e as mais comuns de se nomear.

Faseamento no tempo do ensino

1.ª Fase (prestação): o aluno articularia algumas palavras, demonstrando a sua inteligibilidade na fala;

2.ª Fase (prestação): o aluno leria, pronunciaria e conservaria um vocabulário relativo aos objectos de uso corrente, apresentados num manual;

3.ª Fase (prestação): consolidação dos conteúdos/ logo que os objectivos a que se propusera fossem atingidos (cerca de 1 ano, no mínimo).

Outras considerações

Que Jacob Pereira pudesse tomar as precauções necessárias para que o seu método e arte no ensino do jovem, decorresse no maior sigilo ou secretismo; Que ao mestre não poderiam ser imputadas quaisquer faltas, decorrentes de algumas imperfeições na pronúncia do aluno, em que estivessem em causa algumas sílabas que se pronunciassem de formas diferentes;

Findo o prazo de um ano e caso o aluno não tivesse atingido todos os requisitos no ensino, aquele deveria ser enviado para Paris com a finalidade de dar continuidade ao ensino até à sua conclusão.

A fim de fazer cumprir o acompanhamento do pai no ensino que lhe era ministrado, o mestre facilitava a lista de verificação de palavras.

Fonte: Seguin, 1847 (pp. 23-27)

22 Do latim, Libra, “antiga moeda de conta, representando o valor de uma libra de ouro ou prata”. http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/livres/47532

Quadro 2

Conteúdos Instrutivos para o desenvolvimento da fala

Objectivos específicos Conteúdos propostos no ensino da oralidade: sintaxe

Artigos

Área sensível da aprendizagem, não sendo possível a sua elencagem pelas dificuldades que o aluno poderia manifestar na sua aquisição: poderia confundir o género, usar o nominativo na vez de outro caso e ainda haveria a possibilidade de confundir o singular e o plural.

Nomes Utilizaria de forma inteligível as palavras correntes, tais como: pão; vinho; carne; água; casa; cama; mesa; rua; jardim; carroça. Adjectivos Grande; pequeno; bom; mau; negro; branco; alto; baixo; etc. Particípios Morto; perdido; etc.

Algarismos

O aluno possuiria conhecimentos rudimentares dos algarismos; o mestre propunha que ele os nomeasse, escrevesse por extenso e os utilizasse em diferentes situações na forma escrita, oral ou por sinais dactilológicos.

Pronomes

Demonstrativos: este, esse, aquele; isto; isso; aquilo.

Pessoais: eu, tu; ele, ela; vós; eles; elas. Frequentemente poderá utilizar os pronomes “meu”, “teu”, ele”, no lugar de “eu”; “tu”; “ele”.

Verbos (tempo infinitivo) Comer; almoçar; dormir; passear; subir, etc.

Advérbios Preposições Conjunções

Sim, não; muito, pouco; menos, mais; suficiente; um pouco, nada; bem, mal; depressa, devagar, pouco a pouco; à frente, a trás, em cima, em baixo; aqui, ali, algures; onde; longe; hoje; manhã, noite; ontem, amanhã, ontem de manhã, amanhã à noite, antes de ontem; depois de amanhã; nesta hora; neste momento; em breve; em primeiro lugar; até breve; de manhã; sempre, nunca; ao lado; à direita, à esquerda; ao sabor de; do meu modo; depois; quando; porque; como; quanto; uma vez, duas vezes; quer dizer, etc… Matérias do currículo

escolar Estado de adiantamento do aluno – ano de 1749

Oralidade/Prosódia fala/inteligibilidade: (fonética; discurso, ritmo, tom de voz e timbre) Vocabulário

Leitura, escrita e sintaxe Domínio do Alfabeto Manual e articulação Uso de outras línguas Princípios básicos da Religião/ Catecismo

Memória de Jacob Rodrigues Pereira apresentada à Academia Real das Ciências

“…o jovem surdo e mudo pronuncia distintamente, embora de uma forma lenta, as letras, as sílabas, as palavras por indicação do professor, na forma escrita ou por sinais. Responde autonomamente, quer na forma verbal quer na forma escrita, às questões que se lhe colocam e que lhe são familiares, agindo em conformidade com o proposto, na forma oral, escrita ou pelo alfabeto manual, sem que seja necessário recorrer a uns outros sinais. Sabe pedir em quatro línguas (idiomas) objectos correntes ou que façam parte das necessidades do quotidiano. Recita de cor

os dez mandamentos, o Pai Nosso e outras orações e responde de

Gramática

Aritmética: contagens; cálculo mental e as quatro operações sobre inteiros; dinheiro; figuras geométricas Corografia francesa e Geografia Cronologia; A divisão do tempo Ciências e rudimentos

utiliza correctamente os artigos que convêm aos nomes, (raramente se engana) e conhece os casos de forma rudimentar; tem um conhecimento medíocre do emprego dos pronomes que nos servimos comummente. No que concerne os verbos tão- somente sabe conjugar os verbos regulares, como também quando se lhe pede separadamente, identifica a pessoa, o nome, o tempo e o modo (sendo mais forte no tempo indicativo). Sobre as outras partes do discurso, nomeadamente na sintaxe, compreende o que lhe é próximo, o que é mais necessário, no quadro de expressões comuns ou familiares. Não exemplificava um adjectivo no feminino, um substantivo masculino ou de um plural e um singular; raramente se engana no tempo, nos nomes e nas pessoas dos verbos que vulgarmente utiliza, sobretudo se conjugados no modo indicativo; evita fazer repetições no discurso, através da utilização de pronomes e partículas relativas, que emprega frequentemente e de forma apropriada. Finalmente, respeita as regras de ortografia de forma aceitável. Registava de forma enfatizada que se lhe colocassem questões escritas, com erros, o aluno era capaz de os identificar. A pedido, era capaz de alterar o som de voz, num timbre mais elevado ou baixo e tentava ainda respeitar as diferenças no tom, perante a ordem numa frase interrogativa, declarativa, suplicativa e imperativa. Reconhece todas as vogais com as diferentes pronunciações, dando-lhe o valor adequado, enganando-se somente nas palavras que lhe são desconhecidas. No domínio da aritmética domina as quatro operações sobre inteiros, com maior predominância no conhecimento das duas primeiras, contando verbalmente as somas e também em dinheiro e responde correctamente se lhe apontarem nas figuras dos livros. Já no que se refere à Geografia, sabe apontar num mapa as quatro partes do mundo, os principais reinos da Europa e suas capitais; as províncias e as principais cidades da França e no domínio da cronologia, a divisão do ano, dos meses e das semanas; também é sabedor da história da criação; e ainda de alguns temas, relativos às ciências mais abstractas que não caberia discriminar, correndo o risco de se não fazer uma ideia mais justa.

Prevalências:

Observava-se ainda alguma lentidão no ritmo da fala e uma certa aspereza na pronúncia do jovem que se devia, em grande parte, aos vícios adquiridos pelo aluno, à ruptura de 10 meses no ensino da fala e principalmente, no que tocava à rigidez dos órgãos da fala e a perda de flexibilidade da língua, mantendo-se o mesmo problema desde que Pereira iniciara o ensino desde há seis anos. Os defeitos apontados poderiam ser atenuados e melhorados à proporção e à progressão das aulas ministradas pelo mestre”.

Conforme a recolha de informação expressa nos quadros 1 e 2, conclui-se que Jacob Rodrigues Pereira, em 1747, era já detentor de uma vasta experiência no ensino dos surdos e mudos e de um conhecimento científico, sistematizado. Esta faculdade permitia-lhe fazer uma avaliação inicial do diagnóstico da aprendizagem, no que concerne o aparelho fonador e auditivo e respectivas malformações, limitadoras deste tipo de ensino. Segundo, Salgueiro (2010), citando a obra de Seguin, Jacob Pereira avaliava a acuidade auditiva dos surdos-mudos, aferindo três níveis de surdez:

Todos os mudos constituem o objecto corrente da minha arte, quer dizer, que são assim devido a uma surdez mais ou menos perfeita, que os impede de ouvir e de imitar, por eles próprios, os sons das palavras, distinguem-se, naturalmente, em três espécies ou em três classes.

Os surdos e mudos cuja surdez é total ou absoluta, constituem a primeira espécie. A segunda compreende todos aqueles cuja audição é sensível aos ruídos, maiores ou menores, sem poderem, no entanto, formar qualquer ideia dos sons da voz. E, por fim, os mudos que compõem a terceira classe, são os que juntam à sensibilidade aos ruídos, a faculdade de distinguirem alguns sons. Tudo isto vai ser desenvolvido.

Os surdos absolutos, ou da primeira espécie, são menos frequentes, e não me surpreende que o autor da memória julgue que não existem. É possível que nunca os tenha observado; mas parece-me mais provável que os tenha confundido com os da segunda classe, com os quais são parecidos sob alguns aspectos. Pois, tal como a cegueira mais perfeita não impede um indivíduo de sentir a luz, devido ao calor que muitas vezes a acompanha, assim a privação total da audição não seria suficiente para impedir os que dela sofrem de se aperceberem de alguns ruídos por uma espécie de tacto que, de algum modo, lhes substitui a audição e que, sem a sagacidade que só uma longa experiência permite adquirir, é fácil de ser tomado como o próprio ouvir.

… Os surdos-mudos da segunda espécie são incomparavelmente mais numerosos que os das duas outras. Inclui…, todos os que, independentemente da sensação de que acabei de falar, têm o órgão da audição mais ou menos acessível a diversas espécies de ruídos e são capazes de conhecer e de comparar, em certos casos, o grau da força e algumas outras qualidades destes ruídos que, com frequência, ferem o seu ouvido, mas que, apesar disso, não conseguem perceber nenhum dos sons que compõem a palavra, nem mesmo chegarem a formar a mais pequena ideia.

… Os surdos-mudos que compõem a terceira e última espécie são os que, não somente ouvem alguns ruídos de maior ou menor intensidade, mas que conseguem distinguir os sons de algumas vogais, ou pelo menos formarem uma ideia que os ajude a distinguir estes sons, desde que sejam pronunciados com as precauções que indicarei.

… Esta classe seria a mais numerosa de todas se só se considerasse nas crianças ainda ao peito até à idade aproximada de três anos, devido sobretudo a esta substancia mucilaginosa que recobre as paredes do canal interno do ouvido desde que vem ao mundo, e fica lá colada em um tempo mais ou menos longo; mas, no decurso destes três primeiros anos, muitas destas crianças morrem de doenças que

causam a sua surdez, e muitos curam-se, de modo que não se encontram mais surdos desta espécie entre os adultos, do que da primeira espécie (pp. 290-291). Aquilatava também o nível de inteligibilidade dos alunos, pois que tal capacidade facilitava o delineamento de um plano de estudos, a partir do currículo comum, adaptando-o e programando a sua acção pedagógica23. Jacob Rodrigues Pereira previa assim, de forma meticulosa, os conteúdos a ministrar e a sua eficácia em um determinado tempo. Era-lhe também necessário identificar as áreas lacunares e as incapacidades permanentes dos alunos surdos, na aprendizagem da fala. Refira-se ainda que, segundo Seguin (1847), para o mestre Jacob Pereira, era condição pessoal e de honra, a questão de não divulgar o seu método:

On sera sans doute curieux de savoir quelque chose de la méthode que suit M. Pereire pour instruire les sourds et muets de naissance; mais il nous est possible de