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PARTE I A INEVITABILIDADE DA PALAVRA

3. Ensino de uma língua de sinais (Abbé de l‟Épée)

3.4 O desafio do pensamento

O capítulo XI recaía sobre o domínio das operações espirituais, enquanto objecto da lógica. Tornava-se necessário enfrentar o desafio de impedir que os surdos-mudos pudessem ordenar o pensamento, tal como se fossem ouvintes, e, na sequência, assegurar-lhes uma evolução, uma progressão e um sentido para o pensamento. Daí era imperioso que o mestre se servisse dos signos a que correspondiam as palavras e o seu significado.

O professor começava por observar, com muita atenção, as prateleiras da biblioteca, seleccionando as figuras e os globos que se localizavam nas superiores. Chamava a atenção dos surdos para esta acção. De seguida, cerrava os olhos, deixando de ver os objectos para que captara atenção e retratava-os através dos gestos, no que à altura e à largura, às diferentes formas e às suas posições dissesse respeito. Fazia entender aos alunos que, neste tempo, ele não os desenhava à vista, mas através do seu pensamento que se situava no interior da sua cabeça. Desta forma, o mestre introduzia o conceito “voir par les yeux de l‟esprit” (ver com os olhos do espìrito). A partir de então, todos os alunos sentiriam o prazer de ensaiar tal experiência, podendo mesmo multiplicá-la e diversificá-la.

As lições complexificavam-se quando o mestre simbolizava viajar, ideando partir da sua casa, na cidade de Paris, “viajando” através da sua mente para Versalhes, a sua cidade natal, “levando” consigo três alunos mais velhos da classe para aì fazerem uma estadia de oito dias. E sempre a divagar, o seu pensamento era assistido por gestos simbólicos, “mostrando-lhes” o palácio, projectando a grande escadaria e os primeiros aposentos, enquanto os alunos “pintavam” a galeria de arte que tanto “prazer manifestavam quando a visitavam”. Sempre ideando, desciam ao parque, passeavam

pelos bosques, “vendo” tudo o que alcançasse a sua “visão” mental. O mestre reforçava que aquelas vivências eram da ordem espiritual e não dependiam da visão orgânica, mas da visão do pensamento ou da mente, tal como a pintura interior, enquanto objecto do regozijo, sendo o que se designava de ideias ou de representação mental do mundo que os rodeava. Os alunos conservavam a ideia do palácio de Versalhes, dos aposentos, dos bosques e de todas as coisas materiais e sensíveis, ou seja, tinham usado a imaginação para recriar as belezas locais e ainda do rio Lião que corria na cidade, manifestando opinião acerca da beleza do parque; a este pensamento denominariam de “julgamento”.

Este conceito englobava duas ideias: a de um julgamento afirmativo, tal como no caso dos sentimentos agradáveis em relação a Versailles, assomando então um “sim” interior; um julgamento negativo, se os alunos imaginassem o desconforto de se encontrarem na avenida de Porte Saint-Martin, experimentando um “não” interior. Estas ideias resultavam, respectivamente, em preposições afirmativa e negativa (Abbé de l‟Épée, 1784, pp. 106-111). Do entendimento da diferença entre o pensamento e o amor, o mestre explicava aos alunos que existiam objectos ou contextos de que eles gostavam e outros que odiavam, como se pensassem na preguiça, na desobediência ou na gula, que identificavam em jovens das suas relações de amizade. Tudo que pensassem para si próprios, denominava-se “notre esprit” (nosso espìrito) e tudo o que gostassem designava-se “notre coeur” (nosso coração). À reunião dos dois conceitos, chamariam a “notre ame” (nossa alma). O mestre alcançava desta forma o conceito de “alma”. Esta palavra associada a um outro conceito abstracto, sobre o que se “pensa e raciocina”, apresentando-se ao espírito sem forma ou cor, convergia na ideia de “simple perception” (percepção simples) (id., p. 113).

Era então feita uma clara distinção entre o corpo e a alma, decorrente do corpo humano para viver, depender do alimento, da bebida, da acção, da marcha, de dormir e descansar e a alma ser assimilada através do pensamento, do julgamento e do raciocínio, sendo uma unidade abstracta. Associado a este tema, o Autor programava as lições do Capítulo XII, introduzindo as primeiras verdades da Religião. Estando os alunos munidos do conhecimento da alma, da sua nobreza superior e dos motivos que os distinguiam dos outros animais, seria tempo de conduzi-los para as várias matérias e conceitos em torno de novas palavras. Doravante, os surdos poderiam “voar pelo céu, vir à terra ou descer ao abismo” com facilidade, bastando usar a imaginação tal como os seus semelhantes que ouviam. Poderiam ainda admirar as causas e a génese das coisas

que os rodeavam e maravilharem-se com a pequena máquina de um relógio, porque toda a concepção de objectos úteis ao homem era o produto da sua hábil imaginação e capacidade para inventar. Eram-lhes mostrados, através de uma esfera terrestre, os movimentos da terra em torno do sol e os restantes planetas, a distância entre as estrelas e o planeta, as matérias transformadas pelo homem, os objectos úteis, a constituição e o funcionamento de um relógio e de todos os fenómenos. Da admiração e alegria provinha a ideia do Universo e de Deus, dado que os alunos já haviam compreendido que todos os objectos eram da criação do homem, mas que a Natureza, o Universo e o próprio homem eram da criação de Deus, governando-os sobre todas as coisas, sendo imortal e eterno (Abbé de l‟Épée, 1784, pp. 115-120). Os surdos reuniam então os conhecimentos que lhes permitiam compreender os preceitos litúrgicos, louvar Deus, adorá-lo e cumprir acção de graças. Os rituais da igreja não mais seriam vividos pelos surdos- mudos como um “mero espectáculo diante dos seus olhos” (id., p. 120). No capítulo XIII introduzir-se-ia a aprendizagem dos mistérios da religião, o sagrado testamento, a santíssima trindade, a vida e os ensinamentos de Jesus Cristo. Os mais velhos recitá-los- iam, tal como o acontecido nos exames de oito surdos, tendo respondido em três línguas às oitenta e seis questões sobre os mistérios da religião (id., pp. 121-124).

No capítulo XIV elucidavam-se os sinais que se utilizavam para tornar clara análise e a explicação das ideias metafísicas (Abbé de l‟Épée, 1784, pp. 126-131). Referia o Autor que todas as palavras continham um sentido ou significado, havendo, por vezes, a necessidade de as analisar, recorrendo a outras palavras já conhecidas para que os alunos as compreendessem. Assim a afirmação “je crois” (eu creio) era, segundo o mestre, o conceito mais difícil de ensinar aos alunos, através dos signos; para o seu entendimento o professor registava o verbo no quadro, traçando quatro linhas que convergiam nas seguintes frases:

Je crois

(eu creio)

Je dis “oui” par l‟esprit. Je pense que “oui”.

(Eu digo “sim” através do pensamento. Eu penso que sim). Je dis “oui” par le cour. J‟aime à penser “ oui ”.

(Eu digo “sim” no meu coração. Eu gosto de pensar “sim”). Je dis “oui” de bouche. (Eu falo “sim” de boca).

Desta associação de ideias, o professor aclarava o conceito contido na frase “je crois”, significando que o “pensamento consentia”, o “coração aderia”, a “boca professava”, compreendendo a “inutilidade da visão” no sentimento da fé (Abbé de l‟Épée, 1784, pp. 129-154). O mestre executava o sinal do pronome pessoal, no singular, levando de seguida o seu dedo indicador à testa, onde se convencionava estar o espírito ou a mente ou a faculdade de pensar, e logo de seguida executava o signo “sim”; posicionava o dedo no coração, representando a ordem espiritual e a capacidade de amar; no seguimento, repetia o sinal “sim” sobre a boca, mexendo ligeiramente os lábios para logo levar a mão aos olhos, gestualizando a palavra “não” e finalizava com o sinal do tempo presente.

Do que se aferiu, apuraram-se as seguintes referências gestuais para a construção do pensamento abstracto. Da frase “eu creio”, relativo à ordem sequencial da linguagem de signos, poder-se-ia formar a seguinte sequência: “eu penso, sim; eu amo; eu falo, sim; eu não vejo”. Entende-se que a linguagem gestual seria totalmente desconexa da linguagem escrita que segue uma ordem formal, sintáctica, mas poderia aproximar-se do seu sentido. Assim:

Linguagem escrita → representação → expressão mìmica e gestual → reorganização conceptual ou conceptualização.

Derivado do verbo “croire” (crer), tal como no verbo “aimer” (amar), o mestre apelava a todos os procedimentos ordenados no uso dos sinais, gestos e mímica, anteriormente ministrados e a necessidade de consolidação de conhecimentos por parte dos alunos mais adiantados (Abbé de l‟Épée, 1784, p. 134).

No capítulo XV, interrogava a compreensão dos surdos acerca do som, sua intensidade, o que se denominava auribus audire. Decorrente da agnosia natural na acuidade dos sons por parte das crianças surdas, o mestre socorria-se de uma série de estratégias que faziam compreender ao aluno a sua deficiência auditiva, quer no plano físico, quer no da esfera sensitiva. Conforme a inquietação do mestre acerca desta lacuna no conhecimento dos seus discípulos, aquele iniciava uma série de observações experimentais, tais como: da água a verter de um jarro, fazendo-o correr na perpendicular para uma terrina, ensaiando prendê-la entre os seus dedos ou mãos, pelo arremesso uma pequena bola, fazendo os discípulos observar o movimento de

ondulação produzido, comparável, no respeito pela sua dimensão, à dos rios e dos lagos. De seguida, o professor registava no quadro o texto da experiência efectuada. E diversificava as experiências com vários materiais que produziam som, tais como uma folha de papel a vibrar no ar, o ruído que aquela produzia ao ser amarrotada, o contacto sensível ao sopro, nas suas mãos e na dos alunos, fazendo entender o fenómeno do som e que aquele se propagava no ar. Outrossim, observavam o movimento de um pêndulo do relógio, levando à descoberta do pequeno ponteiro que tocava nos seus dedos com maior velocidade, podendo até imobilizá-lo. Era então chegado o tempo de comparar estas experiências às diferenças do que se passava no ouvido de um surdo e de um ouvinte, particularmente no que se referia à existência de um pequeno “martelo que vibrava, no ouvido médio, através da entrada do ar, na orelha ou pavilhão”.

O mestre socorria-se de um ajudante ouvinte para demonstrar a sua capacidade de resposta ao som. Uma vez posicionado de costas para o mestre e logo que o mestre batesse na mesa, virava-se de imediato e dirigia-se ao professor, decorrente do reconhecimento do som emitido pelo mestre. Reflectia o Autor no estado de “tristeza” e mesmo de “mau humor” que muitos surdos manifestavam; outros revelavam maior capacidade no entendimento e maior aceitação da sua deficiência e com isso, uma maior serenidade no seu semblante.

Referia Abbé de l‟Épée a necessidade e a importância do entendimento da surdo-mudez, dado que o som nunca seria sensível aos seus ouvidos, tal como a incapacidade visual das cores na pessoa cega. Contudo, o mestre fazia entender ao surdo os diferentes níveis sensitivos do som através da matéria e a resposta corporal à vibração do som, exemplificando-os com o bater dos pés no soalho de madeira, podendo então os surdos sentir as suas vibrações, caso fossem executadas em diferentes níveis de impulsão/ força dos pés ou das mãos (Abbé de l‟Épée, 1784, pp. 135-141). No que concerne à criação de um dicionário para uso dos surdos-mudos, no capítulo XVI o Autor referia que o mesmo necessitava de ser criado, devendo obedecer a idêntico fim de um manual com palavras e seus significados, tal como se de uma língua estrangeira se tratasse. Seria um dicionário que guiasse o leitor na escolha de palavras com o respectivo e justo valor a que lhe correspondiam, destinado à nova língua natural de sinais: a dos surdos-mudos. Um “dicionário vivo” que aclarasse tudo o que fosse necessário à inteligibilidade das palavras que nele estivessem contidas (id., pp. 142- 146).

Assim, a escolha das palavras deveria incidir num conjunto ou no seu agrupamento, onde as ideias lhes fossem inerentes, bem como a sua significação, que seria auxiliada por imagens representativas, tanto quanto possível. Vários agrupamentos se projectariam, como os objectos que nos rodeiam; os animais: os quadrúpedes, as aves, os peixes, os insectos; as árvores, os frutos, as flores, os legumes, as ervas, as raízes, as artes e ofícios, entre muitos outros. l‟Épée recomendava que seria absolutamente inútil os surdos consultarem dicionários, se àqueles não se procedesse a ligação à natureza e ou à sua observação, podendo até os surdos e mudos decorarem inúmeras palavras que para eles as mesmas não fariam sentido. Outra forma de ajudar o surdo a entender o significado das palavras seria através do recurso às imagens, podendo, desta forma, relacionar o objecto à imagem (Abbé de l‟Épée, 1784, p. 149).

Em relação aos sinais metódicos que o dicionário poderia conter, l‟Épée justificava não ser necessário introduzir novos signos, bastando que os sinais existentes fossem já do domínio dos surdos, dando primazia às explicações analíticas, curtas e precisas que orientassem o pensamento na aquisição das palavras já conhecidas para outras, mas delas derivadas. O dicionário teria como base o agrupamento de palavras, a sua objectiva elucidação, mais do que novos signos metódicos (Abbé de l‟Épée, 1784, p. 153). Era aconselhado um dicionário de pequenas dimensões e de média grossura, para que os surdos pudessem transportá-lo facilmente; e atendendo à demora da sua finalização, o mestre aconselhava o uso do pequeno dicionário de Richelet (id., p. 154).

Figura 8

Dictionnaire François Contenant Generalement Tous Les Mots Tant Vieux Que Nouveaux … (1706), de Pierre Richelet

Pela pragmática educativa de Abbé de l‟Épée, o modo de ensino era assaz trabalhoso e exigia uma forte capacidade de atenção, de memorização e de associação de ideias, por parte dos alunos.

Este modo de ensino era ministrado passo a passo (Braslausky, 2002, pp. 35-41) e meticulosamente pelo mestre, apoiado por um conjunto de sinais naturais ou inovados que, por sua vez, eram sucessivamente associados a outros, anteriormente acomodados, formando frases que se determinavam no sentido, desde as mais simples às mais complexas. A comunicação dos surdos ficava assim completa através de sinais, gestos, expressões e mímica, numa gramática própria, incessantemente reforçada pela linguagem escrita, com recurso ao alfabeto manual. Este modo de ensino permitia ainda a maior simultaneidade na classe e no que ao maior número de alunos se referisse.

É visível ao longo da análise da obra de Abbé de l‟Épée, a formação de um crente que seguiria os preceitos da religião, alcançando a ideia mais abstracta, a de Deus, um cidadão educado para a Moral, estritamente ligada à Religião; um cidadão disciplinado na e pela Virtude, para um ideal de perfeição na abstracção maior que se fazia do conceito de Deus.

Pelo que nos é dado perceber, Abbé de l‟Épée era um educador dotado de uma grande genialidade, um gramático que teceu uma obra meticulosa, erigida no/ do seu tempo empírico, com grande perseverança e, sobretudo, tentando expandi-la a outros sábios e Academias que nela quisessem colaborar, com a finalidade de um aperfeiçoamento continuado na sua arte de ensinar os surdos. Contudo, a sua obra, como se depreende, requereria simplificações e adaptações que já então se desenhavam incontornáveis, sendo visível, em alguns casos, que os diferentes passos no ensino dos sinais metamorfoseavam - se numa teia de grande complexidade. Nesta se enredavam as ideias, os gestos, a mímica e os sinais, de forma menos objectiva e precisa e nem sempre inteligíveis ao próprio leitor, de acordo com os diferentes e crescentes graus de dificuldade nas matérias do estudo da gramática de uma língua que derivasse do Latim.

Assim, a sua gramática apresentava um maior grau de complexidade, dado tratar-se de uma língua de sinais, gestos e mímica que Abbé de l‟Épée pretendia regularizar paralelamente à da língua francesa.