• Nenhum resultado encontrado

A divisão de tarefas assistenciais no interior das famílias tem sido apontada como uma tendência geral dominante, como confirma um estudo da Comissão de Igualdade de Oportunidades, realizado em Manchester/Grã Bretanha, em 1982 (apud JOHNSON, 1990, p. 106): “a partir do momento em que as atitudes e as práticas dentro da sociedade continuam colocando sobre as mulheres as responsabilidades primárias para as funções assistenciais, a maioria das cuidadoras são mulheres”. Este estudo indica, ainda, que a maioria das mulheres serão, em algum momento de suas vidas, cuidadoras, em face das demandas familiares e da tendência de transferência de responsabilidades do Estado para o setor informal. Espera-se que a mulher abandone ou reorganize o tempo de seu trabalho para cuidar de si mesma e/ou dos membros da família, quando eles requerem atenção especial e/ou constante. Ela até mesmo recebe pressão da sociedade para exercer a função de cuidadora assistencial, não se esperando que os homens assumam esse papel, de forma recíproca, nem para si, e muito menos para os familiares.

A revisão da literatura específica realizada por vários autores46 sobre a assistência comunitária informal nas sociedades modernas avançadas sustenta que as

46

133

mulheres continuam arcando com o ônus e a maior parte das responsabilidades assistenciais, com um gasto de tempo diário nas atividades de provisão bastante significativo e com os custos dessa assistência. Essa tendência, que está sendo denominada de feminização da assistência comunitária/familiar, está presente não só nos países avançados da Comunidade Européia e nos Estados Unidos da América mas já se estendeu a outras sociedades industrializadas, incluindo a América Latina e o Brasil.

Gilbert (apud JOHNSON, 1990), sustenta que, nos EUA, em um futuro previsível, como no passado, todas as cargas da assistência familiar estarão nas mãos das mulheres. Essa tendência confirma-se também na Suécia, país em que 80% das mulheres trabalham fora de casa e existe uma maior igualdade entre os sexos, e as mulheres continuam sendo as fontes principais da assistência familiar e comunitária. Em vista disso, conforme Johnson (1990), é difícil prever o impacto causado pela atividade familiar no âmbito da saúde tanto sobre os que a exercem, como sobre quem a recebe. A assistência familiar, é um trabalho penoso e constante que se dá durante o dia e também à noite, especialmente quando voltado para anciões e enfermos. O esforço físico contínuo e o sono interrompido geram desgastes físicos, mentais e emocionais, ocasionando, na maioria das vezes, problemas sérios de saúde nas cuidadoras. As categorias mais simples desses problemas, e que têm maior amplitude entre as mencionadas nos estudos, são a depressão e a ansiedade, atribuídas ao estresse contínuo e prolongado. Dentre os aspectos negativos, avaliados como responsáveis pelas causas das tensões existentes nas famílias que assumem o ônus de algum cuidado especial relativo à saúde de um de seus membros, e que recaem sobre a mulher, destacam-se; a) discussões intermediadas pela mulher como advogada da paz; b) perda de privacidade de todos os membros da família (mulher, marido e filhos); c) deterioração das relações conjugais (marido e mulher); d) monopólio do parente idoso e/ou dos filhos. Ainda, há outras circunstâncias decorrentes, como o aumento de gastos extras, o confinamento em casa, que leva ao isolamento social; a ausência de alternância, entre os familiares, de ajuda à mulher, e, sobretudo, o total comprometimento de seu tempo de ócio e lazer. Uma outra desvantagem apontada pelas mulheres pesquisadas, que se ocupam da assistência familiar, tem sido a dificuldade para encontrar trabalho em tempo integral e até mesmo parcial e, ainda, com horário que seja adequado à rotina de quem é cuidadora familiar, o que por si só, coloca a cuidadora em desvantagem em relação aos colegas de trabalho e, ainda, em situação vulnerável a uma provável redução do salário e de falta de perspectivas de ascensão funcional. De novo, as conflituosas demandas da assistência

134

familiar penalizam as mulheres. Estudos apontam, ademais, que muitas acabam abandonando o trabalho ou optam pelas desvantagens de um tempo parcial, diante do desafio de tentar combinar o trabalho remunerado fora de casa com a assistência familiar.

O círculo vicioso então se forma, ou seja, como conseqüência imediata de qualquer uma das opções mencionadas acima, ocorre a redução do orçamento familiar, o que vai afetar a todos e reduzir substancialmente a qualidade da assistência prestada, pela impossibilidade de a família arcar com os gastos extras necessários.

A seguir, a tabela 1 demonstra o percentual de trabalhadoras femininas na faixa etária de 15 a 64 anos, em toda a União Européia (UE) no período de 1960 a 1995. Os regimes analisados são: anglo-saxão, continental, nórdico e mediterrâneo (Europa do Sul). Apesar de os números indicarem um aumento progressivo no período analisado, a porcentagem de trabalhadoras da Europa do Sul ainda é baixa quando comparada às demais regiões, mostrando que as mulheres ainda relutam em conciliar as atribuições domésticas com o trabalho fora de casa. A literatura especializada (JOHNSON, 1990; ESPING- ANDERSEN, 2004; USSEL, 2001) atribui como causa dessa particularidade dos países da Europa do Sul, especialmente em relação à Espanha, a questão cultural. Trata-se de culturas extremamente conservadoras e arraigadas aos valores tradicionais da família e, nelas, às claras definições em relação aos distintos papéis do homem e da mulher. Em que pesem as mudanças recentes ocorridas nessas sociedades em relação ao papel das novas gerações, ainda prevalece a idéia de que ao homem compete ser o chefe de família e à mulher, o papel de dona de casa e/ou de cuidadora social, até mesmo em substituição ao papel do Estado na área de assistência social, pela ausência de uma efetiva política familiar.

Tabela 1 Porcentagens de trabalhadoras no conjunto da população feminina de 15-64 anos na União Européia (EU)_ 1960-1995

Regimes 1960 1974 1995 % (1960-1995)

Anglo-Saxão 46,1 54,3 66,0 +19,9

Continental 42,1 44,9 59,2 +17,1

Nórdico 48,9 60,9 72,5 +23,6

Mediterrâneo* 31,6 37,6 49,0 +17,4

Fonte: OECD-(1997, p. 41, apud MORENO, 2000, quadro 2..2).

Johnson (1990) afirma que, no terreno conflituoso de demandas por assistência comunitária familiar, os defensores do pluralismo de bem-estar apoiam-se, intensamente, no trabalho não-pago das mulheres, não apenas na família, mas também no espaço das organizações

135

voluntárias. Em vista disso, o setor voluntário tornou-se também um amplo campo para a participação feminina, a exemplo do setor informal. Soma-se a essa tendência a não- profissionalização e a despolitização de um número significativo de mulheres que, liberadas pelos filhos (já adultos) das atribuições maternas e domésticas, aderiram ao trabalho voluntário, dedicando a ele grande parte de seu tempo. Contudo, Johnson (1990) argumenta que o setor informal é o que proporciona, atualmente, a maior assistência comunitária, em relação a todos os outros setores juntos (serviços públicos, setor comercial ou mercantil, voluntário e outros).

Percebe-se, assim, que o aprofundamento do debate sobre o impacto e as tendências em curso no campo da política comunitária familiar, no contexto do pluralismo de bem-estar informal, remete e inclui, necessariamente, além da questão da ausência de centralidade do Estado, o debate sobre os direitos das mulheres (a creches, ao trabalho remunerado, ao lazer, etc.). Uma outra questão consiste em avaliar e identificar as diferentes vias de inter-relação entre a assistência formal e assistência informal, em uma perspectiva de reciprocidade e complementaridade. No limite, isso equivale articular a ajuda informal com as prioridades e os recursos (materiais, humanos e financeiros) dos serviços públicos formais, mediante o incremento de políticas sociais públicas, executadas pelo Estado, e não como um bem social exclusivo e restrito à sociedade, via assistência informal comunitária. Essa perspectiva certamente não contempla a dimensão pública e universalizadora e sim, a informalidade e a feminização da provisão social em nome de uma suposta solidariedade que não produz cidadania social.

Os estudos de Anttonen e Sipilã (apud ABRAHAMSON, 1995), tratam dos futuros alternativos ao bem-estar e afirmam que, tão importante quanto a igualdade de oportunidades e de condições, é a igualdade de gênero, o que remete à questão das diferenças sexuais entre homens e mulheres. Essas autoras preocupam-se em aprofundar teoricamente essas questões para identificar as opções que as mulheres têm para ficar fora dessas responsabilidades sócio-familiares, comparando-as com o quadro atual de provisão social estatal. Em seu estudo sobre o pluralismo de bem-estar e sobre o que denomina de bem-estar amigavelmente feminino, modelo desenvolvido na Suécia, elas fazem uma análise comparada desses dois modelos de bem-estar, com ênfase à investigação sobre o poder político, presente nessas duas racionalidades. Ao privilegiar as relações de gênero (1995, p. 3), as autoras analisam o impacto desses aspectos no desenvolvimento do Estado de Bem-estar. Em 1991, percebendo a influência do pluralismo de bem-estar, de extração neoliberal, Antonnen y Sipilã (apud ABRAHAMSON, 1995) dirigiram o foco de suas investigações para as

136

diferentes maneiras de produção de cuidados existentes. O quadro 6 apresenta uma heterogênea classificação, elaborada por essas autoras, que inclui oito formas de produção de cuidados, quais sejam: voluntária, comercial, mercado cinzento, seguro social, público marginal, público universal, pagamento pelos cuidados e a familista, contrastando-as com as figuras do financiador final, do prestador de cuidados, do produtor e da forma de financiamento.

Quadro 6 Oito maneiras diferentes de produção de cuidados

Formas de produção de cuidado Financiador final Forma de financiamento Produtor Prestador dos cuidados

Voluntária Filantropos Doação Organização voluntária

Voluntário

Comercial Pessoa de classe alta Pagamento integral Empresa Trabalhadores empregados Mercado cinza Pessoas de classe

média

Dinheiro em espécie Família Trabalhadores pagos

Seguro social Segurados Prêmio Organização contratada

Trabalhadores empregados Público marginal Pagadores de

impostos

Imposto Autoridade local Trabalhadores empregados Público universal Pagadores de

impostos

Imposto Autoridade local Trabalhadores empregados Pagamento pelos

cuidados

Pagadores de impostos

Imposto Família Famílias semipagas

Familista Família Trabalho Família Membros não-pagos

Fonte: Anttonen; Sipilã ( apud ABRAHANSON, 1995).

Ao selecionarem as oito formas de se produzir cuidados, Antonnen e Sipilã

(apud ABRAHANSON 1995) resgatam dados interessantes da variedade de situações

remuneradas e não remuneradas existentes no campo dos cuidados assistenciais. Em relação à última coluna, o estudo das autoras evidencia como o campo de prestação de cuidados na perspectiva neoliberal é difuso e heterogêneo (vários atores e setores) pois respondem por essa atribuição tanto os segmentos voluntários, como trabalhadores empregados, trabalhadores pagos, famílias semipagas e, ainda, membros não-pagos, o que dificulta ainda mais a identificação dessa modalidade de bem-estar, bem como o perfil do prestador de cuidados, na perspectiva de gênero e dos sujeitos e processos.

Diversificadas também são as formas de financiamento, uma vez que ocorrem tanto na forma de doações, como de pagamento integral, dinheiro em espécie, imposto e trabalho, podendo ser o produtor de cuidados uma organização voluntária, ou uma empresa, a família (familismo), a organização contratada, ou, até mesmo, a autoridade

137

local. É curioso que na forma de produção de cuidados denominada familista, em que o produtor de cuidados é a própria família, a forma de financiamento se dá mediante o trabalho nâo-pago de seus membros, e o financiador final é também a própria família, que exime o Estado desse ônus.

Em síntese, nessa perspectiva, a centralidade da família ganha materialidade pois essa instância cria a forma de financiamento (trabalho) e produz o cuidado, ao mesmo tempo em que o financia.

CAPÍTULO V

MODELO LATINO