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Componentes básicos do pluralismo de bem-estar: o setor oficial (Estado) e os setores

Com base na configuração da assistência social na perspectiva de um bem-estar plural ou misto, tal qual o seu desenho atual, apresenta-se a seguir uma síntese das principais características desse modelo de provisão sócio-assistencial plural, para melhor aquilatar a sua compatibilidade com o modelo latino.

4.1.1 Características da proposta do pluralismo de bem-estar

Há uma acentuada valorização das estruturas informais e voluntárias da sociedade, como ações sociais de ajuda mútua e de auto-ajuda (entre familiares, vizinhos, e amigos, no campo da assistência social, que devem operar com um baixo grau de regulação interna e estatal (JOHNSON, 1990). A valorização de setores não-oficiais evidencia uma explícita resistência dos neoliberais ao poder regulador do Estado, bem como o estabelecimento de claras estratégias para reduzir o papel dessa instância na provisão social.

Enfatiza-se o poder local (princípio da autogestão) e os mercados privados, como se tais setores fossem suficientemente capacitados para uma participação efetiva como agentes de bem-estar. Para tanto, adota-se o conceito de participação (até mesmo no campo da gestão orçamentária e financeira) e de descentralização secundária (que significa distribuição de poder mediante maior relação do governo com as comunidades, localidades e/ou pequenas áreas – path system – delegando-as à gestão de trabalhadores sociais voluntários). A estes setores compete, além do exercício da participação e da descentralização secundária, identificar problemas sociais, alocar recursos e criar redes de solidariedade informal, fortalecendo-as.

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Ocorre significativa mudança no campo da assistência comunitária. Nesse campo, a assistência comunitária deve ser para a comunidade e na comunidade e é vista como uma provisão informal e voluntária: de benefícios, de serviços, de gastos sociais privados (e não públicos) e de tomadas de decisão com caráter de ajuda, apoio e proteção aos, considerando a retração e a minimização do papel do Estado, bem como a destituição de qualquer reconhecimento e legitimidade das esferas públicas nesse processo. Contudo, “a despeito dessas mudanças, compete ao setor informal o papel de proporcionar maior assistência familiar, comunitária e informal, qual seja: pessoal, doméstica, auxiliar e de apoio social” (JOHNSON, 1990, p. 130-131);

O papel do Estado é minimizada com a justificativa de que deve ficar restrito à provisão de uma infra-estrutura básica e financeira, para viabilizar a manutenção e o desenvolvimento do pluralismo de bem-estar. Essa justificativa apóia-se também no entendimento de que o Estado não é o único ator, nem a única fonte de produção de bem- estar. Por isso, recomendam-se a desregulamentação do mercado e a desinstitucionalização das políticas sociais, especialmente da assistência social.

Há forte tendência à expansão dos mercados privados às expensas da provisão social pública (JOHNSON, 1990). Nessa situação, a demanda social sempre se submete à oferta de bens e serviços privados, ou recebe respostas residuais, seletivas ou focalizadas na pobreza extrema. Nesse processo, a ênfase dada ao mecanismo do co-financiamento das políticas sociais, mediante uma economia mista significa que os próprios beneficiários dos programas deverão contribuir financeiramente para a implementação das ações sociais, porque os neoliberais seguem o princípio de que o que não pesa no bolso, não é valorizado por quem o recebe. A atualização desses princípios e valores liberais tornou-se decisiva para converter a provisão social em mercadoria e para tornar a ideologia neoliberal hegemônica (JOHNSON, 1990).

As políticas sociais – e não só da assistência – tendem a pautar-se pelos mesmos critérios regressivos (ausência de financiamento próprio, de fontes de recursos com destinação específica e de perspectiva de direitos) e da meritocracia (do mérito pessoal). Para Moreno (2000, p. 100), “a solidariedade social reduz-se à socialização primária e, com essa função, deve ser vista como positiva para incrementar o capital social das comunidades”. Gómez Herrera (2001), um defensor do pluralismo de bem-estar neoliberal, apóia essa idéia, pois entende que “as redes informais e familiares redefinem o bem-estar ao largo das linhas de familiaridade que têm seus próprios meios, finalidades, regras e valores” (GÓMEZ, p. 77);

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Há forte acento na família, como componente central do setor informal e, portanto, como a principal educadora e prestadora de atenções, serviços e políticas de bem- estar, e um agente social da maior importância para assumir a função de esfera substituta do Estado, no desenvolvimento de redes de apoio, segurança e proteção social. Nesse sentido, a família é vista como o elemento crucial nas mudanças estratégicas e na transição de um Estado intervencionista para um Estado minimalista.

A ênfase dada ao familismo, como esfera estratégica do novo padrão de bem- estar, é justificada também pela nova direita porque os princípios de bem-estar e da filosofia social-democrata levaram à decadência moral e religiosa, a família tradicional. Para Saraceno (1995), essa tendência trata-se de uma refamiliarização da proteção social na atualidade, com um indiscutível retorno a valores e práticas conservadores, contraditórios e inadequados às novas formas de organização e composição da família contemporânea. Assim, por parte da assistência familiar, espera-se ajuda mútua entre os parentes e o papel fundamental de cuidadora social a ser cumprido pela mulher. As famílias também poderam contar com o apoio dos membros das comunidades vicinais e dos amigos próximos.

Analisando a importância atribuída por essa lógica privatista às políticas familiares, Peele (apud JOHNSON, 1990, p. 125) afirma que “los conservadores querian programas destinados a reforzar las relaciones de la familia tradicional y para fortalecer la autoridad paterna”, isto é do patriarcado. Esta é a orientação que retorna pelas mãos dos pluralistas de bem-estar, de filiação neoliberal, orientação baseada nos padrões do moralismo britânico e norte-americano dos anos 1980, segundo o qual a melhor alternativa para reforçar as políticas familiares consiste em deixar o governo de fora e permitir que as famílias tomem suas próprias decisões. Estabeleceu-se, assim, conforme Mount (apud JOHNSON, 1990, p. 125), uma oposição entre Estado e família, que iria proporcionar (como de fato proporcionou), uma boa quantidade de combustível para a retórica da nova direita sobre a importância e centralidade do setor informal na provisão social. Portanto, com base no exposto, observa-se que a modalidade de assistência familiar e comunitária executada pelos setores não-oficiais, apresenta-se com traços bastante distintos do padrão de bem-estar beveridgiano e keynesiano-fordista, tais como: prevalecimento da ideologia neoliberal conservadora que as orienta e as determina; perfil primário dos atores e/ou agentes sociais (pessoas comuns da comunidade, familiares, amigos e parentes); caráter plural das ações (em redes assistenciais privadas de auto ajuda e/ou de ajuda mútua); e desinstitucionalização da assistência social, atualmente executada em cenário aberto e

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comunitário, diferentemente do padrão institucionalizado anterior. Dessa forma, os cidadãos, antes considerados sujeitos de direitos tornam-se, ao mesmo tempo, “ativos produtores, distribuidores e consumidores de bens e serviços de bem-estar e, em geral, de sua própria proteção social, como afirma Gómez Herrera” (2001, p. 71).

Com base nessa argumentação, reforça-se, com Pereira (2004, p. 146) o entendimento já manifestado de que “a concepção de bem-estar dos neoliberais não é neutra e inocene”. Ao contrário, o que se percebe é que tal concepção contém forte conotação valorativa, até porque, analisa Pereira (2004, p. 146),

o bem-estar neoliberal está associado ao mérito individual (e não aos direitos de cidadania social); à produtividade capitalista livre de controles (e não à redistribuição de bens e serviços coletivos) e à igualdade de oportunidades – life chances – (DAHRENDORF, apud ROMERO, 1998), e não à igualdade de resultados.

Pode-se dizer que o pluralismo de bem-estar neoliberal consiste em uma ideologia difundida pela nova direita, que ganhou força política como estratégia reformista tornando-se um paradigma de provisão social dominante na Europa, a partir dos anos 1980, no período posterior à suposta crise do Estado de Bem-estar. Nas décadas posteriores (pós-padrão beveridgiano e keynesiano-fordista), ganhou visibilidade política e status de modelo substitutivo do Estado Social no campo da provisão social (políticas de bem-estar) e passou a ser referência nas sociedades capitalistas avançadas ditas pós-industriais. Ao final dos anos 1980 obteve adesão dos governos dos países da Europa do Sul/Europa Mediterrânea e do Brasil, e foi nesses contextos que o modelo plural foi adotado de forma peculiar.

De fato, a centralidade da proposta plural ou mista está na ênfase dada à competição privada, à auto-dependência, à auto-ajuda, à ajuda mútua e às responsabilidades comunitárias e familiares, para justificar a retirada do Estado da provisão social pública39.

Com base na classificação adotada por Johnson (1990), reitera-se que, no pluralismo de bem-estar neoliberal advoga-se a transferência de responsabilidades pela provisão social do setor oficial (Estado) para três setores não-oficiais – assim denominados pelo autor: voluntário (não lucrativo); informal (espontâneo) e mercantil ou comercial (lucrativo).40 A identificação de cada um desses setores com seus respectivo perfis e funções

39

Ver estudo crítico e propositivo de Norman Johnson (1990).

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Com base na classificação adotada por Johnson (1990), as competências específicas e a função social de cada um desses setores continuará sendo objeto de atenção do presente estudo por sua identificação com o seu objeto de investigação. Este conteúdo está referenciado, também, nas análises de Ian Gough (1979); Mishra (1994); Sarasa (1995, 2002); Moreno (2000, 2003 e 2004), dentre outros.

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confirma o conteúdo da provisão social plural ou mista e a característica básica do pluralismo de bem-estar, já enunciados, quais sejam: um ideário que preconiza que a sociedade e a família devem partilhar com o Estado responsabilidades sociais até então de natureza pública, em que o Estado era o principal agente regulador das relações sociais e econômicas. Daí a defesa, pelo pluralismo, de um agregado de bem-estar constituído de instâncias governamentais e não-governamentais (das mais diversas extrações) provedoras e gestoras de bem-estar, com objetivos comuns. Neste cenário de mudanças e de transição de padrões e paradigmas de proteção social, há que se atentar para a seguinte advertência de Mishra (apud PEREIRA, 2004): deve-se identificar com os defensores da economia plural ou mista de bem-estar qual o significado por eles atribuído aos mecanismos de garantia dos direitos sociais, aos princípios de universalização de acesso e de equidade social, bem como à distinção feita entre a função reguladora e subsidiária do Estado e a função provedora da sociedade civil, em sua relação com o Estado, porque, a seu ver, tais distinções e/ou diferenciações são de caráter substantivo, e nunca foram suficientemente explicitadas nos discursos neoliberais e/ou sequer constam como conteúdo de suas agendas e debates. É o que passará a ser tratado, a seguir.