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É exatamente como contraponto à idéia progressista de cidadania ampliada, construída por cidadãos livres e emancipados do ponto de vista político e humano, que os neoliberais postulam uma autonomia fundada no princípio de liberdade negativa, isto é, sem regulação social 18. Por isso, rechaçam a intervenção estatal como instância legal e legítima de garantia de direitos. Nesse sentido, o conceito de liberdade restringe-se à sua dimensão jurídico-formal, associada ao império da lei; ou melhor, de acordo com a perspectiva neoliberal, não é possível outra liberdade que não seja a limitada pelas normas legais que compõem o ordenamento jurídico de um país. A noção de direito e de lei, portanto, baseia-se em um marco normativo e em uma concepção de liberdade que protege, acima de tudo, as esferas individuais de interferências públicas.

Sabe-se que Hayek (1990) foi o principal adepto dessa concepção de liberdade, e seus argumentos alicerçaram o ideário neoliberal. Para esse autor, o cerne do direito e, portanto, da liberdade individual, é o direito à propriedade privada e, logicamente, da liberdade incondicional do mercado (PISÓN, 1998). Em sua concepção, no contexto do capitalismo, os conceitos de liberdade individual e de propriedade privada mantêm estreita ligação e devem ser entendidos como elementos básicos de uma sociedade de mercado livre. Nesse sentido, a

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Nas democracias ocidentais, os chamados direitos individuais – civis e políticos – são reconhecidos como direitos de liberdade negativa (sob influência de Kant) e, como tal, dispensam a intervenção e regulação do Estado na esfera privada. Os direitos individuais favorecem a liberdade de mercado e, por isso, são aceitos pelos neoliberais. Em contrapartida, os direitos sociais são reconhecidos como direitos de liberdade positiva e, como tal, reivindicam a intervenção e regulação do Estado, por intermédio das políticas públicas. Portanto, em uma concepção progressista e dialética, há uma inter-relação entre todos os direitos, não havendo direitos sociais sem a garantia dos direitos individuais e vice-versa.

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liberdade, na perspectiva liberal-burguesa, não é senão o desfrute, sem coação, de bens e riquezas dos quais o indivíduo é proprietário legal. Essas idéias tiveram (e ainda têm) notável influência sobre a crítica dos neoliberais ao Estado Social, aos direitos sociais e às políticas públicas. Para Nozick (apud PISÓN, 1998), neoliberal influente, contemporâneo de Hayek, o ponto de partida de sua teoria é uma vigorosa defesa dos direitos individuais (civis e políticos), tidos como de caráter inviolável e absoluto. Em seus argumentos, ele insiste no reconhecimento legal do direito individual básico à propriedade e o vincula a uma concepção de justiça, cujos princípios devem estar, a seu ver, relacionados às leis e à eficácia do mercado. Pisón (1998), ao trazer para o debate a polêmica posição desses dois autores neoliberais, afirma tratar-se de uma teoria dos direitos que vincula uma determinada concepção de justiça à supremacia do mercado. Hayek (1990) e Nozick (apud PISÓN, 1998) rechaçam a vigência dos direitos sociais, por entenderem que eles implicam intromissão intolerável do Estado na economia e na liberdade individual, elementos que constituem os fundamentos do liberalismo clássico e da democracia de mercado. Também as políticas redistributivas são alvo de duras críticas desses dois teóricos, pois tais políticas justificam os direitos sociais e se inspiram em princípios de liberdade e justiça social, com igualdade e equidade. Para esses autores, a política de distribuição possível e mais justa a ser feita deve ser determinada pelos critérios privatistas do mercado e somente essa instância (mercado) tem o mecanismo de distribuição mais justo e eficaz e, portanto, é identificado com uma suposta justiça individual (não-redistributiva). Na formulação desses neoliberais, há que deixar o mercado atuar livremente, sem que o Estado dite regras à economia. Como questão de fundo, no panorama geral do pensamento neoliberal, os ataques aos direitos sociais e às políticas sociais públicas não são mais do que um corolário de seu rechaço ao Estado Social (PISÓN, 1998).

Nessa perspectiva, os direitos sociais, como instrumentos justificadores da atividade intervencionista do Estado Social na implementação de políticas públicas, são também vistos como os impulsionadores das pressões que a burocracia estatal exerce contra os cidadãos, em suas liberdades individuais. Hayek (apud PISÓN, 1998) argumenta, ainda, com expressiva ironia, que a justiça social, invocada para justificar a atuação intervencionista e positiva do Estado de Bem-estar, não é senão uma mera superstição pseudo-religiosa, constituindo-se em uma ameaça aos valores individuais, essenciais, a seu ver, à civilização e à modernidade. Em vista disso, afirma categoricamente que a justiça social é uma fraude, por pretender alterar os desígnios do que ele denomina de ordem espontânea (relação entre sociedade e mercado) da vida social.

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Para ele, essa ordem espontânea é resultado de um processo evolutivo, cujos efeitos (como a pobreza e a desigualdade social) são uma conseqüência natural do livre jogo das forças mercantis e, portanto, inerentes ao dinamismo da vida em sociedade. Por conseguinte, argumenta que os direitos sociais são produto de um engano, porque a crença na existência de algo vago que se chama justiça social, a seu ver constitui uma ameaça permanente à liberdade individual. Assim, tanto Hayek (1990) como Nozick (apud PISÓN, 1998), reafirmam seu descompromisso com a democracia e a cidadania ampliadas, chegando a ponto de afirmar – em uma clara distorção do conceito de justiça social redistributiva – que, quando o Estado intervém em favor de interesses outros, que não os do mercado, aí sim, é que se comete um ato de injustiça. Ao expor esses argumentos, os referidos autores objetivam chamar a atenção para a centralidade de um debate histórico e contemporâneo, mas nem sempre explícito, que tem como questão central as restrições impostas à extensão da democracia e da cidadania social, mediante o não-reconhecimento dos direitos sociais como direitos genuínos. Esses argumentos estão fundamentados em outra lógica, a que vê na intervenção do Estado um caminho para a servidão dos indivíduos e do mercado, tendo em Hayek (1990) o seu mentor e precursor (PISÓN, 1998).

Outro argumento neoliberal é o de que a garantia de bens e serviços sociais, mediante políticas públicas afiançadas pelo Estado, impede o crescimento da economia e, por extensão, o processo de acumulação de riqueza. é também defensor da tese naturalista de que as desigualdades sociais, quando não excessivas ou intoleráveis, tornam-se úteis ao crescimento da economia, beneficiando a todos (PEREIRA, 2001). Ainda segundo Hayek (1990), as desigualdades sociais permitem, de um lado, uma taxa de poupança maior, pois são as classes mais abastadas que de fato poupam, incentivando, assim, a expansão dos investimentos e tornando esse mecanismo de seleção natural gerador de maior crescimento econômico. E, por outro lado, as desigualdades sociais cumprem, a seu ver, o papel de estimular os pobres a trabalhar mais e melhor. Para os neolberais, a lógica dos direitos não se contrapõe à lógica do mercado, e nem se mostra tão perniciosa por confiscar a riqueza dos mais afortunados, além de evitar o prolongamento da cultura da dependência dos pobres à proteção social pública.

Em contraposição a esses argumentos, entende-se, nesta tese, que a relação direta dos direitos sociais com a satisfação das necessidades humanas básicas, cujo atendimento remete ao compromisso e à responsabilidade do Estado, pela implementação de políticas públicas, deve ser debatida e reconhecida como central e relevante. Pereira

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(2001), ao comentar Pisón (1998), afirma que, ao privilegiar os direitos sociais no conjunto da cidadania e reconhecer as necessidades humanas como ponto de partida e de chegada de um efetivo comprometimento público, Pisón (1998) reconhece que os direitos sociais extrapolam um constructo normativo abstrato (aspecto legal) e rejeita o individualismo, bem como o sentido negativo implícito no conceito neoliberal de liberdade. Para Pereira, (2001, p. 242-243),

os direitos sociais não devem visar apenas à prestação de benefícios e serviços como dever do Estado e direito de crédito do cidadão mas, principalmente, à remoção de obstáculos ao exercício concreto da liberdade, dotando-se, dessa forma, a liberdade formal e abstrata (contida nas leis), de sentido material.

Com efeito, Pisón (1998)19 argumenta que os direitos sociais remetem ao que ele denomina de liberdade real que se traduz na capacidade de ação do Estado Social de atender às necessidades dos cidadãos, tendo em vista o seu bem-estar. Para ele, sem a satisfação das necessidades reais dos homens, não há liberdade e nem o exercício de uma cidadania social, de forma substantiva e ampliada.

O certo é que a estratégia utilizada pelos neoliberais, de criar uma nova mentalidade cultural e política, contrária à cultura dos direitos, deu resultados e ganhou adesões, porque penetrou fundo no chão das crenças populares, em busca de um consenso. Sem dúvida, com essa estratégia, efetivou-se uma combinação perfeita entre crenças e senso comum com teorias e ideologias defensoras da eficiência e eficácia dos interesses do capital. Parafraseando Gramsci (apud BORÓN, 1999, p. 11), “tais teorias e ideologias adquiriram a solidez das crenças populares, travando, com êxito, uma batalha pela hegemonia no seio da sociedade civil”. Concretizaram-se, assim, ganhando materialidade histórica, o que Gramsci chamou de “proposição da filosofia da práxis, como sendo aquela que sustenta que as crenças populares têm a validade das forças materiais” (apud BORÓN, 1999, p. 11)

O pensamento crítico de Gramsci demonstra atualidade e compromissao com os desafios da modernidade e ganha maior visibilidade histórica no estágio atual de desenvolvimento do capitalismo, essencialmente marcado por processos de exclusão social, antagonismos de classes e de desigualdades sociais, em que se estimula o

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Pison (1998) apresenta uma argumentação consistente sobre os direitos sociais e, por isso, tornou-se objeto de interesse deste estudo, não obstante esse autor adotar algumas posições teóricas polêmicas que, do ponto de vista teórico-metodológico, tendem a uma abordagem funcionalista, gerando uma tensão teórica, em particular, na análise que faz sobre os fenômenos sociais, que não são analisados como resultantes das contradições de uma determinada lógica (capitalista) e, portanto, não implicam rupturas radicais.

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dinamismo da economia, em detrimento do desenvolvimento social. Nesse contexto, cria- se um quadro aparente e ilusório de ascensão social entre as classes sociais pauperizadas, excluídas dos processos garantidores da cidadania social. Sobre o emprego da expressão catarse (cartasis) e do conceito de filosofia da práxis, categorias reconhecidas como síntese de seu projeto, Gramsci (1995, p. 53) argumenta:

A estrtuura da força exterior que subjuga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar um nova forma ético-política, em fonte de novas iniciativas. A fixação do momento catártico torna-se, assim, toda a filosofia da práxis; o processo catártico coincide com a cadeia de sínteses que resultam do desenvolvimento dialético.

Assim, estrategicamente, o ideário neoliberal foi sendo absorvido e incorporado às crenças populares, ganhando também a adesão de governantes e de segmentos expressivos da sociedade civil. Em conseqüência dessa estratégia de esvaziamento das esferas públicas e de destituição de direitos, há sociedades cada vez mais passivas, injustas, pobres e desiguais.

CAPÍTULO II

O ESTADO SOCIAL RUMO AO PLURALISMO DE BEM-ESTAR

2.1 Traços do Estado Social no contexto europeu: das origens ao período após a