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O pioneirismo da primeira proposta e sua capturação pela ofensiva neoliberal

Para Johnson (1990), o termo pluralismo apresenta uma indeterminação em relação à centralidade de uma instância provedora de bem-estar, como também de imprecisão operacional, no que se refere às competências dos atores responsáveis por essa provisão. Contudo, ressalta que indeterminação e imprecisão estão longe de significar uma formulação neutra ou inocente. A seu ver, os pluralistas empreenderam, de forma deliberada, a desqualificação do Estado de Bem-estar por meio de duras críticas, tanto em relação à qualidade e alcance dos serviços prestados, quanto ao perfil centralizador desse Estado.

Registros históricos informam que, em 1982, o Centro Europeu para Pesquisa e Treinamento do Bem-estar Social de Viena realizou um Seminário Internacional com o título Volviendo a la Gente (ABRAHAMSON, 1995), o qual tratou, especificamente, das

estratégias de participação e de descentralização como elementos-chaves da proposta pluralista de bem-estar. Também foi dada, nesse seminário, ênfase à necessidade de promoção da redução de gasto público, bem como a substituição radical da atuação do Estado como provedor social por uma atuação plural ou mista, a ser assumida por setores não-oficiais (JOHNSON, 1990). Opiniões semelhantes foram expostas em outra reunião, programada também pelo Centro Europeu, em 1984, cujos informes confirmavam o crescimento da adesão entre os países (havia treze ali representados) às iniciativas sociais plurais, voluntárias e informais, como forma de oferecer respostas às falhas na atuação do Estado de Bem-estar.

Em vista disso, Johnson (1990), chama a atenção para a necessidade de questionamento dessa estratégia de esvaziamento progressivo dos espaços públicos, mediante a institucionalização do pluralismo de bem-estar e da desinstitucionalização das políticas sociais, como concretizadoras de direitos, identificando as verdadeiras razões desse processo.

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Um aspecto curioso nessa operação desmonte é saber como a discussão sobre o pluralismo de bem-estar surgiu no marco da defesa dos setores voluntário, informal e comercial como estratégia política que atribui grande centralidade ao papel do mercado. Para Johnson (1990), nessa operação, foram enfatizadas as falhas do Estado de Bem-estar e ignorados seus êxitos. Não foram apresentadas provas concretas e nem pesquisas fundamentadas empiricamente, que comprovassem que o Estado de Bem-estar tinha sido um equívoco e/ou argumentos convincentes que provassem que a proposta de pluralismo neoliberal poderia produzir melhores resultados. A seu ver, era clara a intenção neoliberal de ruptura com o modelo de bem-estar público e universalizador, em benefício de um modelo plural ou misto, de cunho privatista e residual. Ademais, um outro aspecto a considerar é a ousadia da proposta pluralista de não tentar estabelecer limites ao setor privado (lucrativo e não-lucrativo), com o argumento de que seria encontrado um equilíbrio natural nas relações entre os mercados sociais e econômicos. Em outras palavras, em uma economia mista de bem- estar, seria o mesmo que buscar encontrar um equilíbrio entre “a competitividade do mercado de empresas privadas e a humanidade do bem-estar social” (JOHNSON, 1990, p. 89).

Abrahamson (1995), ao também analisar o surgimento do pluralismo de bem- esta e o momento de sua apropriação pelos neoliberais, antes mesmo das mudanças ocorridas na Europa do Leste (como a decomposição da União Soviética e do estalinismo) e da construção da chamada integração econômica européia (atualmente União Européia), indica algumas medidas que se configuraram como ingerências das chamadas instituições políticas supranacionais (ONU, OCDE), sinalizadoras de um novo desafio: a adoção de medidas políticas e econômicas plurais ou mistas, relativas ao financiamento, à regulação e à realização do bem-estar no mundo moderno e, em especial, na Europa. As propostas, segundo ele, requisitavam, de forma clara, uma necessária revisão do papel do Estado de Bem-estar,em nome da retomada do crescimento econômico. A seu ver, dois fatos passaram a exigir maior atenção dos analistas. O primeiro foi a crise do petróleo, em meados dos anos 1970 que conseguiu interromper a implementação da primeira fase do processo de construção e de desenvolvimento do Estado de Bem-estar em alguns países da Europa, e, o segundo foram as iniciativas e interpretações das instituições supranacionais, (ONU e OCDE e outras), sobre o papel das políticas sociais, a partir dos anos 1970. Até então, o Estado de Bem-estar era visto como parte integrante do moderno desenvolvimento capitalista, desde a crise de 1930, e não como uma carga econômica para o sistema, como passou a ser identificado.

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Baseado em fontes documentais e históricas, Abrahamson (1995) afirma que, em 1987, os ministros de assuntos sociais, ao serem convocados pela ONU, elaboraram uma agenda com a seguinte denominação: A política social em transição: adaptação às necessidades dos anos 1990. Essa adaptação, como seria previsível, teria caráter plural ou misto, o que destoava da concepção da ONU, até então, cujas formulações sobre política social eram bastante genéricas. No entanto, esse procedimento tinha precedentes. Em 1981, a OCDE declarou, surpreendentemente, que o Estado de Bem-estar estava em crise, destacando dois fatores que caracterizavam esse fato. O primeiro era uma crise financeira e, o segundo, uma crise de legitimidade política. Esse foi o primeiro argumento neoliberal utilizado para justificar a já anunciada necessidade de promoção de ”uma melhor adequação na agenda política, em relação ao sistema de provisão social na Europa, face às necessidades dos anos 1990” (ABRAHANSON, 1995, p. 115). Em uma segunda reunião, realizada em Bratislava, no verão de 1993, os ministros de assuntos sociais discutiram com maiores detalhes o desenvolvimento da política social33. Segundo Abrahamson (1995, p. 114), esta conferência ressaltou a necessidade de obtenção de acordo sobre a aplicação e a definição de alguns padrões sociais básicos, sem, contudo, especificar a essência de tais padrões, e nem discutir o conteúdo do que se resumiu a uma “aplicação dos princípios-guia das Nações Unidas para o fortalecimento da sociedade civil”.

Ainda em 1993, em Copenhague, a ONU surpreendeu novamente ao incluir, como ponto de pauta de uma reunião com representantes mundiais, o aprofundamento do debate sobre o desenvolvimento da política social. Todas essas estratégias expressam, como faz ver Abrahamson (1995), um duplo sentido: de um lado, um novo olhar sobre as políticas sociais, ao atribuir-lhes importante status social; e, de outro, uma clara intenção desses organismos de romper com as orientações keynesianas e difundir uma nova orientação econômica, o que redundou no monetarismo.

Para Abrahamson (1995, p. 114) foi no documento da ONU, de 199334, que se empregou o conceito de agregado de bem-estar ou welfare mix, para significar “a cooperação entre vários setores sociais na provisão de bem-estar ao cidadão, a saber: o governo, o setor privado, as organizações voluntárias, o setor informal, a comunidade e a família”. Nesse documento, fica claro um enfoque pluralista diferenciado do anterior (do pós-guerra), o qual sugeria que os governos deveriam, sobretudo, levar em conta uma correspondência não-

33 Documento da ONU (1993, p. 3-4 apud ABRAHANSON, 1995). 34

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convencional entre tais atores sociais, como: descentralizar a tomada de decisões, repartindo responsabilidades, intensificar a qualificação dos envolvidos no trabalho social (tanto profissional como voluntário); trabalhar pela flexibilização da administração e da atuação do Estado de Bem-estar (isto é, restrição aos direitos sociais e afrouxamento dos direitos civis), e, por fim, assegurar que os trabalhos voluntário, informal e doméstico fossem reconhecidos e valorizados35. Em vista disso, tanto o discurso que vinha sendo formulado já há algum tempo (final dos anos 1970) sobre a importância de obter o consenso necessário ao desenvolvimento das políticas de bem-estar em bases pluralistas, se concretizou, no dizer de Abrahamson, sob a forma de um agregado de bem-estar, ou welfare mix. Assim, instituiu-se, em 1989, a concepção de pluralismo de bem-estar, sob a égide neoliberal, (ONU, 1989).

Tudo isso confirma que a proposta original de pluralismo de bem-estar não surgiu do nada e muito menos com a nova direita. Ela tem raízes históricas, muito embora não tenha se concretizado historicamente. Os autores citados afirmam que os diferentes Estados de Bem-estar na Europa sempre incorporaram a dimensão plural – já que requeriam várias fontes provedoras, _ mas que , no início dos anos 1980, tal dimensão foi apropriada pelos neoliberais que lhe imprimiram sua lógica privatista, antiestatal e mercadológica. Não por acaso a discussão sobre pluralismo de bem-estar ganhou destaque no debate contemporâneo da política social.

Ao comparar as diferentes tipologias e ocupar-se, sobretudo, com o estudo de modelos de bem-estar no interior da sociedade capitalista, especialmente do chamado modelo latino de proteção social, característico da Região Sul da Europa, denominada Europa do Sul36, o presente estudo constatou que foi no contexto de mudança dos modelos de bem-estar capitalistas, que a nova direita afirmou a existência de uma crise do Estado de Bem-estar. Foi, portanto, no interior da sociedade capitalista que emergiu e ganhou proeminência nos círculos intelectuais, nacionais e internacionais, o fenômeno do pluralismo de bem-estar, sob influência da concepção neoliberal – na verdade, como afirma Pereira (2001, p. 36), “um liberalismo econômico revisitado e adaptado aos tempos atuais do capitalismo globalizado e da produção flexível”.

Para melhor visualisar a composição do pluralismo de bem-estar, vale reproduzir os diagramas construídos por Abrahamson (1995), como representação de um modelo

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Abrahamson, (1995) discorre sobre o trabalho voluntário e o doméstico, segundo a ótica dos pluralistas de bem-estar neoliberais.

36Esta será a denominação utilizada nesta tese, ou seja, Europa do Sul ou Região Sul da Europa, para

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triangular, tomado como referência e por analogia. Conforme Abrahamson (1995), o modelo triangular foi desenvolvido na metade dos anos 1980 simultaneamente pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Copenhague e pelo Centro Europeu para Pesquisa e Treinamento do Bem-estar Social de Viena. A demonstração geográfica da configuração do triângulo do bem-estar, tomado como referência por Abrahanson (1995), foi desenvolvida no Seminário, A posição e participação dos clientes: a questão chave na política social avançada, em Helsinque, Finlândia, e correspnde às figuras 1, 2 e 3.

Nessa demonstração, há a prevalência de uma matriz triangular que contém no seu interior, três esferas: mercado, Estado e setores não-mercantis da sociedade, das quais recursos específicos podem ser obtidos e canalizados, de forma conjugada, para a proteção social, dependendo da correlação de forças estabelecida. A proposta apresentada pelos pluralistas de bem-estar, ao justificar a composição do chamado agregado de bem-estar (múltiplos atores e setores), para atuação no campo da proteção social, se assemelha a essa configuração de Abrahanson (1995), conforme demonstram as figuras 1, 2 e 3, a seguir.

As figuras 1e 2_Triângulo de bem-estar plural 1e 2_, indicam com quais recursos cada esfera deverá atuar no campo da provisão social (o mercado, com o dinheiro, o Estado, com o poder e os setores informais e não-mercantis, com a solidariedade).

Um modelo triangular para provisão plural de bem-estar

Fonte: Peter Abrahanson, 1995.

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Fonte: Peter Abrahanson, 1995.

Figura 2 Triângulo do bem-estar plural 2

A figura 3 _Triângulo de bem-estar plural 3_ , a seguir, ressalta a articulação que deverá existir entre as três esferas, com destaque para a relação vertical estabelecida entre os setores formal e informal, público e privado, com prevalência da lógica de economia de mercado, com mediação das organizações voluntárias, dos grupos de auto- ajuda e das cooperativas e pequenas iniciativas. Essa proposta de provisão social, de caráter plural ou misto, é apresentada como estratégia de substituição do papel do Estado.

Fonte: Peter Abrahanson, 1995.

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Nessa composição do pluralismo de bem-estar, o bem-estar do indivíduo depende da extensão da relação que ele mantém com as três esferas referidas que, por sua vez, operam da seguinte forma: o mercado assegura o dinheiro, o Estado, o poder, e a sociedade e setores sociais não-mercantis, a solidariedade. A diversidade de meios indica que diferentes lógicas estão em jogo e que os recursos serão canalizados e disponibilizados, dependendo da inter-relação estabelecida entre as esferas.

Habermas (apud ABRAHAMSON, 1995), para quem o dinheiro e o poder pertencem ao chamado mundo do sistema, e a solidariedade pertence ao mundo da vida, o mundo do sistema coloniza o mundo da vida, impedindo-o à sua emancipação. Por isso, para que haja a emancipação, a sociedade precisa ser descolonizada e exercer o controle sobre o Estado. Essa reflexão está relacionada à análise da prática das políticas sociais na Europa ao final da Segunda Guerra Mundial, apontando uma divisão do bem- estar em que Estado, mercado e setores não-mercantis da sociedade têm responsabilidades equiparadas na provisão de bem-estar, o que reforça a proposta de pluralismo de bem-estar que, para Abrahamson (1995), ganhou corpo no início dos anos 1990. De fato, diz ele, na Europa dos anos 1990, todas as três esferas (Estado, mercado e setores não-mercantis da sociedade) foram ativas na organização do bem-estar, variando os níveis de participação de uma ou de outra, para mais ou para menos, conforme a organização social, política e ideológica de cada país. A sua preocupação maior, porém, é com o futuro da política social que, a seu ver, se mostra incerto, apresentando tendências guiadas ora pelo medo, ora pela esperança.

Abrahamson (1995) entende que a experiência do pluralismo de bem-estar não é independente e nem está desvinculada do contexto político no qual foi formulada. Em sua análise, constata a importância crescente do setor voluntário, o qual é enfatizado por autoridades públicas que, preocupadas com a magnitude das questões que têm de enfrentar, transferem-lhe parte de suas responsabilidades. Esse setor, por seu turno, adere a essa demanda pública, definindo suas áreas de atuação e seu nível de envolvimento no contexto do pluralismo de bem-estar. Nesse envolvimento, o anonimato é garantido, e os clientes são classificados por sua condição sócio- econômica com variações nos níveis e formas de atendimento. Esse procedimento amplia-se à medida que autoridades assumem publicamente que, sozinhas, não têm condições de enfrentar certas necessidades, e que elas podem ser atendidas pelo setor voluntário. Trata-se do que o autor denomina de zona cinzenta, que vai se

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estabelecendo entre a vida civil e o sistema de bem-estar público e que contribui para o aparecimento de uma forte tendência à dualização, isto é, de um sistema de bem-estar bifurcado, em que o mercado, mais generoso, cuida dos trabalhadores melhor posicionados na escala social, e o Estado fica com os grupos menos privilegiados economicamente. Esse sistema dual conduz à existência simultânea de dois tipos de sistemas de bem-estar: um privado, regido pelo mercado, e outro público, que atende precariamente aos marginalizados.

Abrahamson (1995) conclui sua análise expressando certo temor de que o futuro da política social na Europa sustente a tendência já iniciada de favorecer crescente marginalização social, com diferenciações, segregações e polarizações, em vez de combatê-las, porque o Mercado Comum Europeu tende a reforçar uma situação de crescente competição entre as regiões, o que, aliás, é o seu propósito. Como conseqüência, estão sendo previstas migrações internas, necessidade de definição de uma renda mínima, crises entre capital e trabalho e provisão social precária, que poderão levar a uma temida desordem social. Para ele, a direção que têm tomado as discussões, coordenadas pela Comissão da Comunidade Européia, indica a prevalência ora da política social tradicional, ora da política social dual. Seu estudo revela, ainda, um aumento expressivo do fenômeno da pobreza na Comunidade Européia. Como tendência, ressalta que estão sendo transferidas gradativamente responsabilidades sociais públicas para o setor voluntário e para iniciativas locais da sociedade civil, baseadas na auto-ajuda. Assim, os pobres e os grupos de risco tendem a ficar dependentes de redes de solidariedade da sociedade civil ou de governos locais. A solidariedade continua sendo um princípio central do bem-estar misto, porém mais estreita, excluindo segmentos pauperizados, para os quais o prognóstico não é favorável. Há receio do fortalecimento de uma sociedade dual e do aumento da pobreza.

Para Abrahamson (1995), a Europa dos anos 2000 o futuro baseado no pluralismo do bem-estar, prenuncia perspectivas preocupantes e sombrias. A criação de meios de integração de pessoas marginalizadas na vida social normalizada e no trabalho, e/ou em estratégias de inclusão, vem sendo enfatizada, mediante a adoção de políticas alternativas de desenvolvimento econômico e social integrado, enfocando a produção.

Diante desse panorama, não é por acaso que Abrahamson (1995) refira-se à dialética da esperança e do medo como recurso analítico para encerrar sua reflexão, ao mesmo tempo em que sugere políticas sociais eficazes que dissipem o medo e tornem a esperança verdadeira.

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Na mesma linha de análise de Abrahamson, mas demonstrando esperança, Gómez Herrera (2001), autor espanhol identificado com as estratégias do welfare mix, apresenta várias modalidades de regulação social denominadas por ele de traços de uma

regulação política plural, que se contrapõem ao modelo keynesiano-

fordista/beveridgiano. Sobre tal processo de regulação, Gómez Herrera (2001, p. 77), enfatiza que “o fluxo combinatório e relacional do welfare mix deve presidir esse novo padrão de bem-estar, em sua forma mais completa e complexa”. Para tanto, Gómez (2001) apresenta um quadro classificatório sobre os quatro setores que ele denomina de âmbitos e/ou esferas de bem-estar inerentes ao welfare mix e que, a seu ver, devem estar em constante relação. São elas: a esfera do mercado (organizações sindicais, empresariais e de categoria); a esfera da política (atores que atuam em referência ao Estado); esfera da economia social ou mercado social (atores que atuam nos chamados setores privado social ou terceiro setor) e, por último, a esfera das comunidades primárias (as famílias e as redes espontâneas e informais da vida cotidiana). Nesse quadro, Gómez (2001) justifica o uso como referência, do esquema sociológico apresentado por T. Parsons, que foi posteriormente reelaborado por Donati (apud Gómez, 2001). A seu ver, a importância de tal esquema consiste em corroborar com a tese pluralista de bem-estar na perspectiva neoliberal.

3.2 Neoliberalismo, pluralismo de Bem-estar e emergência da chamada sociedade de