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Segundo Pereira (2003, p. 1), “no centro do debate sobre a política social está a velha questão da antinomia entre os princípios e objetivos universais e seletivos”. Do enfrentamento dessa questão, podem resultar tendências à universalidade e à progressividade, ou à seletividade, focalização e residualidade no atendimento de necessidades sociais.

Contrapondo-se à universalização da política social, a focalização na pobreza extrema afirma-se como principal medida neoliberal de racionalização dos gastos públicos, e não de atendimento eficiente e eficaz aos necessitados. Por buscar atender aos mais pobres dentre os pobres, ou cidadãos em situação de carência extrema, tal princípio passa a ser justificador da minimização do papel do Estado e do caráter residual de suas ações na área social, ou, em outros termos, a aplicação desse princípio obedece mais à relação custo-benefício dos programas voltados para a pobreza do que à sua efetividade.

Conforme Pereira (2003), no bojo desse procedimento, retornam vícios arcaicos, a exemplo dos testes de meio (means tested), ou comprovações constrangedoras de pobreza, da fraudemania (mania de perceber fraude no trato com os pobres), das contrapartidas imperativas e dos estigmas criados pelas discriminações negativas. Esses procedimentos têm o objetivo claro de excluir e reduzir ao máximo as demandas por assistência social, ao focalizarem a

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Com base em princípio liberal, a Lei Orgânica de Assistência Social _LOAS (Lei n° 8.742; Brasil, sancionada em 7 de dezembro de 1993) determina em seu artigo 20 (benefício de prestação continuada_ BPC) e artigo 21 (benefícios eventuais) que os beneficios sejam destinados a famílias e/ou segmentos cuja renda mensal percapita seja inferior a ¼ do salário mínimo, ou seja, a Lei determina que um benefício social não pode competir com o pior salário.

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atenção nos miseráveis, o que afronta o princípio da universalidade que defende a extensão da cidadania. Por fim, há que ressaltar a irracionalidade política da focalização, por fazer aumentar a pobreza e as desigualdades sociais, ao deixar no desamparo setores sociais vulneráveis que deixaram de ser focalizados.

Diante dessas constatações, vale reconhecer que a questão crucial da pobreza e da desigualdade remete à questão da redistribuição de renda e de poder político. No Brasil, mesmo em conjunturas econômicas mais favoráveis de acumulação de riquezas, a distribuição de renda piorou ou se manteve no mesmo patamar de anos anteriores. Esse dado confirma que o crescimento econômico, sem justiça social e sem redistribuição de renda e poder, não reduz os índices de pobreza e de desigualdade social – princípio que os neoliberais se recusam a incorporar em suas agendas. Percebe-se, também, que o fator econômico, embora seja referência necessária, é de teor instrumental, técnico e autoritário, porque imposto de cima para baixo. Outros fatores – históricos, políticos, éticos e morais – têm que ser levados em conta quando se trata de garantir direitos e qualidade de vida humanos. Por trás das medidas tecnicistas e instrumentais e dos esquemas focalistas de proteção social, está a estratégia do não-enfrentamento de problemas estruturais gerados, historicamente, pela ausência de critérios redistributivistas de políticas sócio-econômicas.

Nesse quadro de incongruências neoliberais, cabe ressaltar efeitos perversos da aplicação do princípio da focalização, a saber: a) baixa efetividade e caráter regressivo (não progressivo) das políticas sociais, que se expressa na ausência de prioridade política e de propostas inovadoras – que requerem políticas estruturais, universalizadoras e redistributivas – e nas justificativas de ausência de recursos financeiros; b) o prevalecimento do pressuposto de que a estabilidade econômica é pré-requisito da política social, quando se sabe que o combate à pobreza e à desigualdade social não pode estar vinculado apenas ao volume agregado de recursos financeiros; c) a ausência da concepção de que deve prevalecer uma cidadania articulada aos conceitos de justiça social redistributiva, liberdade positiva e igualdade de oportunidades e de condições. Essas questões não podem ser reduzidas unicamente a programas econômicos de geração de emprego e renda e/ou a programas de transferência de renda, que se fundamentam na idéia de que cabe à economia determinar a cidadania. Não é possível equalizar oportunidades e promover condições igualitárias (falácias do mercado), sem enfrentar a questão da redistribuição de renda e de poder, que também depende do controle democrático da sociedade sobre atos e ações dos governos.

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Portanto, a aplicação do princípio da focalização na política social torna-se problemática por ater-se à função distributiva dessa política, vinculada aos resultados de uma política econômica geradora de crescimento e, por isso, poupadora de recursos em favor dos interesses do mercado. Em decorrência, a distribuição atinge apenas as sobras orçamentárias, sem levar em conta a cidadania e a possibilidade de os pobres constituírem- se sujeitos de sua emancipação política e humana. Esta é a razão pela qual os neoliberais não enfrentam os compromissos redistributivos de renda e poder, optando por satisfazer apenas o direito à sobrevivência, mediante uma cidadania tutelada. Assim, com a focalização, não se produz em condições igualitárias de acesso a bens, serviços e direitos, o que conduz a uma realidade definida por Hobsbawm (1994), como barbárie social. Atualmente, apesar da defesa da globalização de direitos, da economia, do desenvolvimento, o que mais se globaliza, sob a ingerência neoliberal é a miséria humana, reforçada por uma distribuição injusta de recursos, de condições de acesso e de oportunidades que aumenta a pobreza e as desigualdades sociais não só entre os países, mas no interior de cada país. Tanto o chamado localismo globalizado (padronização de hábitos e costumes, processo de massificação de consumo), quanto o globalismo localizado (extrativismo ecológico, sob regulação do capital internacional, por exemplo na Amazônia) são expressões das relações de poder impostos pela globalização neoliberal hegemônica, mediante o chamado colonialismo cultural e epistemológico. Nesse contexto, a relação do Estado com a sociedade civil tem sido manipulada pelas agências internacionais. O atual discurso valorizado é o de cunho econômico. A fala valorizadora do social, como mediação do direito, quando expressa institucionalmente pelo Estado, é minimizada. Experiências comunitárias foram institucionalizadas e suas lideranças cooptadas com salários altíssimos. As ONGs, de um modo geral, assumiram o lugar dos movimentos sociais16 e atuam livremente, sem um efetivo controle democrático da sociedade. Acentuou-se a precarização das relações de trabalho no campo, com grande mobilização para as áreas urbanas e/ou para os assentamentos agrícolas. Os espaços privados foram invadidos, gerando desagregação familiar, aumento do tráfico e consumo de drogas (lícitas e não-lícitas), redefinição e/ou desconstrução dos papéis na ordem familiar, deteriorização de valores éticos e morais, aumento da violência, em suas múltiplas expressões. Uma opressão generalizada e difusa tornou-se cotidiana, com a prevalência de processos de

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Ver em obra de Montaño (2002), análise crítica sobre o papel histórico e a relação estabelecida entre os movimentos sociais e as ONGs, no Brasil, a partir dos anos 1970/1980, em que pese o trabalho sério de muitas ONGs que ainda atuam na perspectiva dos direitos sociais.

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alienação social e política (heteronomia). Todas essas polêmicas apresentam, de forma implícita ou explícita, a idéia de que os princípios focalizadores neoliberais, ao se contraporem aos princípios universalistas, colocam como imperativo o enfrentamento do espectro da concentração de renda e de poder, pela via da justiça redistributiva.