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Para Leibfried (apud GOUGH, 1997), o modelo de bem-estar mediterrâneo/Europa do Sul caracteriza-se por um nível rudimentar de provisão social e de desenvolvimento institucional, embora haja diferenças nacionais. Por isso, entende que antes de sistematizar qualquer argumento sobre o regime de bem-estar da Europa do Sul, há que se estabelecer comparações. Moreno (2000) destaca que os cinco países citados (Espanha, Portugal, França, Itália e Grécia) compartilharam ideologias durante o

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século XX em relação à cultura, à história, aos sistemas de valores e às peculiaridades institucionais, ainda que em distintos graus e níveis de ocorrência, tais como: a) experiências com ditaduras e governos autoritários; b) atrasos nos processos de modernização (CASTLES, apud MORENO, 2000), com exceção de algumas regiões mais industrializadas, a exemplo da Espanha e da Itália; e c) relevância dos fatores religioso e familiar, com expressiva atuação da Igreja e da família. Estas instituições são reconhecidas como tradicionais provedoras de políticas de bem-estar, em que pese a diminuição de sua presença nas últimas décadas, em decorrência de dois acontecimentos a partir dos anos 1990, a saber: os efeitos dos processos de europeização e de globalização que têm estimulado maior convergência desses países com os da Europa Continental e/ou Central, em particular do ponto de vista econômico e monetário, e maior grau de secularização das práticas sociais na Europa do Sul.

A prevalência do fator religioso no modelo latino/ mediterrâneo, em virtude de grande parte dos países do sul da Europa terem desenvolvido seus Estados de Bem-estar com governos democrata-cristãos, privilegiou a ajuda ao próximo cada vez mais próximo, e não a decisiva intervenção estatal como dever de cidadania. Contudo, o processo de europeização tem promovido certa convergência nos dados agregados em relação ao gasto social como percentagem do PIB nacional. Nesse aspecto, os países latinos destacam-se em relação à média do conjunto dos países da União Européia (EU), demonstrando que os países da Europa do Sul apresentam o maior incremento em gasto social, em termos percentuais, em relação aos quatro regimes de bem-estar europeus (continental, anglo- saxão, meridional e nórdico). Moreno (2000), destaca o notável esforço financeiro dos governos dos países da Europa do Sul nas últimas décadas, para se equipararem, do ponto de vista dos ajustes fiscais e econômicos, com os demais países europeus, apesar das particularidades que distinguem esses países.

Observam-se algumas tendências bastante similares e comuns a esses países e ao Brasil, sejam de caráter demográfico, sejam no âmbito das condições sócio-econômicas. Assim, Moreno (2000, p. 95), qualifica a Europa de bem-estar mediterrâneo como uma via média, ou “uma opção intermediária entre o modelo bismarkiano (de manutenção de rendas ocupacionais e políticas baseadas no princípio contributivo e no contrato social) e o modelo beveridgiano (cobertura universalista de políticas não-contributivas e de pleno emprego), o que configura uma Seguridade Social mista”, e se pode dizer o mesmo em relação ao modelo misto do Brasil. Na Espanha, no âmbito da assistência social

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institucionalizada, apesar do incentivo às atividades informais (plurais ou mistas) desinstitucionalizadas e à microsolidariedade familiar, os órgãos públicos atuam mediante a destinação de recursos, serviços sociais e/ou medidas de acolhimento à mulher, seja mediante recursos próprios e/ou por convênios que garantem vagas em casas de acolhida, centros de atenção, centros-dia, residências para idosas (personas mayores), e/ou em centros de informações e serviços, a exemplo do que demonstra a tabela 5 sobre os recursos e serviços oferecidos às mulheres pela Comunidade Autônoma de Aragón.

Tabela 5 Recursos para mulher – Comunidade Autônoma de Aragón-Espanha_2004

Huesca Teruel Zaragoza Aragón

Casas de acolhida 1 1 6 8

Vagas em casas de acolhida 15 10 73 98

Vagas em casas de acolhida por 10.000 mulheres 1,4 1,5 1,6 1,6

Centros de Atenção 3 2 5 10

Centros de Dia - 1 1 2

Centros de Informação e Serviços 9 8 14 31

Residências - - 1 1

Total recursos 13 12 27 52

Fonte: Anuário Social-A Caixa-para Espanha e CCAA, 2004. Dados para Aragón: Serviço de Planejamento, Coordenação e Assuntos Jurídicos. Secretaria Geral Técnica: Departamento de Serviços Sociais e Família. In: Pesquisa Contínua de Pressupostos Familiares. Instituto Nacional de Estatística, 2004.

Em síntese, como características mais gerais do modelo latino, Moreno (2000) destaca ainda alguns traços que considera particulares à Europa do Sul, em relação aos citados regimes de bem-estar europeus. São eles: a) auto-percepção das necessidades de estilos de vida diferentes; b) prevalência da cultura da microsolidariedade familiar, entendendo a família como um espaço privado de provisão e de proteção social, com ênfase à figura da mulher como cuidadora social; c) propostas de conjunção entre os princípios da universalidade e da seletividade, mediante a combinação de diferentes recursos institucionais, tanto de caráter privado quanto público, por intermédio de um intervencionismo concertado, isto é, baseado em convênios firmados entre os setores público e privado; d) predominância de uma peculiar dimensão axiológica e cultural do sistema de bem-estar, ao apoiar-se na idéia de bem-estar como elemento facilitador da autonomia vital das pessoas; e) heterogeneidade dos padrões de reprodução social, o que contribui para o processo de acumulação patrimonial, pelas seguintes razões: ênfase ao regime de propriedade de moradias, cuja titularidade se concentra nas pessoas mais idosas da família (que incentivam a compra, e não o aluguel); prevalência de valores de

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redistribuição patrimonial no âmbito familiar durante todos os ciclos vitais, mediante doações entre os membros da família (prática de repartição intra familiares); proliferação de empresas e empregos de âmbito familiar; e processo tardio de emancipação dos jovens (uso comum dos recursos familiares disponíveis).

Para Castles eFerrera (apud MORENO, 2000, p. 98), el hogar (espaço e/ou ambiente familiar, não necessariamente nuclear) constitui a instituição central de referência, nessa região, na busca pelo bem-estar e qualidade de vida para todos os membros da família. Decorre então seu caráter estruturante na conformação do regime latino, ainda que não se configure como espaço de intervenção direta das políticas sociais públicas de bem-estar. Nesse sentido, el hogar torna-se uma instituição de compensação entre seus distintos componentes geracionais. Segundo Benfield (apud MORENO, 2000, p. 100), “nessas práticas sociais, predomina a ausência de outros referenciais éticos além dos instituídos pelos espaços familiares convencionais”.

Com base no exposto, o fenõmeno do pluralismo de bem-estar, como forte tendência contemporânea, encontrou um campo cultural fértil na Europa do Sul não só para difundir, mas efetivamente para implementar sua proposta, tomando como referência formas peculiares de reprodução das relações sociais e econômicas locais, tais como: preferências culturais, ênfase no princípio da solidariedade, utilização de arranjos institucionais mistos, predominância de práticas religiosas e culturais, adoção de enfoques particularistas e privatistas na reconstrução do Estado de Bem-estar, incorporação de provisão social plural ou mista, em combinação com a provisão pública residual de serviços sociais, enfim, formas peculiares de organização da sociedade civil marcadamente conservadoras vinculadas à auto ajuda e ajuda mútua.

A ênfase dada à divulgação da cultura da dependência, como estratégia neoliberal de culpalização dos beneficiários de serviços sociais públicos pela sobrecarga fiscal do Estado, tem condicionado a percepção dos cidadãos sobre a sua própria condição de pobreza. A literatura específica define como principais traços e tendências pluralistas dos países mediterrâneos: a) a histórica prática social do agregado de bem-estar centrado no nexo: gênero/família/trabalho/assistência, de natureza complementar, buscando a conjunção dessas duas dimensões na perspectiva de satisfação vital dos cidadãos (well being) (MORENO, 2000, p. 98); b) as práticas institucionais de natureza particularista e clientelista e as organizações subsidiadas pelo setor estatal (que constituem um freio às reformas mais gerais, até mesmo porque tais processos estão arraigados e condicionados por aspectos

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culturais); c) a prevalência, de um lado, de sistemas sociais fragmentados, guiados pelos receituários corporativistas de esquerda e, de outro, de subculturas políticas como prática da direita (tradicional clientelismo e paternalismo) que contribuem para fortalecer a condição de ciudadanos precários nessa Região; d) as formas peculiares de reprodução social da sociedade civil nesses países, em que se dão na forma de redes sociais grupais, ou seja, os cidadãos filiam-se a grupos e/ou se inserem em redes de influência que acabam fortalecendo as práticas clientelistas, muito embora tais práticas não sejam exclusivas dos países da Europa do Sul (MORENO, 2000).

Percebe-se, por conseguinte, a influência do pluralismo de bem-estar neoliberal nessa região, quando se constata que muitas dessas redes sociais e/ou grupais são estruturadas informal e espontâneamente. O público, porém, tem pouco conhecimento dessas práticas e uma idéia estrita de pertencimento a esses grupos em função de sua natureza clientelista e da conseqüente reprodução de lealdades feudais a patrões e chefes de filas e/ou de ordem, até mesmo porque tais práticas são reproduzidas de forma discreta no âmbito privado. Ainda são comuns, nessa região, os casos de concessão de subsídios com caráter de favores, com destacada intermediação de política partidária, em troca de apoios eleitorais.

Ainda segundo Moreno, (2000), na Itália e na Grécia, tal prática clientelista institucionalizou-se de forma generalizada. O acesso a essas redes informais, subsidiadas pelos poderes públicos, constitui um instrumento importante de apropriação de recursos públicos e de privilégios (corrupção).

A existência de tais práticas políticas, a exemplo do Brasil, revela a presença de níveis primários de socialização e a reprodução de uma cultura política contrária à formação de sujeitos críticos e conscientes. Nesses países, ainda são muito baixas e limitadas as referências aos direitos de cidadania social. Ademais, o predomínio de interesses particularistas e/ou grupais provocam nos cidadãos uma percepção distorcida dos princípios da democracia com igualdade positiva, da cidadania ampliada e da solidariedade, na perspectiva dos direitos sociais. Por apresentarem um caráter micro (apenas no seio das famílias, dos grupos e das redes informais), tais práticas produzem uma baixa efetividade na provisão social pública e nos serviços de proteção social, requisitos essenciais para a im plementação de uma política familiar, de natureza pública.

Em síntese, a prevalência de interesses corporativistas nessas sociedades explica a fragmentação de seus sistemas de proteção social, em detrimento de uma provisão pública

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e universal na prestação de serviços de proteção social. Observa-se, entretanto, que a tendência de enfatizar a família e o lar, como principal instância produtora e distribuidora de bem-estar ao cidadão, ocorre com maior visibilidade na Espanha.

Segundo dados baseados em estudos do Conselho Superior de Investigação Científica (CSIC) (apud MORENO, 2000), 76% dos espanhóis consideram a família muito importante e 23%, bastante importante na produção de intercâmbios e/ou transferências interfamiliares, que são tanto de natureza material, quanto imaterial (níveis afetivos, transmissão de atitudes, conhecimento, percepções e valores de auto-ajuda e ajuda mútua). Esse papel central atribuído à família e à mulher configura-se como uma visão social e uma cultura que distingue visívelmente as sociedades mediterrâneas. Trata-se de um fator determinante no conjunto de políticas de bem-estar e dos regimes da Europa do Sul. Apesar de reconhecer que nem tudo pode ser quantificado, Moreno (2000) afirma que a incorporação dos cuidados prestados pelas famílias, e, em particular, pelas supermulheres (supermujer del mediterrâneo), aos filhos, pais, irmãos, maridos e/ou companheiros, na contabilidade nacional, pode distorcer os índices e dados contábeis relativos à melhoria dos níveis de produção e de renda dos chamados países latinos.

De forma contraditória, tal nível de dedicação e cuidado das mulheres em relação aos membros da família não tem se traduzido em respeito a elas e reconhecimento de sua atuação, nem mesmo reduzido ou impedido o avanço da violência doméstica que atinge, sobretudo, as mulheres. Ao contrário, conforme demonstra a pesquisa realizada na Espanha, em 2004, pelo Instituto Nacional de Estatística, no período entre 1999 e 2003, tendo adotado como parâmetro o número de chamadas telefônicas (24 horas) dirigidas ao Instituto Aragónês da Mulher/Comunidade Autônoma de Aragón, em relação aos maus tratos físicos e psicológicos, agressão sexual, e outros, constata-se que a violência doméstica em relação às mulheres aumentou, como revela a tabela 6.

Tabela 6 Chamadas ao telefone – 24 horas do Instituto Aragónês da Mulher

1999 2000 2001 2002 2003

Maus tratos físicos 344 408 764 1.346 1.609

Maus tratos psicológicos 105 134 225 376 468

Agressão sexual 16 15 24 39 27

Informação geral 281 410 486 629 1.035

Outros 205 233 295 485 395

TOTAL 951 1.200 1.794 2.875 3.534

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Indiscutívelmente, a escalada progressiva de violência doméstica em relação à mulher espanhola revela a prevalência de uma cultura e um perfil de sociedades ainda conservadoras e machistas nesta regiâo, com clara hierarquia de poder nas relaçôes familiares, cujos valores, interesses e condições masculinos se soprepõem aos femininos.

O papel da supermujer no regime latino da Europa do Sul é tão destacado, que estudos realizados nas últimas décadas (MORENO, 2000, p. 101), ressaltam o aumento dos níveis de inserção da população feminina nos cursos de educação formal e, como consequência, maior incorporação das mulheres ao mercado de trabalho com a redução do seu papel de cuidadoras sociais nos espaços failiares (hogares). Percebe-se que a crescente participação da mulher no setor produtivo, somada aos demais desafios colocados à necessidade de expansão familiar nesses países (crescimento demográfico negativo na região), coloca como uma grande incógnita o desenvolvimento futuro do modelo de bem-estar latino/mediterrâneo. Atualmente, as mulheres da Europa do Sul representantes da geração mais jovem, têm destacado como prioridade o alcance de níveis de independência econômica por si mesmas, buscando superar sua subordinação material e financeira aos companheiros.

Nesse sentido, como tendência e projeção futura, a repercussão dessa recente atitude feminina poderá traduzir-se em uma progressiva desinstitucionalização da microsolidariedade familiar e até do próprio casamento formalizado como instituição dominante. Em que pese ser ainda uma incógnita, até porque há poucos estudos com validação empírica, é previsível que tais mudanças de valores e de atitudes produzirão grande impacto no perfil e na estrutura do regime latino de bem-estar da Europa do Sul. No entanto, ocorre um fato curioso na região. De um lado, a manifestação clara das jovens mulheres mediterrâneas de buscar sua independência financeira e sua incorporação ao mercado de trabalho, de outro, não obstante as dificuldades estruturais para constituir e criar uma família (desemprego, alto custo de vida, e outros), o desejo da maternidade contrasta com a ausência de renúncia dessas mulheres aos seus anseios maternais.

Diante do exposto, constata-se que a busca por uma maior europeização do ponto de vista econômico na Região Sul da Europa, não se traduz em maior europeização do ponto de vista social, com o objetivo de adotar um marco estatutário de direitos, na formulação de políticas públicas e de um maior grau de convergência das políticas sociais a partir dos princípios de cidadania igualitária e de justiça redistributiva. Na literatura específica, no entanto, ressalta-se, como o faz Moreno (2001, p. 112), que, em geral, “os europeus possuem valores, atitudes de respeito pelos direitos humanos, conhecimentos e

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percepções muito voltados para a dimensão social comunitária, compartilhando um alto grau de apoio e de solidariedade cidadã pelo bem-estar social de seus cidadãos”.

Nesse sentido, entende-se o argumento de Moreno (2000), de que não existe um Estado de Bem-estar europeu, mas diversos Estados de Bem-estar, o que torna viável a comparação das características de um dos modelos existentes (modelo latino) com o modelo de proteção social desenvolvido no Brasil.

CAPÍTULO VI

A ASSISTÊNCIA SOCIAL NA EUROPA DO SUL E NO BRASIL:

OS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA, RENDA

MÍNIMA E/OU DE INSERÇÃO SOCIAL (RMI)