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PARTE I: O TAYLORISMO E OS DILEMAS DA RACIONALIZAÇÃO DO

1. Maquinaria e grande indústria: a ciência na produção

1.2 A “ciência” da organização

A subordinação real não significa subordinação absoluta. Marx descreve um processo cumulativo, mas que de forma alguma pode ser pensado de forma absoluta e definitiva. O seu objetivo era indicar como o capital (inicialmente o capital usurário e mercantil, mas posteriormente o capital industrial) se apodera e altera os processos de trabalho, num movimento que vai da dissolução do artesanato, passando pela manufatura e chegando à indústria mecanizada moderna, demonstrando, assim, a dinâmica predominante

e tendencial ao final da qual “abusa-se da maquinaria para transformar o próprio

trabalhador, desde a infância, em parte de uma máquina parcial” (MARX, 1996, p. 55). Mas a força de trabalho é uma capacidade humana, portanto multifacetada e elástica, que acaba por entrar em conflito com esse mecanismo que exige regularidade e repetição.

7 Segundo a mitologia grega, Sísifo, em função de sua rebeldia diante dos deuses, foi condenado por eles ao

castigo de realizar eternamente um trabalho pesado, inútil e sem sentido: empurrar uma rocha até o alto de uma montanha, de onde ela tornava a cair e, então, ele era obrigado a recomeçar.

Assim, a transformação dessa capacidade em atividade real de trabalho envolve uma disputa na qual o “elemento humano” torna-se, do ponto de vista capitalista, um obstáculo.

O instrumental passa a ser animado por um movimento perpétuo, e produziria ininterruptamente, se não fosse tolhido por certas limitações naturais dos auxiliares

humanos: a debilidade física e a vontade própria. Como capital, esse autômato

possui, na pessoa do capitalista, consciência e vontade, e está dominado pela paixão de reduzir ao mínimo a resistência que lhe opõe essa barreira natural, elástica: o homem. (MARX, 2003, p. 460-461).

Disso resulta uma contradição fundamental do capital. A atividade viva do trabalhador, que é a fonte de mais valor, passa a ser vista, cada vez mais, como uma potencial “fonte de erro” no interior do mecanismo de produção. Não é à toa que Marx retoma a análise do “Dr. Ure” – que, segundo Marx (2013, p. 424), produz uma “apoteose da grande indústria” – sobre a “fraqueza da natureza humana”:

A fraqueza da natureza humana, exclama o amigo Ure, é tão grande que, quanto

mais hábil é o trabalhador, mais voluntarioso e intratável ele se torna, causando,

assim, grandes danos ao mecanismo global em razão de seus caprichos insolentes (URE apud MARX, 2013, p. 442).

Essa fraqueza humana se manifesta principalmente pelo contraste entre o funcionamento contínuo do maquinário e os “hábitos irregulares dos trabalhadores”, que constituem, em certa medida, “uma reação primitiva e natural contra o enfado de uma labuta monótona e maçante”. Para fazer frente à aversão dos trabalhadores ao ritmo uniforme das máquinas, a supervisão torna-se fundamental. Assim, “a subordinação técnica do trabalhador” cria “uma disciplina de quartel, que evolui até formar um regime fabril completo, no qual se desenvolve plenamente o já mencionado trabalho de supervisão e, portanto, a divisão dos trabalhadores em trabalhadores manuais e capatazes, em soldados rasos da indústria e suboficiais industriais” (MARX, 2013, p. 495-496). Mas esse trabalho de supervisão ainda poderia ser aperfeiçoado, bastava que a ciência, que havia proporcionado o uso sistemático de máquinas, se ocupasse também dos homens. É assim que se funda e se legitima a “organização científica do trabalho” (OCT) de Frederick Taylor (1856-1915). Viajemos, então, aos Estados Unidos da América.

Nas três últimas décadas do século XIX, morando na Filadélfia, Taylor passou por diversas funções ligadas ao mundo industrial, começando no chão de fábrica, como

operador de máquinas, para depois subir na hierarquia, sendo chefe de equipe, supervisor e, por fim, engenheiro responsável. Como revelou em uma conferência, ele havia passado para “o outro lado da barricada” (QUERZOLA, 1978, p. 68) e iria usar toda a sua experiência anterior para quebrar as resistências operárias ao aumento das cadências, através de estudos científicos dos movimentos que permitiriam eliminar todo trabalho considerado inútil e, junto com ele, toda a “vadiagem no trabalho”. Como resultado do avanço de suas pesquisas, na década de 1890, Taylor acaba por se tornar um consultor independente, especialista em gestão industrial, que não trabalha mais para uma empresa específica. Seu trabalho começa a ganhar os ares de “missão” que o século seguinte irá confirmar.

É na primeira década do século XX que Taylor “populariza um método de disciplina do trabalho e organização fabril fundado em estudos supostamente científicos do rendimento humano e sistemas de estímulo” (MAIER, 1978, p. 97). É o resultado da difusão de seus primeiros escritos, publicados a partir dos últimos anos antes da virada de século, em que Taylor começa a esboçar os primeiros elementos de seu projeto de combate à “vadiagem no trabalho” e às quedas de ritmo na produção. Como fruto dessa popularização, começam a ser aplicadas as primeiras medidas preconizadas por ele: a cronometragem dos tempos de trabalho, a fixação de tarefas rigidamente programadas para os trabalhadores, a criação de departamentos de planificação e as categorias salariais fundadas no pagamento por peça. Quando Taylor, em 1911, publicou sua obra mais sistemática, Princípios de Administração Científica, o que viria a ser conhecido como “taylorismo” já havia começado a aparecer nas fábricas americanas, ao mesmo tempo em que surgiam as controvérsias na opinião pública, principalmente devido a “reputação de inumanidade” desses métodos (MAIER, 1978, p. 98).

Reputação que, em grande medida, se devia à intensificação da tentativa de anulação do elemento humano do processo de trabalho. Na apresentação dos “princípios fundamentais da administração científica”, Taylor coloca em primeiro lugar a “substituição do critério individual do operário por uma ciência” (TAYLOR, 1990, p. 84), de modo que caiba à ciência – cuja encarnação no espaço da fábrica deve ser a direção – o papel de desenvolver “normas rígidas para o movimento de cada homem” (idem, ibidem, p. 67).

Assim, a consolidação da gerência científica seguia três princípios básicos, fortemente interligados. Num primeiro momento, a administração deveria reunir, tabular e sistematizar o conhecimento até então pertencente aos trabalhadores, independentemente das especialidades. A partir daí, todo processo cerebral – de concepção – deveria ser banido do momento de execução, tornando-se exclusividade da gerência. Por último, esse monopólio da concepção deveria ser utilizado para o planejamento do processo de trabalho, de tal forma que se pudesse controlar cada fase do processo produtivo e seu modo de execução (BRAVERMAN, 1987, p.80). Como sintetiza Segnini (1984, p. 84), através desses princípios e da “vigilância cerrada da gerência”, o trabalho poderia ser desqualificado e o trabalhador transformado num “simples executor de tarefas repetitivas, facilmente treinável e substituível”. Dessa forma, ainda segundo a autora, “o taylorismo cumpre um duplo papel econômico: aumento da produção e diminuição do valor da mercadoria força de trabalho” (idem, ibidem, p. 85).

Em função dos elementos prescritos pelo sistema de Taylor, é comum se definir o taylorismo como um método de parcelamento das atividades fundado na separação entre concepção e execução do trabalho. Porém, essa definição – que eu mesmo reproduzi (LUCAS, 2010, p. 69-70) – é, no mínimo, imprecisa, pois não toca na especificidade do

taylorismo. Isso porque, como vimos, a separação entre concepção e execução – bem como

o parcelamento pormenorizado das tarefas que dela resulta – constitui uma tendência histórica anterior à Taylor. É nesse sentido que Braverman aponta o taylorismo como “a explícita verbalização do modo capitalista de produção” e, nesse sentido, “seu papel era tornar consciente e sistemática a tendência antigamente inconsciente da produção capitalista” (BRAVERMAN, 1987, p. 109). Maier aponta algo semelhante ao afirmar que “o que era inovador no Taylorismo era a aplicação, nas relações de trabalho, da disciplina de engenharia primitivamente reservada às máquinas” (MAIER, 1978, p. 98). Mas o taylorismo, além de “codificar” uma tendência do próprio capitalismo, busca legitima-la através da pretensão de cientificidade:

a especificidade do taylorismo é ter afirmado simultaneamente que tinha se tornado possível, graças ao seu método e suas técnicas, determinar cientificamente, e assim imparcialmente, por uma categoria particular de assalariados, qual era o melhor

empresa que se organiza sobre essas bases pode reconciliar e satisfazer os

interesses aparentemente antagônicos de seus dirigentes e de seus empregados

(FREYSSENET, 2006, p. 4).

Em resumo, o princípio fundamental que diferencia e define o taylorismo é o one

best way, ou seja, a ideia de que existe um melhor jeito para realizar cada etapa do processo

de trabalho e este deve ser definido pelo estudo científico dos fatores de produção. A função da gerência científica seria, então, definir este “melhor caminho” e prescreve-lo detalhadamente aos trabalhadores, os quais, por sua vez, seriam beneficiados com melhores salários, ferramentas mais adequadas, economia de esforços (com a eliminação de movimentos inúteis), além de serem colocados em postos que levam em conta as suas aptidões. A concretização desse princípio é o conceito tayloriano de “tarefa”:

A ideia da tarefa é, quiçá, o mais importante elemento na administração científica. O trabalho de cada operário é completamente planejado pela direção, pelo menos, com um dia de antecedência e cada homem recebe, na maioria dos casos, instruções escritas completas que minudenciam a tarefa de que é encarregado e também os meios usados para realiza-la (...). Na tarefa é especificado o que deve ser feito e também como fazê-lo, além do tempo exato concebido para a execução. E, quando o trabalhador consegue realizar a tarefa determinada, dentro do tempo-limite especificado, recebe ele aumento de 30 a 100% do seu salário habitual. Estas tarefas são cuidadosamente planejadas, de modo que sua execução seja boa e correta, mas que não obrigue o trabalhador a esforço algum que lhe prejudique a saúde. A tarefa é sempre regulada, de sorte que o homem, adaptado a ela, seja capaz de trabalhar durante muitos anos, feliz e próspero, sem sentir os prejuízos da fadiga.

A administração científica, em grande parte, consiste em preparar e fazer executar essas tarefas (TAYLOR, 1990, p. 42).

Assim, definindo e impondo os movimentos mais eficientes, a ciência deveria dar sua contribuição organizacional ao capital e, na medida em que penetrava nas fábricas, a OCT se consolidava como uma nova disciplina de pesquisa. Dito de outra maneira, se a introdução sistemática de máquinas ofereceu a base material para essa “objetivação da produção”, pode-se dizer que a “gerência científica”, desenvolvida por Taylor, deu um complemento organizacional para a autonomização do processo de trabalho em relação às iniciativas individuais dos trabalhadores. Trata-se de dois momentos sucessivos em termos de origem histórica, mas que se renovam e se articulam continuamente na dinâmica capitalista. Como aponta Segnini, em sua pesquisa sobre o trabalho nas ferrovias brasileiras do início do século XX, por um lado, promove-se “a substituição do homem pela máquina”

e, por outro lado, busca-se “adestrar os homens necessários ao sistema” através da introdução de princípios de administração científica (SEGNINI, 1982, p. 82). A imbricação dessas duas dimensões foi imediatamente expressa pelo fato de que os princípios organizacionais de Taylor deram impulso a novas alterações na configuração material das fábricas, como demonstra a iniciativa de Henry Ford: em 1913, a fábrica de automóveis da Ford introduziu a esteira mecânica para transportar as peças e componentes dos produtos, como forma de acelerar o ritmo de produção, limitando ainda mais a autonomia dos trabalhadores diante do mecanismo autônomo em funcionamento.

Enquanto num plano mais amplo, a aliança entre taylorismo e fordismo formava a base do “compromisso social” que marcou os países de capitalismo avançado, principalmente no “período de ouro” do capitalismo após a Segunda Guerra Mundial8, no

plano específico da fábrica, o “binômio taylorismo/fordismo” (ANTUNES, 2003, p. 36) representava o monopólio da direção definição e controle das tarefas, por meio dos princípios taylorianos, com o auxílio material da linha de montagem – na indústria automobilística e onde fosse possível – trazida ao mundo por Ford. Assim, como afirma Antunes (2003, p. 37), “a subsunção real do trabalho ao capital, própria da fase da maquinaria, estava consolidada”. Ao seu estilo, Taylor expõe seu ponto de vista: “no passado, o homem estava em primeiro lugar; no futuro, o sistema terá a primazia. Isso, entretanto, não significa, absolutamente, que os homens competentes não sejam necessários” (TAYLOR, 1990, p. 23). “Competência” certamente para se integrar ao mecanismo, evitando-se que os “caprichos” humanos se transformem em “fonte de erro” do sistema.