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PARTE I: O TAYLORISMO E OS DILEMAS DA RACIONALIZAÇÃO DO

4. A fábrica, a máquina e a intervenção humana

4.2 A sociedade como uma fábrica

Ao analisar a posição de Lenin sobre o taylorismo, Querzola (1978) desenvolve uma crítica unilateral que revela, a meu ver, uma vontade obstinada de responsabilizar Lenin por todas as mazelas soviéticas no que se refere a questão da organização do trabalho, destacando uma essência autoritária na concepção do líder bolchevique. No entanto, malgrado esse limite geral, subsistem questões interessantes na análise, especialmente por revisitar o texto de Marx, no que se refere à contradição capitalista entre a ordem no interior da fábrica e a anarquia e caos reinantes fora dela. Para tanto, Querzola retoma

apontamentos feitos por Marx em O Capital, especialmente no capítulo sobre a divisão do trabalho na manufatura. Nesse capítulo, Marx ironiza a “consciência burguesa” que exalta o controle intensivo da força de trabalho, pela divisão rigorosa do trabalho intrafábrica, mas se revolta com qualquer tentativa mínima de “controle e regulamentação social” do capital. Nesse sentido é que Marx afirma:

A mesma consciência burguesa que festeja a divisão manufatureira do trabalho, a

anexação vitalícia do trabalhador a uma operação detalhista e a subordinação incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organização do

trabalho que aumenta a força produtiva, denuncia com o mesmo alarde todo e

qualquer controle e regulação social consciente do processo social de produção

como um ataque aos invioláveis direitos de propriedade, liberdade e à “genialidade” autodeterminante do capitalista individual. É muito característico que os mais

entusiasmados apologistas do sistema fabril não saibam dizer nada mais ofensivo contra toda organização geral do trabalho social além de que ela transformaria a sociedade inteira numa fábrica (MARX, 2013, p. 430).

A edição francesa, revista e atualizada por Marx, é ainda mais direta e provocativa na exposição e conclui com tom claramente irônico em relação à “consciência burguesa”: “o regime das fábricas só é bom para os proletários!” (MARX, 1872-1875, p.155)31. Marx

ressalta o contraste entre o controle imposto sobre o trabalho no regime fabril e a aversão do capital quando se trata de impor qualquer controle a ele mesmo. Nada indica, no entanto, uma apologia da “ordem” representa pelo regime imposto nas fábricas, pelo contrário, ele a apresenta como “anexação vitalícia do trabalhador a uma operação detalhista” e a sua “subordinação incondicional” ao capital. É por isso que ele ironiza o quão revelador é o fato de que o capital não tenha nada de mais ofensivo contra sua regulamentação do que a “denúncia” de uma suposta tentativa de transformar toda a sociedade numa fábrica. Para não deixar dúvidas, ele começa o parágrafo seguinte pressupondo que “na sociedade do modo de produção capitalista a anarquia da divisão social do trabalho e o despotismo da

31 “Essa consciência burguesa, que exalta a divisão manufatureira do trabalho, a condenação perpétua do

trabalhador a uma operação detalhista e sua subordinação passiva ao capitalista, grita alto e desfalecequando se fala de controle, de regulamentação social do processo de produção! Ela denuncia toda tentativa desse gênero como um ataque contra os direitos da Propriedade, da Liberdade, do Gênio do capitalista. ‘Vocês querem então transformar a sociedade numa fábrica?’ esbravejam esses entusiastas apologistas do sistema fabril. O regime das fábricas só é bom para os proletários!” (MARX, 1872-1875, p.155).

divisão manufatureira do trabalho se condicionam mutuamente” (MARX, 2013, p. 430)32. Ao que parece Marx critica com a mesma radicalidade a “anarquia” no âmbito da divisão do trabalho social quanto o despotismo da divisão manufatureira do trabalho fabril, que a maquinaria apenas “atualizou”.

Assim, Querzola retoma o argumento de Lenin – segundo o qual “o capital organiza e racionaliza o trabalho no interior da fábrica para intensificar a opressão sobre o operário e aumentar seus lucros. Mas, no conjunto da produção social, reina um caos crescente...” – para, então, concluir: “notemos de passagem que Marx opõe anarquia e despotismo (...), enquanto Lenin fala de caos e de racionalidade” (QUERZOLA, 1978, p. 70). Dessa forma, seguindo o argumento de Querzola, o despotismo fabril, exposto por Marx, transforma-se, no texto de Lenin, em organização e racionalidade no interior da fábrica. É o que possibilita a transformação da ironia de Marx – sobre a ideia de transformar toda a sociedade numa fábrica – em programa da primeira fase da sociedade comunista, pela extensão progressiva da organização racional das fábricas para o conjunto da sociedade. Mas existem ainda outras passagens d’O Capital – não indicadas por Querzola – em que semelhante contradição reaparece com elementos ainda mais ricos.

Ao tratar a generalização da legislação fabril que limitava, inicialmente na Inglaterra, a jornada de trabalho e, assim, as possibilidades de extração de mais-valia absoluta, Marx aponta que tal generalização – que inicialmente gerara protesto dos capitalistas – acabou por acelerar a dinâmica de transformação dos processos de trabalho e a consolidação do “modo de produção especificamente capitalista”, fundado na extração de mais-valia relativa – o que implica, por sua vez, o revolucionamento contínuo dos “processos técnicos do trabalho” e dos “agrupamentos sociais” (MARX, 2013, p. 578)33. É

32 A edição francesa é mais clara também nesse ponto, pois se diz que “a anarquia na divisão social e o

despotismo na divisão manufatureira do trabalho caracterizam a sociedade burguesa” (MARX, 1872-1875, p. 155).

33 “Se a universalização da legislação fabril tornou-se inevitável como meio de proteção física e espiritual da

classe trabalhadora, tal universalização, por outro lado, e como já indicamos anteriormente, universaliza e acelera a transformação de processos laborais dispersos, realizados em escala diminuta, em processos de trabalho combinados, realizados em larga escala, em escala social; ela acelera, portanto, a concentração do capital e o império exclusivo do regime de fábrica. Ela destrói todas as formas antiquadas e transitórias, embaixo das quais o domínio do capital ainda se esconde em parte, e as substitui por seu domínio direto, indisfarçado” (MARX, 2013, p. 570).

nesse contexto que Marx apresenta novamente o contraste entre a “ordem” no interior das fábricas e a desordem (a “anarquia”) reinante fora delas:

Ao mesmo tempo que impõe nas oficinas individuais uniformidade, regularidade,

ordem e economia, a legislação fabril, por meio do imenso estímulo que a limitação

e a regulamentação da jornada de trabalho dão à técnica, aumenta a anarquia e as

catástrofes da produção capitalista em seu conjunto, assim como a intensidade do trabalho e a concorrência da maquinaria com o trabalhador. Juntamente com as

esferas da pequena empresa e do trabalho domiciliar, ela aniquila os últimos refúgios dos “supranumerários” e, com eles, a válvula de segurança até então existente de todo o mecanismo social. Amadurecendo as condições materiais e a combinação social do processo de produção, ela também amadurece as

contradições e os antagonismos de sua forma capitalista e, assim, ao mesmo tempo, os elementos criadores de uma nova sociedade e os fatores que revolucionam a sociedade velha (MARX, 2013, p. 570-571).

Essa formulação de Marx parece mais próxima daquela que será feita posteriormente por Lenin, não somente porque a imposição de “uniformidade, regularidade, ordem e economia” se assemelha a ideia de que o capital “organiza e racionaliza” o trabalho na fábrica, mas principalmente porque indica que o amadurecimento das contradições – entre “anarquia” social e “ordem” industrial – representa também o amadurecimento dos elementos criadores de uma nova sociedade. Porém, em momento

algum, há a indicação de que essa nova sociedade resultaria da “extensão” dos critérios de

ordem e regularidade do microcosmo da fábrica para o conjunto da economia – ou em outros termos, para a divisão global do trabalho social. Aliás, como já vimos, Marx enfatiza o papel da introdução da maquinaria no desenvolvimento da “disciplina de quartel” que caracteriza o trabalho fabril e, na passagem acima citada, destaca, juntamente com a intensificação da anarquia e das catástrofes capitalistas, o aumento da intensidade do trabalho e da disputa do trabalhador com a maquinaria. Assim, o amadurecimento das contradições da organização capitalista da produção engloba a intensificação da “contradição primária” ligada ao antagonismo entre capital e trabalho no interior do processo de produção, que é a “causa fundamental do conflito social e da sua transformação em conflito político” (TRENTIN, 2012, p 288). Por isso, parece-me que, do ponto de vista de Marx, a contradição entre disciplina de quartel e anarquia capitalista só poderia ser enfrentada pelo enfrentamento da contradição fundamental que aparece quando se tira o véu da produção capitalista.