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Marx e a maquinaria: o modo de produção especificamente capitalista

PARTE I: O TAYLORISMO E OS DILEMAS DA RACIONALIZAÇÃO DO

1. Maquinaria e grande indústria: a ciência na produção

1.1 Marx e a maquinaria: o modo de produção especificamente capitalista

horizontes profundamente interligados, a extração de quantidades crescentes de mais- trabalho e a garantia da subordinação dos trabalhadores. Para tornar mais claro como essa dinâmica se dá no processo de trabalho, é fundamental retomarmos um princípio elementar, também exposto por Marx: o capitalista, ao pagar o salário, compra a força de trabalho6,

6“Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o complexo [Inbegriff] das capacidades físicas

e mentais que existem na corporeidade [Leiblichkeit], na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer tipo” (MARX, 2013, p. 242).

uma mercadoria especial cuja plasticidade torna decisiva a questão do tempo e do controle sobre o processo de trabalho. Uma das contribuições mais relevantes de Marx, em relação a esse aspecto, foi o desnudamento da dinâmica de extração da mais-valia, ou seja, o processo em que uma parte do valor gerado pelo trabalho é apropriada pelo capitalista – a parte não paga sob a forma de salário ao produtor direto – e se torna a base do processo de acumulação de capital.

Para expor essa dinâmica, Marx distingue o “tempo de trabalho necessário”, a parte da jornada em que o trabalhador gera um valor equivalente ao próprio salário, e o “tempo de trabalho excedente”, a parte da jornada em que o trabalhador produz um valor excedente ao custo da força de trabalho ou, simplesmente, produz mais-valia. Assim, em termos gerais, a mais valia é resultado de um prolongamento da jornada para além do tempo necessário à mera reprodução do valor equivalente ao indispensável ao trabalhador. Disso resulta que, num primeiro momento, a questão da extração de quantidades crescentes de mais-trabalho depende do prolongamento da jornada total de trabalho, de modo que, permanecendo constante o valor da força de trabalho expresso nos salários, a parte não paga – e expropriada pelo capitalista – aumente constantemente.

No entanto, estamos ainda apenas no âmbito da “mais valia absoluta”, aquela obtida pelo simples prolongamento da jornada de trabalho. Trata-se do beabá do sistema da exploração capitalista, já que, como ironiza Marx, o mais-produto não se origina de “uma qualidade oculta, inata ao trabalho humano", ou seja, a extração de “trabalho excedente” exige e pressupõe um prolongamento da jornada além do tempo de trabalho necessário (MARX, 2013, p. 584). Porém, esse prolongamento apresenta limites: primeiramente, um limite absoluto referente à duração de um dia, ou seja, 24 horas; em segundo lugar, há um limite colocado pelo desgaste físico, já que uma jornada excessivamente longa pode comprometer a produção e reprodução da própria força de trabalho. As jornadas de 14 e até 16 horas de trabalho no período da revolução industrial mostram que o capital preocupa-se pouco com este último limite, mesmo que o prolongamento da jornada comprometa a própria sobrevivência dos trabalhadores, facilmente repostos pelo exército industrial de reserva. Mas há também um limite político e social ao prolongamento contínuo do tempo de trabalho, relacionado às lutas dos trabalhadores e à condenação social que impuseram

historicamente restrições – legais – à jornada de trabalho. De todo modo, essa limitação não intimidou o desenvolvimento do capital, pelo contrário: foi por esses caminhos que se desenvolveu a forma relativa da extração de mais-valia e, assim, o capital encontrou sua forma “singular” de ser, ou seja, “o modo de produção especificamente capitalista”.

A mais-valia absoluta constitui, segundo Marx, “a base geral do sistema capitalista e o ponto de partida para a produção de mais-valia relativa”. Mas é essa última que dá ao processo de produção um caráter especificamente capitalista, que “revoluciona de alto a baixo os processos técnicos do trabalho e os agrupamentos sociais”. Isso porque a extração de mais-valia relativa não se funda num prolongamento absoluto da jornada de trabalho, mas na diminuição do “tempo de trabalho necessário” e no consequente aumento do tempo de produção de valor excedente, o que depende de um aumento da produtividade e da intensidade do trabalho. Esse acréscimo, por sua vez, pressupõe uma alteração constante dos métodos de produção, tanto no plano tecnológico quanto organizacional. É assim que “o modo de produção especificamente capitalista” torna-se “forma geral, socialmente dominante, do processo de produção”: em primeiro lugar, na medida em que se apodera dos diversos ramos produtivos e, em segundo lugar, “na medida em que as mudanças nos métodos de produção revolucionam continuamente as indústrias que já se encontram em sua esfera de ação" (MARX, 2013, p. 579).

No Capítulo Inédito, Marx se dedicou de forma mais detalhada a essa questão específica, mas o sentido da análise é, em termos gerais, o mesmo: o capital se “imiscui” progressivamente nos processos de trabalho para gerar um “modo de produção especificamente capitalista” (MARX, 1985, p. 91-92). Mas Marx enfatiza também outra dimensão desse mesmo processo: a passagem da “subsunção formal” para a “subsunção real” do trabalho ao capital. Para criar e recriar a base técnica que permite a extração de mais-valia na sua forma relativa, o capital precisa se apoderar realmente do processo de trabalho, de modo que esse apareça cada vez mais como um “sistema autônomo”, independente do trabalhador individual. Em seus Manuscritos Econômico-filosóficos, Marx ([1844] 2004) já afirmava que, no capitalismo, o trabalho se apresenta como algo “externo” ao trabalhador, como uma atividade “estranha”, que não lhe pertence e com a qual se defronta. Mas é a partir de um tratamento crítico da economia política que ele evidencia

historicamente esse processo, que envolve a destruição progressiva do artesanato, o desenvolvimento do sistema manufatureiro e, posteriormente, a consolidação da grande indústria moderna, fundada na maquinaria.

No final da Idade Média, o capitalista mercantil – que compra mercadorias feitas pelos artesãos, os quais exercem seu ofício de forma autônoma, para revendê-las nos centros urbanos – tem condições absolutamente limitadas de interferir no processo de trabalho e, por isso, ainda segundo Marx, “o predomínio dessa forma de exploração numa sociedade exclui o modo de produção capitalista”, apesar de poder constituir a base para sua constituição (MARX, 2013, p. 579). O quadro começa a se modificar quando o capital torna-se capaz de reunir num mesmo espaço um conjunto de trabalhadores, no que Marx definiu como “cooperação simples”. Mesmo que isso não implique imediatamente uma mudança nos métodos de trabalho, a aglomeração de trabalhadores permite ao capital dar um primeiro passo no controle sobre o processo de trabalho e se aproveitar da “força produtiva do trabalho social”. O passo seguinte é dado quando essa reunião de trabalhadores sob um mesmo teto começa a gerar a divisão do trabalho característica da manufatura. A divisão de tarefas e a consequente especialização dos trabalhadores em cada uma delas possibilita uma importante restrição da autonomia do trabalhador individual em relação ao processo de trabalho na sua totalidade. Mas é a maquinaria que consolida essa tendência, quando o trabalhador se defronta com um mecanismo autônomo, no qual ele se torna um elemento auxiliar – que futuramente será chamando de “gorila domesticado”. Como sempre, as mudanças técnicas são, ao mesmo tempo, alterações na forma de controle do trabalho pelo capital, já que a maquinaria expressa, de forma tecnicamente palpável, uma determinação do capitalismo:

Toda produção capitalista, por ser não apenas processo de trabalho, mas, ao mesmo tempo, processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é o trabalhador quem emprega as condições de trabalho, mas, ao contrário, são estas últimas que empregam o trabalhador; porém, apenas com a maquinaria essa inversão adquire uma realidade tecnicamente tangível. Transformado num autômato, o próprio meio de trabalho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalhador como capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva. A cisão entre as potências intelectuais do processo de produção e o trabalho manual, assim como a transformação daquelas em potências do capital sobre o trabalho, consuma-se, como já foi indicado anteriormente, na grande indústria, erguida sobre a base da maquinaria. A habilidade detalhista do operador

de máquinas individual, esvaziado, desaparece como coisa diminuta e secundária perante a ciência, perante as enormes potências da natureza e do trabalho social massivo que estão incorporadas no sistema da maquinaria e constituem, com este último, o poder do “patrão” (master) (MARX, 2013, p. 495).

É com a introdução sistemática da maquinaria que se estabelece um “organismo de produção inteiramente objetivo”, com o qual o trabalhador se defronta como “condição material da produção” (idem, ibidem, p. 459), consolidando a separação entre o trabalhador e a sua própria atividade. Assim, a grande indústria moderna representou mais do que um grande desenvolvimento da produtividade do trabalho social, pois, sendo obra do capital, representava também a consolidação de seus fundamentos e permitia um incremento do controle do capital sobre o processo produtivo. A dinâmica da mais-valia relativa não permite apenas um barateamento dos bens de consumo necessários à reprodução da classe trabalhadora e a consequente diminuição do valor da força de trabalho (permitindo que uma maior parte da jornada seja dedicada a produção de mais-trabalho), ela proporciona também um ganho de intensidade, pois é o capital, armado com máquinas, quem dita o ritmo de quem trabalha:

Em geral, o método de produção da mais-valia relativa consiste em capacitar o trabalhador, mediante maior força produtiva do trabalho, a produzir mais com o mesmo dispêndio de trabalho no mesmo tempo. O mesmo tempo de trabalho continua a adicionar o mesmo valor ao produto global, embora esse valor de troca inalterado se apresente agora em mais valores de uso e, por isso, caia o valor da mercadoria individual. Outra coisa, porém, ocorre assim que a redução forçada da jornada de trabalho, com o prodigioso impulso que ela dá ao desenvolvimento da força produtiva e à economia das condições de produção, impõe maior dispêndio de

trabalho, no mesmo tempo, tensão mais elevada da força de trabalho, preenchimento mais denso dos poros da jornada de trabalho, isto é, impõe ao

trabalhador uma condensação do trabalho a um grau que só é atingível dentro da jornada de trabalho mais curta. Essa compressão de maior massa de trabalho em dado período de tempo conta, agora, pelo que ela é: como maior quantum de trabalho. Ao lado da medida do tempo de trabalho como “grandeza extensiva”, surge agora a medida de seu grau de condensação (MARX, 1996, p. 42-43).

O crescimento da força produtiva do trabalho permite também um crescimento de sua intensidade e, por isso, “implica não apenas que se economizem os meios de produção, mas também que se evite todo trabalho inútil” (MARX, 2013, 597). A maquinaria, meio de “facilitação” do trabalho, torna-se instrumento de sua intensificação:

Enquanto o trabalho em máquinas agride ao extremo o sistema nervoso, ele reprime o jogo multilateral dos músculos e consome todas as suas energias físicas e espirituais. Mesmo a facilitação do trabalho se torna um meio de tortura, pois a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu trabalho de conteúdo (2013, p. 494-495).

É por esse motivo que, no capítulo sobre a maquinaria e a grande indústria, Marx cita o texto de Engels, no qual se compara a condição do operário fabril com o castigo de Sísifo7:

A morna rotina de um trabalho desgastante e sem fim (drudgery), no qual se repete sempre e infinitamente o mesmo processo mecânico, assemelha-se ao suplício de Sísifo – o peso do trabalho, como o da rocha, recai sempre sobre o operário exausto (ENGELS, 2008, p. 213).

O intuito de Marx e Engels é indicar como o trabalho fabril, desprovido de sentido, se torna um fardo inescapável, um castigo. Talvez a “vantagem” do Sísifo original – o “proletário dos deuses”, nos dizeres de Camus (2010, p. 123) – tenha sido a ausência de um mecanismo que impusesse um ritmo superior a cada subida com a pedra. Pois o castigo do “proletariado dos homens” tem uma crueldade extra: a cada subida ele fortalece o capital e, assim, engrandece o mecanismo estranho com que se defrontará na próxima vez.