• Nenhum resultado encontrado

PARTE I: O TAYLORISMO E OS DILEMAS DA RACIONALIZAÇÃO DO

3. A apropriação dos “elementos científicos” do taylorismo

3.1 A complexidade da posição de Lenin

Uma das maiores preocupações de Lenin após a tomada do poder pelos bolcheviques se ligava a questão da produtividade e da disciplina do trabalho no processo de edificação do socialismo na Rússia soviética, o que se expressou especialmente em As

tarefas imediatas do poder soviético. No entanto, é preciso destacar que as posições

expressas em relação ao taylorismo em 1918 resultaram, por um lado, de um processo de reflexão iniciado alguns anos antes e, por outro lado, de circunstâncias específicas do contexto pós-revolucionário, quando a situação econômica de um país já devastado começara a se deteriorar ainda mais. Em consequência da complexidade da posição leniniana a esse respeito, existe uma grande quantidade de trabalhos que se dedicam a analisa-las criticamente – Querzola (1978), Linhart (1983), Finzi (1986), Lazagna (2002), Wren e Bedeian (2004) Silva (2007), Moraes Neto (2009), Amorim (2012), entre outros – a maioria das quais acompanham as várias reformulações realizadas por Lenin e mostram os elementos essenciais de cada uma delas. Em função disso, procurarei apenas recuperar os

elementos centrais do pensamento de Lenin a esse respeito, ancorado nas análises citadas, para, em seguida, levantar alguns questionamentos que talvez não tenham recebido a devida atenção, os quais, por outro lado, serão importantes para o avanço da reflexão aqui proposta.

De início é fundamental ressaltar o que talvez seja a característica mais marcante do legado teórico de Lenin: o fato de ser um “pensamento vivo, irrequieto, em permanente conflito consigo mesmo e com a realidade que pretende transformar” (SILVA, 2007, p. 185). Nesse sentido, se a análise de qualquer pensamento requer a devida contextualização das condições em que foi produzido, no caso de Lenin essa necessidade é ainda mais candente, e é por isso que Robert Linhart, ao caracterizar o pensamento de Lenin como “movimento de contradições”, faz o seguinte alerta:

O modo de proceder – infelizmente de uso corrente – que consiste em alinhar trechos de textos de Lenin, abstraídos de seu contexto e indeterminados, do ponto de vista da situação concreta, é um absurdo: este método torna possível, há muito tempo já, sustentar, com pequeno esforço, todas as variações possíveis do revisionismo e do dogmatismo. Ele liquida, evidentemente, a própria essência do pensamento de Lenin: pensamento dialético, perpetuamente em luta contra a realidade e contra si mesmo, realizando e destruindo adequações sempre provisórias. A esse respeito, a obra publicada de Lenin constitui um trabalho ideológico e teórico em movimento, único em relação a todas as produções contemporâneas que lhe possam ser comparadas. Sua especificidade é devida justamente à sua extrema sensibilidade quanto às variações do real – e suas variações próprias são um indício dessa sensibilidade, muitas vezes espetacular (LINHART, 1983, p. 141-142).

No caso da posição em relação ao taylorismo, essa característica – de um pensamento em constante movimento – se revela não só quando se confronta os textos escritos antes da Revolução de Outubro e o célebre As tarefas imediatas do poder soviético, mas também quando se compara, como mostra Linhart (1983), a duas versões desse último. A primeira manifestação de Lenin a respeito do taylorismo, em 1913, está muito distante da posição adotada em 1918, quando ele afirma a necessidade de adaptar e introduzir o sistema de Taylor em toda a Rússia. No entanto, quando se analisa o percurso da reflexão de Lenin durante o referido período, a mudança se torna menos brusca e evita-se uma polarização entre os períodos pré e pós revolução.

Os títulos dos dois primeiros artigos de Lenin (1984) a respeito do taylorismo, publicados no Pravda, já revelam a posição fortemente crítica, em tom de denúncia:

Sistema “científico” para espremer o suor e O sistema Taylor é a escravização do homem pela máquina, escritos em 1913 e 1914, respectivamente. O primeiro deles é uma

apreciação absolutamente crítica do taylorismo, na qual as aspas na caracterização de “científico” não são gratuitas: trata-se de um sistema de incremento da exploração do trabalho, por via de sua intensificação, que tem como resultado o desemprego – já que torna supérflua uma parte do quadro de trabalhadores – e o esgotamento físico daqueles que permanecem empregados. No texto de 1914, essa crítica reaparece, mas começa a dividir espaço com o apontamento de uma contradição entre a organização racional dentro da fábrica – como forma de aumentar os lucros – e a anarquia e o caos no que se refere ao conjunto da produção capitalista, marcada pelas crises e pelo desperdício das forças produtivas. Assim, o taylorismo começava a ser visto como uma arma que, contra a vontade de seus idealizadores, poderia ser manipulada pelo proletariado, para organizar o conjunto da produção, pois ele saberá “utilizar estes princípios de distribuição sensata do trabalho social quando este se vir livre da escravidão pelo capital” (LENIN, 1984, p. 392). Nesse caso, ao invés de meio de aumento da exploração, ele seria portador de bem-estar, assegurando uma maior quantidade de produtos e uma redução da jornada de trabalho. Nas palavras de Lenin:

Apesar de seus autores e contra a vontade deles, o sistema Taylor prepara o tempo em que o proletariado há de tomar em suas mãos toda a produção social e há de designar suas próprias comissões, comissões operárias encarregadas de repartir e regulamentar judiciosamente o conjunto do trabalho social. A grande produção, as máquinas, as estradas de ferro, o telefone são coisas que oferecem mil possibilidades de reduzir a quatro vezes menos o tempo de trabalho dos operários organizados, garantindo-lhes, ao mesmo tempo, quatro vezes mais conforto do que têm atualmente (LENIN, 1984, p. 392).

A partir de então, o taylorismo começa a ocupar um lugar importante na própria concepção de Lenin de transição, que ganhará contornos mais sólidos em As tarefas

imediatas do poder soviético, escrito no ano que segue à revolução bolchevique. Entre o

texto de 1914 e o de 1918, porém, Lenin não deixou de refletir sobre o taylorismo. Aliás, foi exatamente nesse intervalo de tempo que ele consolidou a virada rumo a uma apreciação

predominantemente positiva em relação a esse sistema, exposta em anotações feitas entre 1915 e 1916 nos cadernos preparatórios para O imperialismo, fase superior do capitalismo, conforme indicam Linhart (1983, p. 87-93) e Finzi (1986, p. 140-142). Apesar da versão final da obra não apresentar nenhuma referência ao sistema de Taylor, as observações contidas nos cadernos indicam que “o taylorismo continua a atrair sua atenção, durante os anos que precederam imediatamente a Revolução de 1917 e que até mesmo conserva um

lugar de destaque em seu raciocínio e em sua concepção da Revolução socialista, como um todo” (LINHART, 1983, p. 87).

Nessas anotações, permanecem as críticas ao taylorismo como forma de superexploração do trabalho, aumento do desemprego e de desenvolvimento de uma aristocracia operária, mas também se encontram referências identificando-o, especialmente o estudo dos movimentos do trabalho, como “progresso técnico sob o capitalismo, levando ao socialismo” (LINHART, 1983, p. 90). Por esse motivo, o taylorismo é apresentado numa “dialética tortura-progresso”, sendo o primeiro termo relativo ao emprego do sistema no capitalismo e o segundo às possibilidades abertas para uma apropriação socialista desse sistema. Esse potencial estava ligado a dois fatores principais: o fato de o taylorismo representar uma normalização – e uma simplificação – do trabalho manual que torna possível sua generalização para toda a sociedade. Além disso, o aumento da produtividade, numa organização livre do imperativo capitalista, permitiria uma redução da jornada de trabalho e abriria possibilidade para a participação de todos os indivíduos nas “funções públicas”, condição para a extinção do Estado enquanto tal.

No texto As tarefas imediatas do poder soviético, Lenin consolida essa interpretação ao colocar em primeiro plano “a tarefa essencial da criação de um sistema social superior ao do capitalismo, a saber: a elevação da produtividade do trabalho e, em relação com isto (e para isto), a sua organização superior” (LENIN, 1980, p. 572-573). Essa tarefa, no que se refere à força de trabalho, tinha duas condições básicas: por um lado, “o ascenso cultural e educativo da massa da população” e, por outro lado, “a elevação da disciplina dos trabalhadores, a habilidade no trabalho, a eficácia, a intensidade do trabalho, a sua melhor organização”. E, logo em seguida, após afirmar que “o russo é um mau trabalhador” se

comparado aos trabalhadores das “nações avançadas”, Lenin resume as duas condições básicas em um só:

Aprender a trabalhar – esta é a tarefa que o Poder Soviético deve colocar em toda a envergadura perante o povo. A última palavra do capitalismo neste aspecto, o sistema de Taylor – tal como todos os progressos do capitalismo –, reúne em si toda a refinada crueldade da exploração burguesa e uma série de riquíssimas conquistas científicas no campo da análise dos movimentos mecânicos no trabalho, a supressão dos movimentos supérfluos e inábeis, a elaboração dos métodos de trabalho mais corretos, a introdução dos melhores sistemas de registro e controle etc. A República Soviética deve adotar a todo custo as conquistas mais valiosas da ciência e da técnica neste domínio. A possibilidade de realizar o socialismo é determinada precisamente pelos nossos êxitos na combinação do Poder Soviético e da organização soviética da administração com os últimos progressos do capitalismo. Tem de se criar na Rússia o estudo e o ensino do sistema de Taylor, a sua experimentação e adaptação sistemáticas. Ao mesmo tempo, caminhando para a elevação da produtividade do trabalho, é preciso ter em conta as particularidades

do período de transição do capitalismo para o socialismo, que exigem, por um

lado, que sejam lançadas as bases da organização socialista da emulação e, por outro lado, exigem a aplicação da coação para que a palavra de ordem de ditadura do proletariado não seja maculada por uma prática de brandura excessiva do Poder (LENIN, 1980, p. 574).

A difusão do sistema de Taylor carregaria, nesse processo, duas dimensões importantes. Em primeiro lugar, os princípios de organização racional deveriam extrapolar o limite da fábrica e, assim, “a contabilidade e o controle traduzem, no esquema leniniano, a organização ‘racional’ e ‘harmônica’ do metabolismo produtivo/distributivo em contraposição à anarquia que caracteriza a divisão social do trabalho na sociedade capitalista” (SILVA, 2007, p. 84). A normalização do trabalho, tornando-o assim “mensurável”, permite um controle mais rigoroso do conjunto do trabalho social e, assim, como Lenin já afirmara em O Estado e a revolução, na “primeira fase da sociedade comunista”, “a sociedade inteira não será mais do que um grande escritório e grande fábrica, com igualdade de trabalho e igualdade de salário” (LENIN, 2005, p. 106). Por outro lado, no espaço da fábrica, Lenin propõe a disciplina estrita dos trabalhadores ou, nos seus termos, “a subordinação sem reservas a uma única vontade” (LENIN, 1980, p. 581), a vontade dos dirigentes das fábricas. Assim, Lenin preconiza – e o reforça de forma recorrente no texto – o poder unipessoal do diretor de fábrica como “dirigente único”.

É por esse motivo que Linhart (1983, p. 104) aponta que essa orientação proposta por Lenin carrega dois sentidos diferentes. Por um lado, no que se refere ao conjunto da

economia, revela-se um “impulso democrático”, relativo à noção de que “o controle e o levantamento da produção” permitem a “participação das grandes massas nas tarefas de administração e da contabilidade econômica”. Por outro lado, no que se refere ao espaço da fábrica, a orientação de Lenin é no sentido de “uma concentração extrema da autoridade e uma submissão das massas a uma direção do processo de trabalho que lhe é exterior”. O resultado é que, em As tarefas imediatas do poder soviético,

toda uma parte da brochura é dedicada a demonstrar a necessidade de extirpar das massas a atitude de passividade face ao Estado e aos dirigentes da economia. Toda uma outra a demonstrar que é preciso inculcar-lhes uma atitude de submissão face aos técnicos e dirigentes do processo de trabalho (LINHART, 1983, p. 105).

O próprio Lenin resume esse duplo movimento, ao afirmar que

é preciso aprender a conjugar o democratismo dos comícios das massas trabalhadoras, tempestuoso, que corre como a cheia primaveril, que transpõe todas as margens, com a disciplina férrea durante o trabalho, com a obediência sem

reservas à vontade de uma só pessoa, do dirigente soviético, durante o trabalho

(LENIN, 1980, p. 583).

Linhart mostra como essas duas dimensões – uma mais democrática e outra mais autoritária – se movimentavam na construção do pensamento de Lenin, ao comparar a versão final do texto com uma versão preliminar – tornada pública apenas anos mais tarde. Na primeira versão do texto, Lenin ressalta com mais rigor a particularidade do taylorismo na sua versão democrática, evocando a ideia de “uma apropriação coletiva do sistema pela

massa dos produtores”, de modo que o aumento da produção se dê através da melhor

utilização dos novos processos de produção e organização do trabalho e que fosse acompanhado pela redução da jornada (LINHART, 1983, p. 108-109). A redução da jornada seria, aliás, um fator decisivo, não só para preservar os trabalhadores dos efeitos degradantes da intensificação do trabalho, mas para permitir a participação das massas na administração do Estado e, assim, garantir o “impulso democrático” no âmbito do controle do conjunto da produção e distribuição. Nessa versão do texto, Lenin chega mesmo a cravar uma meta para um “lapso de tempo relativamente curto”: seis horas de trabalho “físico” e quatro horas de trabalho na administração do Estado, por dia, para todos os cidadãos em idade adulta:

A aplicação do sistema Taylor, corretamente dirigida pelos próprios trabalhadores se estes são bastante conscientes, será a melhor garantia para que no futuro se possa

reduzir enormemente a jornada obrigatória de toda a população trabalhadora, será a melhor garantia para que num período bastante breve realizemos o objetivo que pode-se expressar aproximadamente da seguinte maneira: seis horas de trabalho físico para cada cidadão adulto e quatro horas de trabalho na administração do Estado (LENIN, 1988, p. 121).

A partir desses elementos, Linhart define as duas condições para que ele identifica como o ideal de um “taylorismo soviético” ou “taylorismo proletário”. Em primeiro lugar, ele deveria ser orientado pelos próprios trabalhadores, seguindo a ideia de que “a coletividade operária pode e deve se apropriar do saber tayloriano para reorganizar seu modo de trabalho” (LINHART, 1983, p. 110). A segunda é que o aumento da produtividade deveria resultar numa redução da jornada de trabalho, o que, por sua vez, permitiria a participação concreta dos operários nos negócios do Estado. Desse modo, com os operários acumulando “tarefas ‘físicas’ e políticas”, a ameaça de “burocratismo” seria afastada. (LINHART, 1983, p. 112-113).

Porém, o progressivo agravamento da situação interna, caracterizada pela fome, o caos produtivo e os conflitos da guerra civil que sucedeu a Revolução, fizeram com que a dimensão autoritária da proposta leniniana fosse reforçada em detrimento dos elementos democratizantes. Como resultado disso, a versão final do texto não traz nenhuma referência à redução da jornada de trabalho e fala apenas da necessidade de todos os trabalhadores preencherem, gratuitamente, funções de Estado depois de terminarem suas tarefas na produção. Além disso, essa versão “oficial” endurece o discurso relativo à disciplina no trabalho, defendendo insistentemente a “ditadura pessoal” dos dirigentes de fábrica. Dessa forma, e essa é uma das conclusões da análise de Linhart, “o sonhado taylorismo libertador (economia de movimentos e ‘racionalização’, permitindo que a massa economizasse sua própria força de trabalho e se liberasse para as tarefas de administração) é eclipsado por um taylorismo mais clássico (centralização autoritária do processo de trabalho)” (LINHART, 1983, p. 115).

Neste ponto, considero necessárias algumas observações críticas a respeito dessa interpretação proposta por Linhart, a começar pelos próprios termos empregados pelo autor. Em primeiro lugar, ao meu ver, não se trata de uma tensão entre um “taylorismo soviético” e um “taylorismo mais clássico”, pois em ambas as tendências implicam claramente uma

adaptação soviética do taylorismo. Dito de outra maneira: é certo que Taylor não

preconizava um sistema passível de apropriação coletiva pelos trabalhadores – os quais, então, poderiam se dedicar a funções administrativas do Estado – mas, por outro lado, também não faz parte de sua filosofia a ideia de um comando pessoal e autoritário do processo de produção. O traço crucial do “despotismo” tayloriano é justamente o seu caráter difuso e opaco, fundado na legitimação científica e expresso por uma hierarquia funcional, o que se choca com o princípio de um comando assumidamente autoritário e concentrado nas mãos de uma pessoa. Sendo, assim, a questão pode ser colocada de outra maneira. Levando em conta que as duas tendências de apropriação do taylorismo trazem a marca do contexto soviético, quais os fatores determinam uma diferença tão importante?

Para responder tal questão é preciso notar que o “elemento autoritário” – ênfase no comando pessoal e absoluto do dirigente único – ganha força apenas na segunda versão do texto de 1918, o que exige, portanto, uma análise especial desse momento em que Lenin hesita e tende a essa direção. Não era por motivo trivial a insistência do líder bolchevique, já nas primeiras páginas do texto, sobre “a particularidade do momento presente” que colocava a necessidade “de ‘interromper’ agora a ofensiva [contra o capital]” para dar prioridade às tarefas de administração – de registro e controle – da produção e do abastecimento (LENIN, 1980, p. 564-570): o texto foi escrito entre 13 e 26 de abril de 1918 – e publicado no Pravda dois dias depois – justamente num período (abril e maio) marcado “por um extraordinário agravamento da escassez”, colocando “em termos trágicos o problema do abastecimento das grandes cidades e da classe operária” (SERGE, 2007, p. 271). Como afirma Serge (2007, p. 180-181), os primeiros meses após a Revolução, principalmente entre novembro de 1917 e janeiro de 1918, haviam sido de consolidação da “marcha triunfal por todo o imenso país” e “a incompatibilidade entre o exercício do poder político e a não-posse dos meios de produção só se faz sentir pouco a pouco”. Começava- se, então, um endurecimento do poder soviético com o objetivo de garantir o abastecimento mínimo da população e se preparar para a contraofensiva militar (interna e externa) que se anunciava, de forma que me parece impossível não inserir a virada de Lenin em defesa de um “taylorismo ditatorial” neste contexto específico.

A forma incisiva como Lenin defende o recurso à coação e aos “poderes ‘ilimitados’ (isto é, ditatoriais)” certamente dá combustível para um certo tipo de interpretação, como a de Querzola (1978), que perde de vista a dimensão “viva” de seu pensamento, e acaba por petrifica-lo como “leninismo” (que, aliás, tem mais a ver com Stalin do que com Lenin) e vincula-lo a “toda uma mitologia mecanicista da produção industrial” que “justifica a centralização máxima dos dispositivos de controle” (QUERZOLA, 1978, p. 71). Digamos que o texto de Lenin permite e favorece tal leitura, quando ele insiste não haver “nenhuma contradição de princípio entre o democratismo soviético (isto é, socialista) e a aplicação do poder ditatorial de indivíduos” e quando afirma que “toda a grande indústria mecanizada – isto é, precisamente a fonte e a base material, produtiva, do socialismo – exige uma unidade

de vontade absoluta e rigorosíssima que dirija o trabalho comum” de milhares de

trabalhadores, o que é assegurado pela “subordinação da vontade de milhares à vontade de um só” (LENIN, 1980, p. 581).

No entanto, em primeiro lugar, é importante ressaltar que a tomada do poder político pelos bolcheviques não eliminava automaticamente as relações de produção capitalistas. Nas palavras de Bettelheim, “as classes permanecem, embora modificadas e modificando suas relações, porque as antigas relações sociais, especialmente as relações de produção capitalistas, não são ‘abolidas’, mas transformadas pela ditadura do proletariado” (BETTELHEIM, 1979, p. 124). Esse contexto específico coloca questões delicadas no que se refere à organização da produção, pois “o velho, o ‘vencido’, não havia sido totalmente aniquilado e o novo ainda estava muito fraco para surgir como força fundamental/decisiva na sociedade que aflorava” (AMORIM, 2012, p. 71). Concretamente, isso significava que além de não conseguir romper imediatamente com as relações capitalistas, o novo poder tinha que enfrentar a resistência passiva e ativa das forças sociais vencidas, as quais tinham uma inserção importante no próprio espaço de produção: enquanto, por um lado, boa parte do proletariado mais identificado com a revolução abandonava as fábricas para combater nas trincheiras ou ocupar cargos de comando no Estado, sendo substituída por uma massa com menor experiência profissional e política, por outro lado, proprietários de empresas e especialistas industriais sabotavam a produção, como forma de intensificar o caos e desestabilizar o novo regime que emergia. O quadro era agravado pelo fato de que frações

organizadas dos trabalhadores, com destaque para os mais qualificados, eram lideradas por mencheviques ou socialistas revolucionários em movimentos reivindicatórios que comprometiam ainda mais o já debilitado aparelho de produção e abastecimento.

Lenin, apesar de defender o recurso ao poder ditatorial, ressalta que ele só se justifica, dentro dos princípios da “ditadura do proletariado”, se for utilizado “contra a minoria exploradora no interesse da maioria explorada”. E é no contexto relatado acima que ele considera legítimo a aplicação de um poder ilimitado no espaço da produção, como