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PARTE I: O TAYLORISMO E OS DILEMAS DA RACIONALIZAÇÃO DO

1. Maquinaria e grande indústria: a ciência na produção

1.3 A emergência da racionalização

No período entreguerras, sobretudo a partir de meados da década de 1920, a difusão do taylorismo – ou dos “métodos americanos” – pelo mundo deu ensejo à popularização da

8 Em relação à atividade de trabalho, a “linha de montagem” apenas aprimora os princípios desenvolvidos por

Taylor. Porém, Ford é também o idealizador da “produção em série” e do “consumo de massa”. No plano imediato, a base da primeira é a padronização/estandardização dos processos produtivos, peças, ferramentas e dos produtos finais; e o fundamento do segundo são os “altos salários” (5 dólares diários, o dobro do padrão vigente), oferecidos por Ford para vencer a resistência operária ao ritmo imposto nas suas fábricas. Num plano histórico mais amplo, trata-se da dinâmica de promover ganhos contínuos de produtividade e de produção, garantindo uma relativa compensação ao operariado por meio do aumento do seu poder de consumo.

noção alemã de “racionalização” (Rationalisierung) (COHEN, 1998; MAIER, 1978). No século das grandes guerras (quentes e frias), do nascimento e fim do regime soviético, das crises capitalistas e também dos seus “anos de ouro”, o taylorismo não foi apenas umas das marcas registradas da grande potência hegemônica do período, os Estados Unidos da América. Como ideal ou prática, ele ultrapassou fronteiras geográficas e ideológicas, sendo reivindicado nas democracias liberais europeias, mas também pelo fascismo italiano, pelo nazismo alemão e pelo socialismo soviético. Chegou também ao Terceiro Mundo e desembarcou no Brasil, propagado principalmente pela “Taylor Society tupiniquim”: o Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), criado nos anos 1930 – no mesmo período em que a Escola Politécnica de São Paulo inseria a “organização racional do trabalho” nos currículos dos cursos de engenharia (SEGNINI, 1982, p. 77). Assim, racionalização do trabalho e taylorismo aparecem constantemente como sinônimos, mas, para uma compreensão mais aprofundada, é preciso discernir analiticamente o sistema de Taylor e o processo que ele engendrou. Por isso, analisarei alguns aspectos que a noção de racionalização expõe e, ao mesmo tempo, esconde.

Ao analisar a difusão do taylorismo pela Europa, Maier afirma que, a partir de meados da década de 1920, a “ideia alemã de ‘racionalização’” assume “o lugar principal nos debates sobre organização científica” (MAIER, 1978, p. 122). Na Alemanha, o termo carregava especificidades do seu contexto de origem: “a racionalização consagrava-se essencialmente ao aumento da produtividade e da eficiência técnica, mas principalmente ela caminhava junto, na Alemanha, com uma larga atividade corporativa” (idem, ibidem), que se expressava na formação de cartéis por ramos industriais (COHEN, 1998, p. 919). Mas a difusão do termo se dava, em grande medida, desvinculada da sua especificidade alemã e conjugava, na verdade, as especificidades de cada região com a tendência geral de introdução e adaptação dos princípios tayloristas, de modo que “racionalização” designava “o conjunto de métodos de organização adotados pelos industriais se inspirando nos sistemas de produção em uso nos Estados Unidos”. (MOUTET, 1997, p. 7). Assim, por exemplo, na França – onde, a partir de 1926, o debate sobre a racionalização do trabalho atrai os agentes envolvidos (industriais, engenheiros, sindicatos) e também a opinião

pública mais geral – “racionalização” representava a mescla entre a tradição francesa de organização com os novos métodos americanos (COHEN, 1998).

Nesse ponto, aparecem de forma mais clara o elemento de diferenciação entre a noção de racionalização do trabalho, como uma tendência e um processo geral, e o taylorismo, como sistema ou conjunto de princípios e métodos que deram o tom hegemônico de tal dinâmica. Como afirma Moutet, “a racionalização não é uma doutrina teórica, cujo valor se basearia sobre sua coerência lógica e sua novidade intelectual” (MOUTET, 1997, p. 11), constituindo, na verdade, uma dinâmica que, tendo como referência principal os métodos americanos, se desenvolve de acordo com especificidades históricas e relações de força de cada país, cada ramo de produção e mesmo cada empresa.

No entanto, é preciso destacar que, no momento em que o taylorismo ainda se consolidava e começava a se difundir nos Estados Unidos, a temática da racionalização já havia aparecido no pensamento social alemão, em função da sociologia de Max Weber. Entre 1904 e 1905, Weber publicou a primeira versão de A ética protestante e o “espírito”

do capitalismo, na qual os processos de racionalização de diferentes esferas da vida –

atividade econômica, direito, religião, arte, conduta ética etc. – ocupam lugar decisivo. De maneira geral, ele buscava compreender justamente a “peculiaridade do racionalismo ocidental” e, no que se refere ao “capitalismo moderno” (“a força mais significativa de nossa vida moderna”), Weber aponta como seu elemento distintivo a “organização capitalista racional do trabalho” (WEBER, 2001, p. 11). Como o próprio título indica, o conjunto da obra tem o objetivo de analisar como a ética protestante – especialmente a noção calvinista de trabalho como vocação – influenciou na formação de um ethos capitalista, fundado no cálculo e na organização racional do trabalho. A apreciação pormenorizada da proposta de Weber – de estabelecer um nexo causal entre a ascese protestante e o espírito capitalista – foge às possibilidades e ao objetivo deste estudo. Interessa-me, no entanto, indicar alguns aspectos dessa análise, em relação à temática da racionalização, especialmente no que se refere ao trabalho. Sobre essa questão, Weber diz o seguinte:

A tentativa de descrever o racionalismo econômico como a feição mais destacada da vida econômica como um todo foi feita particularmente por Sombart, muitas vezes através de observações judiciosas e efetivas. Justificadamente, sem dúvida, se

por isto se entender a extensão da produtividade do trabalho que, através da

subordinação do processo de produção a pontos de vista científicos, o tem aliviado de sua dependência das limitações orgânicas naturais do indivíduo. Este processo

de racionalização no campo da organização técnica e econômica determina uma parte importante dos ideais da vida da moderna sociedade burguesa (WEBER, 2001, p. 39).

Weber enfatiza, portanto, a aproximação entre ciência e produção, subordinada ao imperativo da produtividade, como elemento decisivo para o processo de racionalização do trabalho – ou “da organização técnica e econômica”, nos seus termos. A diferença em relação a abordagem marxiana é que tal processo não aparece como determinado pela dinâmica do antagonismo e das lutas de classes, o que não quer dizer, obviamente, que Weber não reconheça esse conflito estrutural. O diferencial é que, apesar da ênfase na diminuição da “dependência” em relação aos limites do indivíduo, os processos de racionalização não aparecem como resultantes da separação e, principalmente, da oposição entre os produtores diretos e as condições de produção, progressivamente potencializadas pela ciência. Dito de outro modo, Weber não apresenta a racionalização como uma estratégia de dominação de classe e, quando o impulso religioso sai de cena – pois “o capitalismo, vencedor, apoiado numa base mecânica, não carece mais de seu suporte” (WEBER, 2001, p. 99) –, o que nos resta é um mecanismo sublimado e inescapável, que ele critica de forma resignada como uma “prisão de ferro” – ou seja, a

moderna ordem econômica e técnica ligada à produção em série através da máquina, que atualmente determina de maneira violenta o estilo de vida de todo indivíduo nascido sob esse sistema, e não apenas daqueles diretamente atingidos pela aquisição econômica, e, quem sabe, o determinará até que a última tonelada de combustível tiver sido gasta (WEBER, 2001, p. 99).

A reflexão de Weber a respeito da racionalização, presente em A ética protestante e

o “espírito” do capitalismo, tornou-se uma das mais célebres da sociologia do século XX e

sua importância pode ser destacada em dois níveis, o analítico e o histórico. Em relação ao primeiro, destaco que a análise de Weber expõe, mesmo que por caminhos tortuosos, uma dimensão irracional inscrita nos processos de racionalização9, que culmina na sua crítica

9 “De fato, pode-se – e esta simples proposição, frequentemente esquecida, poderia ser colocada no início de

todo estudo que tente lidar com o racionalismo – racionalizar a vida a partir de pontos de vista básicos,

fundamentalmente diferentes e em direções muito diferentes. O racionalismo é um conceito histórico que

resignada. Do ponto de vista histórico, essa obra é ainda mais marcante e emblemática, não só pelo pioneirismo de colocar a racionalização como objeto privilegiado de análise, mas por demonstrar, justamente por seus limites, as armadilhas da noção de racionalização como dinâmica autojustificadora e aparentemente desenraizada de suas determinações de classe.

Isso porque os processos de racionalização do trabalho revelam uma dinâmica em que o desenvolvimento do processo social da produção e a sua exploração capitalista aparecem indissociados, o que produz uma legitimação “científica” para iniciativas de racionalização cujo caráter de classe fica obscurecido. Em síntese, no que se refere ao plano imediato da atividade laborativa, a dinâmica da racionalização constitui a transformação contínua dos processos de trabalho, por meio de mudanças técnico-organizacionais, de forma que se conjugam a elevação da produtividade e a intensificação do trabalho. Num plano geral, esse processo se fundamenta, não somente na separação entre o produtor e sua própria atividade, mas na forma específica que essa separação assume a partir das primeiras décadas do século XX, quando, para usar os termos de Marcuse, “toda a dominação assume a forma de administração” (MARCUSE, 1975, p. 98).