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PARTE I: O TAYLORISMO E OS DILEMAS DA RACIONALIZAÇÃO DO

2. A dialética da racionalização do trabalho no capitalismo

2.1 Racionalização e reificação

O ensaio A reificação e a consciência do proletariado foi escrito e publicado por Lukács entre 1922 e 1923, momento em que o autor ainda consolidava sua ruptura com seu “mestre” e amigo Max Weber, iniciada por volta de 1917, e elaborava os fundamentos de uma abordagem marxista. O resultado é uma análise peculiar e reveladora desse momento intelectual, na qual a inspiração em Marx se revela principalmente pela ênfase colocada na separação e na oposição entre os produtores e o processo de trabalho mecanizado, enquanto a influência weberiana, por sua vez, aparece no destaque dado ao “princípio da racionalização baseada cálculo, na possibilidade do cálculo” como elemento distintivo do “capitalismo moderno” (LUKÁCS, 2003, p. 202). Lukács se aproxima da reflexão de Marx ao afirmar que, no capitalismo,

o homem é confrontado com sua própria atividade, com seu próprio trabalho como algo objetivo, independente dele e que o domina por leis próprias, que lhes são estranhas. E isso ocorre tanto sob o aspecto objetivo quanto sob o subjetivo (LUKÁCS, 2003, p. 199).

Mais adiante, Lukács retoma a análise feita por Marx n’O Capital para indicar a tendência da racionalização do trabalho no capitalismo:

Se perseguirmos o caminho percorrido pelo desenvolvimento do processo de trabalho desde o artesanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica, descobriremos uma racionalização continuamente crescente, uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas, humanas e

individuais do trabalhador (idem, ibidem, p. 201).

A partir desses apontamentos, ao refletir sobre o fenômeno da reificação, o autor aponta a racionalização e a especialização crescentes como elementos centrais que isolam o trabalhador da totalidade da atividade e o separam do produto final. A racionalização se refere à eliminação das propriedades qualitativas, humanas e individuais, pelo cálculo e pela organização estritamente racional do trabalho – ponto em que Lukács se aproxima da tese de Weber (2001) a respeito da “especificidade racional” do capitalismo moderno – que

se baseia na especialização, com a fragmentação do processo global em operações parciais cada vez mais simples, permitindo que o “conteúdo humano” seja “apagado” e os trabalhadores e suas atividades concretas possam ser encarados como personificações do tempo de trabalho (abstrato). Assim, segundo Lukács, a mecanização e a especialização seriam o fundamento da reificação, já que a ação do homem se torna “parte mecanizada” de um sistema independente e estranho, que o submete.

Como consequência do processo de racionalização do trabalho, as propriedades e particularidades humanas do trabalhador aparecem cada vez mais como simples

fontes de erro quando comparadas com o funcionamento dessas leis parciais

abstratas, calculado previamente. O homem não aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relação ao processo de trabalho, como verdadeiro

portador desse processo; em vez disso, ele é incorporado como parte mecanizada

num sistema mecânico que já encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e a cujas leis ele deve se submeter (idem, ibidem, p. 203, grifos do autor).

O resultado de tal processo – do qual o sistema de Taylor é a forma mais acabada, o ponto mais elevado de tal especialização reificante10 – é uma sociedade atomizada e pulverizada em “atos isolados de troca”, sendo que, a partir disso, a reificação imprime sua estrutura em toda a consciência do homem e se dissemina no conjunto das manifestações da vida social, distanciando-se de seu “fundamento econômico” (idem, ibidem, p. 213-214).

No entanto, tendo como horizonte a superação do capitalismo, Lukács precisa responder à “questão do limite da reificação, das garantias da possibilidade de o proletariado se desvencilhar da reificação da consciência” (NOBRE, 2001, p. 51). Para ele, essa resposta está ligada ao limite da racionalização capitalista: seu caráter formal e, portanto, sua incongruência em relação ao concreto e ao qualitativo (LUKÁCS, 2003, p 209). Isso porque, a transformação da força de trabalho em mercadoria faz com que parte das faculdades (físicas e mentais) do trabalhador seja coisificada e isolada da sua personalidade, porém, numa perspectiva para além do plano imediato, “sua essência

humana e anímica não são transformadas em mercadoria. Portanto, ele pode objetivar-se

internamente de maneira completa contra essa sua existência” (idem, ibidem, p. 346-347).

10 “Com a moderna análise ‘psicológica’ do processo de trabalho (sistema de Taylor), essa mecanização

Assim, a reificação, enquanto aspecto essencial da socialização capitalista, pode ser o ponto de partida para sua própria superação:

Desse modo, a negatividade puramente abstrata na existência do trabalhador constitui objetivamente não apenas a forma mais típica de manifestação da reificação, o modelo estrutural para a socialização capitalista; é também,

subjetivamente e por essa razão, o ponto em que essa estrutura pode ser elevada à consciência e, dessa maneira, rompida na prática (idem, ibidem, p. 347).

Nesse sentido, a quantificação racional e abstrata parece reduzir a força de trabalho a uma mercadoria como qualquer outra, aparecendo apenas como uma das engrenagens do mecanismo produtivo. Porém, Lukács aponta que o que está por trás desse “fetichismo” são relações sociais entre seres humanos. Além disso, numa perspectiva menos imediata, é justamente com o desenvolvimento capitalista que as relações sociais aparecem claramente como núcleo estruturador da atividade humana:

Essa metamorfose do trabalho em mercadoria elimina, por um lado, tudo o que é “humano” da existência imediata do proletariado e, por outro, o mesmo desenvolvimento anula em medida crescente tudo o que é “natural”, toda relação direta com a natureza partindo das formas sociais, de tal modo que, justamente em sua objetividade distante da humanidade e mesmo inumana, o homem socializado

pode revelar-se como seu núcleo. E é nessa objetivação, nessa racionalização e

coisificação de todas as formas sociais que aparece claramente, pela primeira vez,

a estrutura da sociedade constituída a partir das relações dos homens entre si

(idem, ibidem, p. 354).

Para Lukács, “o homem tornou-se então a medida de todas as coisas (sociais)” (idem, ibidem, p. 370). Assim, se, na sua imediaticidade cotidiana, “o capitalismo violenta e destrói tudo o que é humano”, esse deve ser o ponto de partida11 para sua superação “por

um esforço constante e sempre renovado para romper na prática a estrutura reificada da existência” (idem, ibidem, p. 391). Esse esforço não pode ser um mero movimento do

pensamento, porém, por outro lado, não pode ser uma prática desvinculada do conhecimento, tendo em vista a importância do “tornar-se consciente” do movimento para a transformação. Tal transformação, aponta Lukács (idem, ibidem, p. 411), na conclusão de seu ensaio, só pode ser “ato livre” do próprio proletariado.

11 “O homem só pode ser encontrado como núcleo e base das relações coisificadas na supressão do seu

imediatismo e por meio dele. Sendo assim, é preciso partir sempre desse imediatismo, das leis reificadas” (LUKÁCS, 2003, p. 355). Daí a importância dada por Lukács à categoria “mediação”, apresentada como sua “alavanca metódica” para superar o imediatismo, sem recorrer, entretanto, a elementos externos à própria estrutura objetiva (idem, ibidem, p. 331).

Em síntese, a reflexão lukacsiana indica a racionalização e a mecanização – intimamente ligadas ao caráter reificado do trabalho no capitalismo – como uma dinâmica que mutila, viola e apaga o conteúdo “humano” da atividade de trabalho, mas que, por outro lado, possui limites que abrem a possibilidade de sua superação. Como afirma Nobre, em meio a esse “entrelaçamento de formalismo, reificação e racionalização, que passam a compor o quadro de um processo histórico de caráter globalizante” (NOBRE, 2001, p. 58), pode-se encontrar, “na atividade cotidiana do proletário, aquela porta estreita por onde, em momentos privilegiados, pode se mostrar a realidade das relações capitalistas” (idem, ibidem, p. 66). Nesse ponto, Lukács expõe uma contradição fundamental da racionalização capitalista do trabalho: o seu caráter formal e, portanto, “externo” em relação ao próprio trabalhador que cotidianamente se submete mas também resiste a tal imposição. Para usar as palavras do filósofo húngaro (2003, p. 344-345), “a transformação de todos os objetos em mercadorias, sua quantificação em valores fetichistas de troca” constitui um processo que, para o proletariado, “significa seu próprio nascimento como classe”. E é exatamente esta “negatividade puramente abstrata na existência do trabalhador” que o impele a ir além do imediatismo de tal existência.

No entanto, é justamente no que se refere a “atividade cotidiana do proletariado” que esta análise do filósofo húngaro encontra sua lacuna mais importante. No prefácio autocrítico de 1967, Lukács que indica que, em História e consciência de classe, seu ponto de partida para análise da reificação foram “estruturas complexas da economia mercantil” e não o trabalho (LUKÁCS, 2003, p. 20), carecendo então de uma análise da base econômica mais concreta (idem, ibidem, p. 44) e faltando os nexos entre economia e dialética (idem, ibidem, p. 45)12. Além disso, e esse aspecto nos parece mais importante em função do nosso foco, Lukács aponta que nesta obra há uma identificação, a partir da categoria “reificação”, entre “objetivação” (ou exteriorização) e “estranhamento”13. Essa

12 Em O jovem Hegel, Lukács aprofunda esses reparos críticos e, na sua Ontologia do ser social desenvolve

tais elementos, não apenas tendo como ponto de partida o “trabalho”, mas o definindo, enquanto ato material dotado de consciência, como elemento fundante do ser social.

13 Utilizarei neste texto preferencialmente “estranhamento” em lugar de “alienação”, pois essa última noção

tem um sentido também de “exteriorização” e, portanto, não necessariamente marcado pela negatividade expressa de forma inequívoca por “estranhamento”. Nesse sentido é que Ranieri (2003, p. 16) define como “exteriorização” ou “alienação” (Entäusserung) a dimensão inscrita no trabalho humano, relativa ao

indiferenciação ofusca a dimensão concreta do processo de trabalho, que passa a ser entendido apenas como processo de valorização, do que resulta a ênfase unilateral na dimensão negativa, ou seja, da “reificação” e do “estranhamento” – perdendo-se de vista a dimensão do trabalho como atividade humana de exteriorização/objetivação. Assim, “Lukács acaba descuidando do trabalho em sua realidade objetiva, que faz dele uma instância privilegiada de interação com a natureza – como objetivação não necessariamente idêntica à alienação” (MAAR, 1996, p. 44)14.

A lacuna, portanto, está na ausência de uma distinção dialética entre o processo de trabalho (objetivação/exteriorização inerente à atividade humana) e o processo de valorização do capital (marcado pelo estranhamento). Desse modo, o traço essencial de negatividade no enfoque da racionalização do trabalho impede avanços mais “realistas” no sentido da diferenciação, proposta por Marx (2013, p. 494), “entre a maior produtividade que resulta do desenvolvimento do processo social de produção e aquela que resulta da exploração capitalista desse desenvolvimento”. Em relação a este aspecto, a análise de Gramsci sobre o “americanismo”, justamente por focar a dimensão mais concreta e cotidiana da racionalização, fornece elementos tão preciosos quanto polêmicos.