• Nenhum resultado encontrado

PARTE I: O TAYLORISMO E OS DILEMAS DA RACIONALIZAÇÃO DO

4. A fábrica, a máquina e a intervenção humana

4.1 Um socialismo taylorizado?

Certamente, aos olhos de hoje, as propostas de aplicação do taylorismo elaboradas por eminentes revolucionários comunistas podem parecer surpreendentes – ou mesmo um desvio esdrúxulo. No entanto, eles precisam ser encaradas dentro do contexto em que foram elaboradas, do ponto de vista das circunstâncias políticas e econômicas particulares – como já indiquei no caso do “taylorismo autoritário” formulado por Lenin no comunismo de guerra – mas principalmente do esforço de atualização do marxismo com vista à elaboração de estratégias de transição para uma sociedade emancipada. Em relação a esse aspecto, ao analisar o caso específico de Lenin, Finzi faz um alerta importante:

As lentes forjadas no decurso subsequente do choque de classes (e dos eventos internos do movimento operário internacional) induziram com o tempo, hoje particularmente, a uma curiosa distorção ótica: o juízo de Lenin parece “anômalo” justamente em sua apreciação positiva das pesquisas de Taylor (FINZI, 1986, p. 145).

Segundo o autor, a apreciação positiva de Lenin a respeito do taylorismo só pode ser considerada “anômala” por uma “distorça ótica” porque, durante a década de 1910, a difusão bastante incipiente do taylorismo gerava reações limitadas e as críticas em relação ao caráter de classe dos novos métodos provinham de grupos minoritários, entre os quais estavam justamente os bolcheviques e o próprio Lenin – o qual nunca deixou de ressaltar os

traços de refinada crueldade capitalista do taylorismo28. Além disso, é preciso destacar que a análise das possibilidades de apropriação das técnicas capitalista não está, em princípio, em contradição com o legado marxiano. Nesse sentido, é importante lembrar que o próprio Marx recusa um visão unilateral e essencialmente negativa do desenvolvimento capitalista e, no que se refere às questões levantadas aqui, descarta a possibilidade de um simples

retorno a formas artesanais de produção29. Desse modo, apesar de ser crítico ferrenho do sistema de máquinas forjado pelo capitalismo, Marx não tem opção a não ser pensar sua superação a partir das possibilidades oferecidas por essa base. Dito com suas palavras, “o desenvolvimento das contradições de uma forma histórica de produção constitui, todavia, o

único caminho histórico de sua dissolução e reconfiguração” (MARX, 2013, p. 558)30. E, no caso da possibilidade de uma nova base técnica, isso é ainda mais verdadeiro. Ao contrário do que é comumente vulgarizado, segundo o entendimento marxiano, o capital não foi resultado automático do desenvolvimento das forças produtivas: “inicialmente, o capital subordina o trabalho conforme as condições técnicas em que historicamente o encontra” (MARX, 2013, p. 382).

Seguindo essa perspectiva, não há razões para se pensar que uma nova forma social comece sua edificação tendo sua base técnica já edificada. Ela só pode ser o ponto de partida, a partir do qual se desenvolve suas potencialidades entravadas pelas contradições da forma anterior. Isso não significa, seguindo a perspectiva marxiana, simplesmente “inverter o sinal de classe” de uma base supostamente neutra, o que permitiria transformar, quase que instantaneamente, exploração em produção de abundância. Se a base técnica

28 Assim, ainda segundo Finzi, o traço “anômalo” nas posições de Lenin a respeito do taylorismo era

justamente a “percepção bastante precoce do preciso papel de classe das novas técnicas organizacionais, fruto da viva atenção leniniana ao desenrolar das lutas proletárias” (FINZI, 1986, p. 145).

29 Ele reconhece que no trabalho artesanal se revela a “livre individualidade” do trabalhador e a virtuosidade

de sua atividade, mas considera sua destruição – enquanto forma dominante – como inevitável já que “só é compatível com os estreitos limites, naturais-espontâneos, da produção e da sociedade”. Aliás, seu próprio desenvolvimento engendra os elementos de sua própria destruição, o que possibilita “a transformação dos meios de produção individuais e dispersos em meios de produção socialmente concentrados e, por conseguinte, a transformação da propriedade nanica de muitos em propriedade gigante de poucos” (MARX, 2013, p. 831). Assim, apesar de reconhecer nesses processos “o mais implacável vandalismo”, Marx não lamenta o declínio do artesanato: “tem que ser destruído, e é destruído” (idem, ibidem).

30 Como afirma Gorender, por rejeitar as “idealizações utópicas”, Marx “ateve-se àquelas inferências

possíveis a partir do próprio capitalismo” o que explica o fato de que “Marx não deixou senão escassas e sucintas ideias acerca das características do comunismo” (GORENDER, 1996, p. 52).

carrega determinações ligadas à formação social que lhe produziu, mas, ao mesmo tempo, não existe outro ponto de partida para transforma-la, as possibilidades devem ser buscadas no desenvolvimento das suas contradições. Nesse sentido, a apropriação do taylorismo poderia ser considerada como uma estratégia de transição. Em muitos momentos, esse caráter transitório fica obscurecido, pois mesmo a dimensão mais “utópica” dessas formulações apontam para a divisão rigorosa das funções, resultante dos imperativos técnicos da grande indústria e, ao mesmo tempo, geradora de uma espécie de “solidariedade orgânica” entre produtores com diferentes funções. Por esse motivo, Moraes Neto (2009, p. 661-662) coloca Lenin como prisioneiro da forma de organização medíocre oferecida pelo taylorismo, enquanto Devinatz (2003, p. 514) afirma, sem muita convicção, que Lenin entende a apropriação do taylorismo como “medida temporária”.

No meu entendimento, em última instância, Lenin entendia a aplicação do taylorismo como uma estratégia transitória, mas isso não significa que não houvesse limites inerentes a essa estratégia que obstassem o “objetivo final”. Em O Estado e a Revolução, Lenin deixa claro que a ideia da sociedade inteira como uma fábrica – com trabalhos e salários iguais – refere-se à “primeira fase da sociedade comunista” e que essa extensão da “disciplina de ‘oficina’” a toda sociedade “não é absolutamente o nosso ideal nem nosso objetivo final”, é apenas um período de transição, até que todos os membros da sociedade – ou a maioria deles – aprendam a gerir o Estado, do que resultará, dialeticamente, sua própria extinção. (LENIN, 2005, p. 106-107). O curioso é que, ao fazer a ressalva, Lenin se refere a esse caráter transitório apenas no plano da administração do Estado, sem qualquer indicação de como eliminar a “disciplina de oficina” – ou seja, a separação entre trabalho de concepção/comando e trabalho de execução – das próprias oficinas. Como Lenin não nega esse objetivo (aliás, o afirma constantemente), ao que parece, ele seria um desdobramento natural do processo de extinção do próprio Estado. Aliás, em vários momentos, a reflexão de Lenin transforma a clássica distinção entre trabalho intelectual (concepção) e trabalho manual (execução) numa distinção entre trabalho na administração do Estado e trabalho “físico” na produção, o que pode explicar essa aparência de uma reintegração espontânea, por meio da dissolução do Estado. Além disso, é preciso ressaltar que Lenin pensa a revolução a nível mundial, o que permitiria, na medida de seu avanço,

uma colaboração internacional – e não uma resistência – cujas consequências seriam uma retração do imperativo produtivista e a abertura de novas possibilidades de desenvolvimento da produção e dos produtores.

Em relação a esse ponto, Americanismo e fordismo se situa num quadro diferenciado, pois Gramsci escreve no contexto de refluxo das lutas revolucionárias que haviam marcado os últimos anos da década de 1910, o que adiava a possibilidade de um “relaxamento” em relação ao imperativo da disciplina e da produtividade do trabalho. Assim, as derrotas operárias na Europa e as dificuldades colocadas para a sobrevivência do Estado soviético impuseram, para Gramsci, a necessidade de um aprofundamento em relação às contradições da racionalização, levando inclusive a focar fatores sociais para além da fábrica. Como afirma Trentin, nos Cadernos Gramsci apresenta uma evolução importante em relação às teses sobre “o governo ‘conselhista’ da fábrica taylorizada”. Em primeiro lugar, em função da percepção do “caráter ambivalente e complexo das estratificações sociais na Itália e na Europa, e aos obstáculos que elas podem colocar a um avanço linear do taylorismo e do fordismo”. Em segundo lugar, e principalmente, por uma “tomada de consciência lúcida” em relação ao “conflito destruidor que se produz entre, de um lado, o taylorismo, enquanto forma extrema de racionalização do trabalho, e, de outro, a ‘humanidade’ e a ‘espiritualidade’ do trabalhador” (TRENTIN, 2012, p. 266-267). E é justamente a compreensão desse conflito que levará Gramsci a privilegiar a questão das possibilidades de uma auto-coerção – criticando os excessos “bonapartistas” – que possibilite a adaptação psicofísica aos novos métodos de trabalho.

Por outro lado, a dinâmica de parcelamento e esvaziamento do conteúdo do trabalho continua sendo encarada como parte dos “custos sociais” inevitáveis do próprio industrialismo e por isso mantém-se a ideia de uma “fase taylorista” no “processo de liberação do trabalho” (TRENTIN, 2012, p. 270). Assim, a contradição entre a visão de conjunto e a intervenção estritamente parcelar no processo de produção permanece nesta reflexão de Gramsci, e se manifesta através de outra contradição: a consciência (fundada ou ilusória) da detenção do poder político, assumido pela elite da classe operária, e a convivência com “a desumanização concreta e a subalternidade do trabalho efetuado na fábrica moderna” (TRENTIN, 2012, p. 272). No fundo, mantém-se a contradição expressa

por Lenin, num tom acentuado pelas circunstâncias de 1918: por um lado, a revolução havia quebrado “as cadeias mais antigas, mais fortes e mais pesadas, com as quais se submetiam as massas pela força”, mas, por outro lado, posteriormente “essa mesma revolução, precisamente no interesse do seu desenvolvimento e consolidação, precisamente no interesse do socialismo, exige obediência sem reservas das massas à vontade única dos dirigentes do processo de trabalho” (LENIN, 1980, p. 581). Contradição que também aparece – ainda que sem intenção – na análise de Petri: num primeiro momento ele afirma que, através dos conselhos, “o produtor deixa de ser máquina e se torna um elemento ativo e consciente da produção” (PETRI, 1919d, p. 205) e, no artigo seguinte, coloca o produtor como parte de uma “única grande máquina”:

o capitalismo está preso à máquina, agora você [operário] está se tornando uma peça da máquina. A velha máquina e você vão se tornar uma única grande máquina. O Conselho é a alma nova e viva deste mecanismo. Um dia esta máquina, que deve fluir com o suave silêncio de uma fria perfeição, adquirido um fôlego humano, esmagará impassível o capitalismo (PETRI, 1919e, p. 210).

Assim, o trabalhador deveria eliminar a classe exploradora que pretende transformá- lo numa máquina, para, em seguida, se submeter à condição de peça de uma máquina ainda maior. Em síntese, pode-se dizer que essa estratégia de liberação do trabalho – defendida, com diferentes nuances, por Lenin, pelo grupo do L’Ordine Nuovo e também por Gramsci no período da prisão – envolvia uma fase de extensão dos critérios rigorosos de racionalidade e organização para além do processo de trabalho, preservando-os e mesmo reforçando-os, por outro lado, no interior das fábricas. Por isso, a fábrica e a máquina, expressões históricas da exploração capitalista, se tornam modelos para a única fase palpável da sociedade comunista e surgem as metáforas da sociedade como uma “grande fábrica” ou mesmo uma “grande máquina”. Como já indiquei, essa posição está claramente relacionada à ideia, desenvolvida por Marx, de que a superação de uma forma social se dá através do desenvolvimento das contradições engendradas por ela. E foi também em Marx que esses revolucionários parecem ter encontrado a contradição a ser explorada: ao mesmo tempo em que impõe ordem no interior da fábrica, o capital promove, pela concorrência e pelo fanatismo da valorização, a “anarquia” no conjunto da produção, com o desperdício de meios de produção e força de trabalho.

A ideia de estender os mecanismos de organização da fábrica capitalista para o conjunto da sociedade parece ser uma resposta a tal contradição que se afirmava de forma mais enfática no início do século XX, já que o capitalismo “liberal” empurrava a humanidade para a guerra em escala mundial e para a grande crise econômica de 1929. Neste sentido, desenvolveram-se tendências no marxismo e no movimento operário que denunciavam o “absenteísmo” e o “parasitismo” capitalistas e acabavam por referendar uma “moral austera dos produtores” e por “aceitar ‘em bloco’ as forças produtivas herdadas do sistema capitalista” (TRENTIN, 2012, p. 290), colocando o foco imediato na questão do desenvolvimento do processo produtivo e relegando para um futuro indefinido o enfrentamento da contradição concreta que se separa e opõe os trabalhadores e sua própria atividade.

Neste ponto, Trentin (2012, p. 287) aponta “uma verdadeira ruptura com toda uma parte da pesquisa de Marx”, posto que a alienação operária em relação aos instrumentos materiais e culturais de produção constituía a base do caráter irredutível da contradição entre capital e trabalho e a gênese da própria acumulação capitalista, conforme ele demarca insistentemente no livro primeiro d’O Capital. Assim, se, por um lado, a contradição entre disciplina fabril e anarquia da produção social fora extraída da própria análise marxiana, por outro lado, tal extração se realizou pelo ofuscamento da “contradição primária”, fundada na cisão entre potências intelectuais do processo de produção e o trabalho manual, que transforma todo meio potencial de facilitação do trabalho em meio de esvaziamento de seu conteúdo e, por isso, em tortura para os trabalhadores. Avaliemos mais detalhadamente, então, a contradição desenvolvida e a relegada.