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PARTE I: O TAYLORISMO E OS DILEMAS DA RACIONALIZAÇÃO DO

2. A dialética da racionalização do trabalho no capitalismo

2.2 Racionalização e emancipação

A “porta estreita” aberta por Lukács em História e consciência de classe parece estar escancarada na análise de Gramsci em Americanismo e fordismo. Neste texto, o potencial transformador não está – como parece indicar a reflexão do “jovem” Lukács – somente nos pontos nos quais a racionalização capitalista não consegue penetrar, mas principalmente no centro desta dinâmica contraditória. Porém, essa posição de Gramsci colocou também uma série de questões e polêmicas, com interpretações indicando uma

“momento de objetivação humana no trabalho, por meio de um produto resultante de sua criação”; e, por outro lado, como “estranhamento” (Entfremdung) “o conteúdo [determinado historicamente] do conjunto das exteriorizações – ou seja, o próprio conjunto da nossa sociabilidade – através da apropriação do trabalho, assim como a determinação dessa apropriação pelo advento da propriedade privada”.

14 Alguns outros autores que destacam a importância dessa falha reconhecida pelo próprio Lukács, na “fusão

hegeliana das categorias da objetivação e alienação/reificação” (MÉSZÁROS, 2002, p. 407). Tertulian (1993, p. 441), por sua vez, alerta que na sua obra posterior, Ontologia do ser social, Lukács fez uma distinção entre “reificações ‘inocentes’” e “reificações ‘alienantes’”. As primeiras relativas à condensação das atividades em um objeto, ou seja, uma exteriorização da atividade humana viva, concreta, em que não se configura uma “alienação” propriamente dita (um estranhamento). Já as reificações “alienantes” estariam ligadas à afirmação e reprodução de uma força estranhada, que se manifesta na venda da força de trabalho, que se torna elemento impotente e subordinado de um mecanismo independente.

desconsideração da dimensão alienante da racionalização capitalista ou mesmo a construção de uma “utopia fordista” por parte de Gramsci. Antes de enfrentar tais questões, vejamos alguns aspectos da reflexão do filósofo italiano.

Ao analisar o “fenômeno americano”, Gramsci não deixa de enfatizar o caráter de classe – como iniciativa capitalista – da racionalização do trabalho e as suas consequências para os trabalhadores. Segundo o filósofo italiano, “o objetivo da sociedade americana”, expresso nos princípios de Taylor e Ford, é “desenvolver ao máximo, no trabalhador, as atitudes maquinais e automáticas, romper o velho nexo psicofísico do trabalho qualificado, que exigia uma determinada participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa

do trabalhador, e reduzir as operações produtivas apenas ao aspecto físico maquinal”

(GRAMSCI, 1984, p. 397). Além disso, ao expor a determinação de classe da racionalização imposta pelo modelo americano, Gramsci enfatiza também, ao seu modo, o caráter formal da racionalização capitalista, pois, apesar da intenção manifesta de transformar o operário num “gorila domesticado”, o trabalhador continua “infelizmente” (para os industriais) homem. Disso resulta um “equilíbrio externo e mecânico”, que revela todo o cinismo e a brutalidade de tais iniciativas cuja preocupação restringe-se a “manter a continuidade da eficiência física do trabalhador, da sua eficiência muscular e nervosa”. Para Gramsci, esse equilíbrio só pode ser “interno” se colocado por “uma nova forma de

sociedade, com meios apropriados e originais” (GRAMSCI, 1984, p. 397).

A problemática das condições para esse equilíbrio interno constitui o núcleo da reflexão de Gramsci que, por outro lado, se recusa – assim como Marx – a uma crítica unilateral do desenvolvimento industrial capitalista pautado pela defesa vazia e romântica do “humanismo” típico da produção artesanal. Em termos gerais, é isso que leva Gramsci a destacar, em tom aparentemente elogioso, aspectos positivos da racionalização imposta por essa “forma moderníssima de produção e de modo de produzir como é a oferecida pelo tipo americano” (GRAMSCI, 1984, p. 377).

Eles [os industriais americanos] não se preocupam com a “humanidade” e a “espiritualidade” do trabalhador que são imediatamente esmagadas. Essa

“humanidade e espiritualidade” só podem existir no mundo da produção e do trabalho, na “criação produtiva”; elas eram absolutas no artesão, no “demiurgo”,

bastante forte o laço entre a arte e o trabalho. Mas é exatamente contra esse

“humanismo” que luta o novo industrialismo (GRAMSCI, 1984, p. 397).

Nesse sentido, o autor se contrapõe aos críticos do americanismo, que denunciam um (suposto) abandono dos aspectos qualitativos em favor de saltos quantitativos. Segundo ele, o critério de “qualidade” comumente adotado para esse tipo de argumentação não é “racional” – são fórmulas de “literatos desocupados e de políticos cuja demagogia consiste em construir castelos no ar” (GRAMSCI, 2001, p. 261). Para Gramsci, “qualidade” só pode se referir a “coisas” quando se trata de “obras de arte individuais e não reproduzíveis”. Para além disso, “qualidade” só pode se relacionar com a satisfação das “necessidades elementares das classes populares” e “tudo o mais não passa de folhetim ideológico” (GRAMSCI, 1984, p. 402). Assim, ele prossegue:

a qualidade humana eleva-se e torna-se mais refinada na medida em que o homem satisfaz um número maior de necessidades, tornando-se independente. O preço elevado do pão, devido ao fato de se pretender manter um número maior de pessoas ligado a uma determinada atividade, leva à desnutrição. A política da qualidade quase sempre determina o seu oposto: uma quantidade desqualificada (idem, ibidem, p. 402-403, grifos nossos).

Esses apontamentos permitem que Gramsci avance em relação à outra questão também colocada pelos intelectuais e por camadas da sociedade europeia avessas à racionalização rigorosa dos métodos de trabalho: a questão “da diferença que o taylorismo determinaria entre trabalho manual e o ‘conteúdo humano’ do trabalho” (idem, ibidem, p. 403). A apresentação do problema na forma de suposição parece não ser gratuita: ele pretende se contrapor à negatividade colocada nesse aspecto da racionalização. Para tanto, Gramsci se vale do exemplo das profissões ligadas à reprodução de textos, em que o interesse pelo texto torna mais lenta e passível de erro a tarefa de reprodução. Segundo ele, nessas profissões, a mecanização é mais difícil pois

exige do operário que ‘ignore’ ou não reflita sobre o conteúdo intelectual do texto que reproduz (...). O interesse do trabalhador pelo conteúdo intelectual do texto é

medido pelos seus erros, o que torna este interesse uma deficiência profissional. A

sua qualificação é medida a partir do seu desinteresse intelectual, da sua “mecanização” (GRAMSCI, 1984, p. 403).

Assim, o autor aponta que esse esforço de isolamento do conteúdo intelectual (de textos “algumas vezes apaixonantes”) é feito e “não mata espiritualmente o homem” (idem,

ibidem, p. 404). Mais do que isso: passado o processo de adaptação, verifica-se que o cérebro do operário, ao invés de “mumificar-se”, alcançou um estado de “liberdade

completa” pois o cérebro é liberado para outros pensamentos15. Nesse sentido, Gramsci “exalta” a racionalização por uma motivação técnica e produtiva: a mecanização dos gestos de trabalho, ao isolar o conteúdo intelectual, simplifica as operações, permitindo um ritmo mais intenso e eliminando possíveis fontes de erro relacionadas ao interesse intelectual pelo conteúdo do trabalho. Por esse motivo, o salto “produtivo” representado pelo fordismo não poderia ser visto como negativo, no sentido de que eliminaria a dimensão qualitativa ou “humana” da atividade de trabalho, até porque, depois das dificuldades de adaptação aos métodos “racionais”, teríamos um patamar produtivo superior, que permitiria a satisfação de um conjunto maior de necessidades humanas.

Além dessa positividade produtiva, a liberação do cérebro operário para “outros pensamentos” aparece, no texto de Gramsci, com um potencial político, no sentido de que libera o intelecto para pensamentos nada desejáveis para os industriais:

Os industriais norte-americanos compreenderam muito bem esta dialética inerente

aos novos métodos industriais. Compreenderam que o “gorila domesticado” é

apenas uma frase, que o operário continua “infelizmente” homem e, inclusive, que ele, durante o trabalho, pensa demais ou, pelo menos, tem muito mais possibilidade de pensar, principalmente depois de ter superado a crise de adaptação. Ele não só pensa, mas o fato de que o trabalho não lhe dá satisfações imediatas, quando compreende que se pretende transformá-lo num gorila domesticado, pode levá-lo a um curso de pensamentos pouco conformistas (GRAMSCI, 1984, 404).

Segundo Vianna (2004), na reflexão de Gramsci, o “esvaziamento subjetivo do trabalhador” resulta na consolidação de um novo sujeito histórico, já indicado por Marx na conceituação do proletariado moderno: a “figura socialmente nova do trabalhador

coletivo”, a qual é portadora de uma “subjetividade nova que nasce da própria

desqualificação do trabalhador individual no mundo da produção” (VIANNA, 2004, p. 93). Por esse motivo, a dimensão reificante da valorização do capital parece perder o foco, que

15 “Só o gesto físico mecanizou-se inteiramente; a memória do ofício, reduzido a gestos simples repetidos em

ritmo intenso, ‘aninhou-se’ nos feixes musculares e nervosos e deixou o cérebro livre para outras ocupações. Da mesma forma que se caminha sem necessidade de refletir sobre todos os movimentos necessários para mover sincronizadamente todas as partes do corpo, assim ocorreu e continuará a ocorrer na indústria em relação aos gestos fundamentais do trabalho; caminha-se automaticamente e, ao mesmo tempo, pode-se pensar em tudo aquilo que se deseja” (GRAMSCI, 1984, p. 404).

é colocado no aumento da produtividade do processo social de produção num sentido mais geral. Nesse sentido, Vianna afirma que

Gramsci, como é bem conhecido, não apresenta resistências românticas à sociedade industrial. Em sua sociologia fabril, nos limites de uma psicologia social, diversamente de Marx, que, com os macrofundamentos de sua análise, põe ênfase nos processos que constituem a fábrica moderna como lugar da realização da subsunção real do trabalhador ao capital, Gramsci, ao valorizar o plano micro, seleciona aspectos e processos que conduzem ao resultado progressista do novo tipo de ‘homem-coletivo’. Para ele, tanto a mecanização como a racionalização do trabalho, em vez de produzirem o aviltamento da subjetividade do trabalhador – o ‘gorila domesticado’ de Taylor –, propiciaram a liberação de sua consciência e não a sua morte espiritual. (VIANNA, 2004, p. 90).

Esta indicação de Vianna indica aspectos importantes da análise gramsciana, mas também pode dar vazão a uma interpretação um tanto equivocada, já que coloca a ênfase particular dada por Gramsci em contraste com a análise marxiana (e lukacsiana) dos processos de subordinação e alienação do trabalho. Indo mais longe nessa perspectiva interpretativa, Ortiz (2006, p. 99-100) afirma que o “historicismo” de Gramsci, contrariamente ao “essencialismo” de Lukács, “dificilmente opera com a categoria ‘alienação’”. Outros autores, porém, colocam a questão em termos mais precisos. Baratta (2004, p. 161), por exemplo, aponta que Gramsci tem o cuidado de não deixar de

evidenciar os “efeitos alienantes e destrutivos” da “organização científica do trabalho”

desenvolvida por Taylor. Del Roio (2007, p. 73) apresenta um entendimento semelhante ao afirmar que a análise de Gramsci indica uma “situação contraditória de aprofundamento da

alienação e de criação das condições para negação da subalternidade operária”. No

entanto, o aprofundamento em relação a essa questão exige uma breve digressão em relação ao “caráter analítico e estratégico” que Gramsci atribui aos seus conceitos (SOUZA, 1992, p. 6) e, assim, é preciso enfrentar outra polêmica: a suposta “utopia fordista” de Gramsci.

Parece-me claro que, em Americanismo e fordismo, Gramsci, por um lado, expõe uma visão positiva da racionalização do trabalho e da produção e, por outro lado, enfatiza criticamente o caráter de classe das iniciativas implementadas pelos industriais americanos nesse sentido. Partindo dessas duas dimensões, Clarke (1990, p. 142) interpreta que Gramsci elabora uma “utopia fordista”, a qual não poderia ser plenamente realizada numa sociedade de classes (nem mesmo no capitalismo estadunidense), pois, neste tipo de

sociedade, as iniciativas seriam sempre externas aos próprios trabalhadores e, por isso, corresponderiam primordialmente à coerção, à compreensão mecânica. Por esse motivo, conclui Clarke, somente numa sociedade comunista a “utopia fordista de Gramsci” poderia concretizar-se plenamente. No entanto, tal leitura é, a meu ver, um tanto exagerada e mesmo equivocada, pois distorce o sentido geral do argumento construído por Gramsci e ignora elementos claramente indicados pelo comunista italiano. Isso porque, no fechamento de Americanismo e fordismo, Gramsci é enfático em relação à possibilidade de que a América seja pelo menos um “farol” de uma “nova civilização” (ou “nova cultura”). A resposta é “fácil: não, não existe; muito ao contrário, na América só se faz remastigar a velha cultura europeia” (GRAMSCI, 1984, p. 411).

É preciso reconhecer que Gramsci procura constantemente combater o “preconceito” europeu em relação ao americanismo, o que o leva, em vários momentos, a assumir uma atitude provisória de defesa do pragmatismo americano16. Mas esse combate

não tem o sentido de colocar o “fenômeno americano” como um modelo, pelo contrário: o americanismo deveria ser visto com cuidado justamente porque, ao produzir uma hegemonia fabril conservadora, ele “exprimiria a forma histórica de concreção da estratégia de passivização das potencialidades democráticas advindas com a Revolução Bolchevique” (BRAGA,1996, p. 210). Assim, ao afirmar que a América apenas “remastiga” a velha cultura europeia, Gramsci problematiza o processo ocorrido nos Estados Unidos como uma forma de “revolução passiva”, ou seja, um conjunto de alterações moleculares – realizadas “de cima para baixo” – cujo sentido último é a manutenção e o reforço da ordem existente, a partir de uma recomposição das forças.

Em outro texto, ao refletir sobre “o tema da ‘revolução passiva’”, Gramsci afirma que tal noção carrega perigos como o “derrotismo histórico” e o “fatalismo”, desembocando numa crítica meramente negativa do processo analisado, mas que, tomada dialeticamente, a revolução passiva “pressupõe e até postula como necessária uma antítese

16 Esse “preconceito” – fundado numa exaltação da “alta cultura” européia – incomodava Gramsci de forma

profunda, a ponto de afirmar, numa anotação de um caderno miscelâneo 5, que “o anti-americanismo, mais do que estúpido, é cômico”, em função da falta de autocrítica dos intelectuais europeus que riem dos americanos e “regozijam-se com a velha Europa” (GRAMSCI, 2001, p. 302). Essa é a razão de sua crítica contundente aos elementos “semi-feudais” e “parasitários” presentes na Itália (e, em certa medida, na Europa) de seu tempo, que Gramsci realiza através de uma polarização com o “fenômeno americano”.

vigorosa e que ponha intransigentemente em campo todas as suas possibilidades de

explicitação” (GRAMSCI, 2011, p. 331-332). Portanto, Gramsci não propõe a revolução passiva como programa, mas como “critério de interpretação, na ausência de outros elementos ativos de modo dominante” (idem, ibidem). No caso da análise do americanismo, essa proposta analítica e estratégica exige, em primeiro lugar, o reconhecimento e a interpretação da supremacia estadunidense que se formava, sem que essa postura indique adesão a esse projeto de sociedade17. Como indica Vianna (2004), o que diferencia, para Gramsci, a “revolução passiva” americana – em relação ao exemplo clássico do “Risorgimento” italiano – é que ela carrega um potencial progressista e universalizante, o que significa a superação do capitalismo teria que considerar as bases criadas pelo modelo americano, e não o referencial oferecido pela velha cultura europeia. Sendo uma nação voltada para a produção, a “América” é o lugar onde a “hegemonia nasce da fábrica”, em que as classes fundamentais estão dispostas da forma mais racional e mais avançada. É por esse motivo que Gramsci opõe o “desperdício”, o “parasitismo” e o “humanismo cediço da Europa” (VIANNA, 2004, p. 94) à eficiência, à produtividade e à filosofia puritana, marcadamente pragmática e avessa a abstrações.

Gramsci prefere afirmar o caráter sem volta das transformações impostas pelo americanismo-fordismo do que se apegar, de forma nostálgica e romântica, a referências que foram eliminadas ou que permanecem apenas como resquícios18. É necessário evitar a crítica vazia e fatalista e, assim, restaurar a capacidade de intervenção prática, tomando as modificações como matrizes para se pensar as possibilidades de transformação a partir das contradições colocadas na sua forma mais desenvolvida. Por isso, ao invés de tomar como dado a existência do “gorila domesticado” e fazer a pura denúncia dessa realidade, Gramsci prefere explorar os limites e contradições dessa tentativa dos industriais americanos. Dito de outra forma, o pensador italiano indicou o limite do taylorismo apontando a contradição

17 Em relação a esse aspecto, Baratta (2004) indica certo pioneirismo nesta análise de Gramsci, colocando-o

como o primeiro marxista a reconhecer os traços fundamentais da constituição da hegemonia norte-americana no século XX.

18 Com relação a esse aspecto, é bastante ilustrativo a censura de Gramsci a um crítico do americanismo:

“Siegfried, no prefácio de seu livro sobre os Estados Unidos, contrapõe ao operário taylorizado americano o artesão da indústria de luxo parisiense, como se este último fosse o tipo generalizado do trabalhador” (GRAMSCI, 2001, p. 302).

de seu “nexo essencial”, pois este seria “apenas uma frase”, visto que, apesar da tentativa dos industriais, o trabalhador continua “homem” e, por isso, podem desenvolver seus pensamentos em sentidos nada conformistas. Ao mostrar os limites da ideia de gorila domesticado, Gramsci busca as possibilidades de construção de uma hegemonia operária tomando como referência um fenômeno histórico que culmina numa hegemonia eminentemente fabril, mesmo que ainda em versão burguesa.

Deveria estar já evidente o amplo horizonte crítico com o qual Gramsci considera a “mecanização” e o conseguinte “automatismo” dos processos de trabalho determinados pelo “novo industrialismo”. Justamente desta profunda virada no processo social do trabalho ele deriva a consciência do fim sem volta do velho “humanismo” e da necessidade de conceber um “novo humanismo” estritamente ancorado à racionalidade técnica e científica (BARATTA, 2004, p. 163).

Esses apontamentos nos permitem retomar a questão da alienação e do estranhamento na análise de Gramsci. Parece-me fora de dúvida que ele reconheça o caráter alienante da dinâmica de racionalização do trabalho, basta lembrar que na passagem em que faz menção à possibilidade de “pensamentos pouco conformistas” por parte do operário “taylorizado”, Gramsci a relaciona ao “fato de que o trabalho não lhe dá satisfações imediatas” e à compreensão de que “se pretende transformá-lo num gorila domesticado”. Gramsci não deixa dúvidas, portanto, quando à sua percepção do processo de “empobrecimento” do trabalhador individual. Ela não nega, poderíamos dizer, a “condição de Sísifo” a qual está submetido o operariado industrial. Mas ele parece, de certa forma, antecipar Camus (2010), que comparou Sísifo ao proletariado moderno, mas, em seguida, anunciou que o castigo de Sísifo “só é trágico porque seu herói é consciente”. Nesse sentido, ele nos convida para imaginar Sísifo na sua volta, quando desce a montanha antes de recomeçar o martírio de subir com a pedra. Essa “pausa” é o momento da consciência em que “Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte que sua rocha”. E, assim, Camus conclui: “é preciso imaginar Sísifo feliz” (CAMUS, 2010, p. 124). Gramsci parece fazer o mesmo: reconhece a condição aviltante de quem se busca transformar em gorila domesticado, mas procura imagina-lo nos momentos em que ele se vê superior ao destino que lhe foi imposto. Como afirma Trentin,

É precisamente a consciência dessa contradição dramática entre parcelamento do trabalho e a “espiritualidade do trabalhador” que leva Gramsci a privilegiar uma

organização do trabalho fundada sobre formas de autogoverno e de “autocoerção” dos trabalhadores, legitimadas pelo objetivo de construção de uma nova sociedade, como, aliás, ele argumentava desde a época do L’Ordine Nuovo (TRENTIN, 2012, p. 268).

Ao se referir a “autocoerção”, Gramsci pensa na sociedade comunista num sentido amplo, mas ao mesmo tempo, tem em mente a experiência concreta da URSS19. E é por isso que ele desenvolve uma “polêmica aberta com todas as tentativas autoritárias de impor o parcelamento e a disciplina do trabalho operário com apoio de uma coerção ‘exterior’” (TRENTIN, 2012, p. 268). Isso se expressa na crítica à forma excessivamente coercitiva que a implementação de novos métodos de trabalho poderia tomar na URSS, como no caso da tentativa de Trotsky de formação dos “exércitos de trabalho”. É justamente sobre esta iniciativa a única referência explícita e direta à experiência soviética, quando Gramsci indica uma “excessiva e resoluta (portanto não racionalizada)” vontade de criar novos hábitos de trabalho entre os trabalhadores soviéticos. Para ele, as preocupações de Trotsky (racionalizar a produção) e o próprio princípio da coerção (direta e indireta) eram “justos”, mas a forma prática que assumiam (o modelo militar de organização do trabalho) era funesta e desembocaria necessariamente numa forma “bonapartismo” (GRAMSCI, 1984, p. 396). Em síntese, o princípio de racionalização taylorista-fordista é tratado positivamente por Gramsci, mas, numa perspectiva emancipatória, deveria ser implementada pela coerção (que no caso do Estado soviético seria “autodisciplina”), combinada também com persuasão, através da melhoria das condições de vida dos operários, formando as bases para um equilíbrio “interno”.

No entanto, é preciso também reconhecer algumas dimensões problemáticas da posição defendida por Gramsci. Isso porque, mesmo que consideremos incoerente atribuir à Gramsci uma “utopia” fundada no fenômeno americano e uma indiferença em relação aos aspectos aviltantes e alienantes do trabalho taylorizado, me parece que há um limite no que se refere ao horizonte de superação dessa condição. No que diz respeito aos processos de trabalho, a reflexão de Gramsci avança pouco no sentido de vislumbrar formatações

19 No texto, “autodisciplina” (ou autocoerção) é definida como a coerção exercida pela elite de uma classe

sobre a própria classe, numa sociedade em não há mais a coerção de uma classe superior (GRAMSCI, 1984, p. 395).

realmente novas e originais. Talvez por sua vontade, por vezes excessiva, de criticar o