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1 CRIMES HEDIONDOS: CONSIDERAÇÕES GERAIS E PRINCIPAIS

5.2 A Coisa Julgada e o papel dos Juízes da Execução

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXVI, afirma que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Estes institutos surgiram da necessidade de impedir a retroatividade das leis, obstando os seus efeitos onde há uma situação jurídica consolidada, tudo em prol da segurança jurídica, pois fere mortalmente o equilíbrio moral e material do indivíduo se, após a incorporação de um direito em seu patrimônio, houver a abrupta modificação do mesmo.

A coisa julgada era vista como um instrumento de pacificação social. Ainda que equivocada a sentença, a partir de um certo momento, deveria ela ser considerada imutável e indiscutível, sob pena de se eternizar o conflito.

Em sua definição dada por Antônio Henrique Lindemberg Baltazar59, a coisa julgada abrange os tipos material e formal:

“A coisa julgada material é a qualidade da sentença que torna imutáveis e indiscutíveis seus efeitos substanciais. Verifica-se após o trânsito em julgado da decisão, ou seja, quando há a impossibilidade de se manejar qualquer recurso. Já a coisa julgada formal ocorre quando há a impossibilidade de, no mesmo processo, voltar a ser discutida a decisão. Todavia, aquele que se encontra insatisfeito ainda poderá recorrer. Entende-se que a proteção constitucional aplica-se apenas à coisa julgada material”.

Lembrando a doutrina de Chiovenda, Alexandre Freitas Câmara60 referencia que

a coisa julgada é “a afirmação indiscutível, e obrigatória para os juízes de todos os futuros processos, duma vontade concreta de lei, que reconhece ou desconhece um bem da vida a uma das partes”. Segundo ele, existe um equilíbrio a ser estabelecido entre a segurança, gerada pela coisa julgada, e a justiça:

59BALTAZAR, Antônio Henrique Lindemberg. Uma análise do direito adquirido, do ato jurídico

perfeito e da coisa julgada e sua interpretação doutrinária e jurisprudencial. Disponível em: <http://www.vemconcursos.com>. Acesso em: 22 de maio de 2006.

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CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da Coisa Julgada Material. Disponível em: <http://www.cacofnd.org> . Acesso em: 29 de maio de 2006.

“... existe um confronto entre dois valores de grande importância para qualquer sistema processual: a segurança (representada pela coisa julgada material) e a justiça (que servirá de fundamento para as propostas de relativização da coisa julgada). (...) É o equilíbrio entre esses valores que permitirá a busca de uma solução adequada para este problema”.

Ante aos conceitos, gerou-se um questionamento com a inconstitucionalidade declarada pelo Supremo e a recente autorização da Lei 111.464/07: a coisa julgada impede a efetivação do sistema progressivo?

É fato que na doutrina há muitas discussões quanto à relativização da coisa julgada. Vejam-se duas opiniões citadas pela consultora jurídica Aline Pinheiro61, em

seu artigo à Revista Consultor Jurídico, para ilustrar essa questão. O advogado criminalista Ricardo Sayeg entende que a revisão criminal, por exemplo, é feita em qualquer momento. “A coisa julgada é relativa. Se surgirem novas provas, novos entendimentos, nova legislação, ela é absolutamente discutível. Caso contrário, criaríamos dois tipos de sentenciados: os que ainda podem pedir a progressão e os que perderam esse direito”, pondera. Já a procuradora de Justiça de São Paulo, Lúcia Casali, defende que “não há direito líquido e certo firmado sobre a possibilidade de progressão para condenados por crimes hediondos”.Para ela não há que se falar em alteração da coisa julgada. E continua: “A decisão do STF abre um precedente, mas a lei continua em vigor, e esta é a única coisa líquida e certa”.

O artigo 66 da LEP discrimina a função do juiz da execução. Observe-se o limite que se fixa para o juiz da Vara de Execução Penal, traduzido no ensino de Haroldo Caetano62:

“não cabe a aplicação do artigo 66, I, da LEP, que atribui ao juiz de execução penal a aplicação de lei mais favorável, uma vez que a decisão proferida pelo

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PINHEIRO, Aline. Juiz usa Princípio da Coisa Julgada para impedir progressão. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.estadao.com.br>.Acesso em: 29 de maio de 2006.

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Supremo Tribunal Federal não se trata de inovação legislativa. Num primeiro momento não há como se admitir a atuação do juiz de execução penal na adaptação das sentenças já proferidas ao modelo constitucionalmente aceito”. (grifo nosso)

Portanto, depois de transitada em julgado a sentença condenatória, descabe ao juiz da execução penal alterá-la de ofício; seja no concernente à pena imposta, seja quanto à forma de seu cumprimento, sob pena de incorrer em violação ao princípio da coisa julgada. Cabe-lhe a análise dos requisitos necessários à obtenção da progressão. Essa questão foi abordada inclusive, em maio do ano de 2006, na Escola de Magistratura do Estado do Ceará – ESMEC, pelo ilustre Des. Ademar Mendes Bezerra, quando em debate sobre a progressão de regimes para crimes hediondos, ponderava “que o juiz que termina por acompanhar a execução da sentença, não é o mesmo que acompanhou todo o processo em sua instrução, não tendo aquele vivência do processo e nem das partes, em suas nuances”.

Elencando-se ainda o parecer do promotor Herivelto de Almeida63, vislumbra-se

o desembaraço do conflito doutrinário, quando ele esclarece:

“não é afeto ao juiz da execução a concessão da progressão aos denominados crimes hediondos quando a sentença expressamente consignou o regime integral fechado, salvo quando motivado por habeas corpus ou revisão criminal, mesmo raciocínio que se aplica àquele beneficiado pelo regime inicial fechado na hipótese de crime hediondo, ausente recurso da acusação, ou seja, não poderá ser impedido de progredir na fase executória. (...) A competência do juiz da execução é restrita à aplicação de lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado (artigo 5.º, XL, CF/88; artigo 2.º, CP; artigo 66, I, LEP; Súmula 611, STF), poder no qual não se insere a aplicação de orientação jurisprudencial benéfica e posterior ao julgado, sob pena de ofensa à coisa julgada, até a edição da resolução pelo Senado Federal, que retiraria a norma proibitiva do ordenamento jurídico”. (grifo nosso)

Não seria dado ao juiz da execução sobrepor-se ao julgamento onde imposta determinada pena ou regime de cumprimento, pelo juiz da sentença, conforme previsão

63ALMEIDA, Herivelto de. Trecho do Parecer do 2º Promotor de Justiça em 27/03/2006. Disponível em:

legal. Logo, não cumpre àquele o poder de revisão das sentenças transitadas em julgado, sem uma motivação das partes.

Mesmo o renomado estudioso Leonardo Greco64, que inadmite a relativização da coisa julgada por entendê-la uma garantia fundamental, afirma não ser a segurança jurídica um valor absoluto, posto que “à coisa julgada se sobrepõem a vida e a liberdade do ser humano e, por tal razão, a declaração de inconstitucionalidade deve determinar a anulação de qualquer condenação criminal anterior com base na lei tida como inválida”.

Ainda que assim reconhecida como garantia constitucional, é atual a discussão, que merece aprofundamento em outro trabalho para tal fim, de que não implica afirmar que a coisa julgada seja absoluta. Alexandre Câmara retifica este entendimento:

“Nem mesmo as garantias constitucionais são imunes à relativização. E esta relativização, frise-se, pode ser inferida do sistema ou imposta até mesmo por norma infraconstitucional. Em primeiro lugar, infere-se do sistema jurídico vigente a possibilidade de relativização de garantias constitucionais como decorrência da aplicação do princípio da razoabilidade, o qual é consagrado na Constituição através do seu artigo 5º, LIV, que trata do devido processo legal. Assim é que, diante de um conflito entre valores constitucionais, está o intérprete autorizado a afastar o menos relevante para proteger o mais relevante, o que fará através da ponderação dos interesses em disputa”.

Há posicionamento de que a própria Constituição Federal, no art. 5º, XL, prevê uma espécie de relativização da coisa julgada, ao dispor que a lei penal mais benéfica possua retroatividade de modo a alcançar aquele que já tenha sido condenado e, eventualmente já esteja até cumprindo a pena, ou seja, alcançando uma sentença já transitada em julgado. Confira-se jurisprudência, anterior ao pronunciamento do STF pela progressão, nesse sentido:

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GRECO, Leonardo. Eficácia da Declaração Erga Omnes de Constitucionalidade ou Inconstitucionalidade em Relação à Coisa Julgada Anterior. Disponível em: <http://www.cacofnd.org>. Acesso em: 29 de maio de 2006.

Ementa

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME HEDIONDO. FIXAÇÃO DO REGIME INICIAL FECHADO. CONFIRMAÇÃO QUANDO DO JULGAMENTO DA APELAÇÃO. PROGRESSÃO DEFERIDA PELO JUÍZO DAS EXECUÇÕES. AGRAVO PROVIDO PELO TRIBUNAL A QUO. COISA JULGADA. VIOLAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA.

1. Ainda que não seja possível a progressão de regime nos casos de crimes hediondos, por força do disposto no artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/90, o fato é que não houve recurso por parte da acusação impugnando esse ponto da condenação, que acabou por transitar em julgado.

2. Assim sendo, o Tribunal a quo, ao dar provimento ao agravo em execução, para reformar a decisão do Juízo das Execuções que deferiu a progressão de regime permitida na sentença, violou a coisa julgada, agravando a situação da paciente, impondo-lhe evidente constrangimento ilegal.

3. Ordem concedida para reformar o acórdão proferido pelo Tribunal a quo nos autos do aludido agravo, restabelecendo os efeitos da decisão exarada pelo Juízo das Execuções, que deferiu a progressão de regime à paciente.

Acórdão. Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros José Arnaldo da Fonseca, Felix Fischer, Gilson Dipp e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator. (grifos nossos)

HC 42205/MT; Habeas Corpus, 2005/0033610-1, Dj 22.08.2005 P. 321, Relator(a) Ministro Arnaldo Esteves Lima

Constatado é que a decisão da Suprema Corte consiste em instrumento hábil à relativização da coisa julgada, em privilégio a outros também princípios constitucionais, como o da individualização da pena e o da dignidade da pessoa humana, não sendo válido o argumento de que esta impeça a progressão.