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1.2 O novo conceito de esfera pública

1.2.2 A colonização do mundo da vida

Na colonização do mundo da vida, o dinheiro é o valor instrumental de maior alcance, que funciona como um código positivo de recompensa, baseado na rentabilidade para escamotear a ausência de sentido/significação, interditar redes de comunicação e inviabilizar a racionalização e o entendimento públicos. Porém, nos âmbitos funcionais da reprodução material, o meio dinheiro substitui a comunicação lingüística na interação em que os participantes se orientam para o próprio êxito, mas precisa ser institucionalizado através dos contratos do direito privado, porque não tem suficiente confiança sistêmica.

Enquanto, no caso da linguagem, os valores reais são razões nas quais as relações internas desenvolvem uma força motivante de caráter racional, no caso do dinheiro, os valores reais são elementos físicos da situação de ação ou coisas reais, que, em relação com as oportunidades de

satisfação das necessidades, possuem uma força motivadora de caráter empírico (HABERMAS, 1988, v. 2, p. 380-381). Nas suas condições primitivas, muito antes de alcançar a capacidade de gerar um sistema, o dinheiro já era um meio circulante. O poder, por sua vez, antes de tornar-se um meio limitadamente circulante, com a sua diferenciação sob as condições modernas da dominação legal e da administração racional, aparecia em forma de autoridade ligada somente a certas posições.

À diferença do dinheiro, que se institucionaliza pelo direito de propriedade, só através de organizações que canalizem através de postos e programas o fluxo de decisões vinculantes o poder consegue tornar-se duradouro para realizar fins coletivos.

Portanto, o dinheiro necessita de uma ancoragem institucional para promover a interação desligada dos contextos do mundo da vida. O caso do poder, no entanto, exige muito mais, porque, além de precisar do respaldo de um lastro - ouro para o código convencionado do dinheiro ou meios de coerção no aparelho de Estado para caso do código que é o poder – e de fazer-se juridicamente normatizado (nos documentos comprobatórios de direitos de propriedade, no caso do dinheiro, e de possessão da titularidade de um cargo, no caso do poder), este código, para viabilizar-se como meio de controle sistêmico, carece de uma base de confiança que ultrapassa os limites destes condicionamentos esquematizados e só pode ser alcançada pela legitimação (HABERMAS, 1988, v. II, p. 387).

A confiança no sistema de poder tem que ser assegurada em um nível mais alto que a confiança no sistema do dinheiro, porque, a exemplo do que as instituições do direito privado fazem para assegurar o funcionamento do intercâmbio monetário regulado através de mercados, a organização dos cargos tem a tarefa de assegurar o exercício do poder. Porém esse exercício exige, além disso, uma antecipação de confiança, que não somente significa observância fática

das leis, senão também um sentimento de vinculação, baseado no reconhecimento de pretensões normativas de validez7.

Com relação às formas generalizadas de comunicação, como a influência e o prestígio/compromisso valorativo, Habermas salienta que não se pode convertê-las em objeto de cálculo, como se faz com os meios de controle dinheiro e poder. Também não contam com instituições, como o direito de propriedade e a organização de cargos, como o dinheiro e o poder, para a sua institucionalização. Dessa maneira, as formas generalizadas de comunicação não se prestam à tecnificação/colonização do mundo da vida, como acontece com os meios de controle sistêmicos.

A influência e o prestígio/compromisso valorativo representam certamente formas de interação, que entranham uma economia nos gastos de interpretação dos significados da comunicação e uma diminuição nos riscos de dissenso inerentes aos processos de entendimento. Mas esse efeito exonerativo é conseguido por via distinta do alcançado pelo dinheiro e pelo poder8.

As formas de comunicação generalizadas se limitam a simplificar e hierarquizar a complexidade dos contextos da ação orientada ao entendimento, pois continuam dependentes da

7 “Só a referência a fins coletivos susceptíveis de legitimação cria na relação de poder o equilíbrio com que a relação

típico-ideal de intercâmbio conta já de antemão. Porém, enquanto que no processo de intercâmbio o enjuizamento de interesse não necessita de nenhum entendimento entre os que participam nesse processo, a questão do que é ou não é do interesse geral exige um consenso entre os membros de um coletivo, mesmo se esse consenso normativo vem assegurado de antemão pela tradição que se há de iniciar através de processos de entendimento. Em ambos os casos salta à vista a vinculação à formação lingüística de um consenso, consenso que unicamente pode ter por respaldo razões potenciais” (HABERMAS, 1988, V. II, p. 388).

8 “Não podem desligar as interações do contexto que para elas representam no mundo da vida o saber cultural

compartilhado, as normas válidas e os motivos imputáveis, posto que têm que se servir dos recursos da formação lingüística do consenso. Isto explica porque não necessitam de nenhuma reconexão institucional especial com o mundo da vida. A influência e o compromisso valorativo resultam tão pouco neutrais frente à alternativa de acordo ou falta de entendimento que o que mais fazem é elevar a valor generalizado a solidariedade (adesão) e a integridade moral, quer dizer, dois casos de acordo que derivam do reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validez cognitivas e normativas” (HABERMAS, 1988, V. II, p. 395).

linguagem e do mundo da vida racionalizado, exigindo, portanto, atos ilocucionários9, que estabelecem uma relação entre falantes baseada no entendimento mútuo sobre os conteúdos comunicados. Os meios de controle dinheiro e poder, ao contrário, governam as interações através das intervenções de ego na situação de alter, quer dizer, através de atos perlocucionários, que têm objetivo estratégico dissimulado de, sub-repticiamente – infringindo a condição de sinceridade da ação comunicativa -, induzir o ouvinte a um determinado comportamento (HABERMAS, 2002a, p.179).

A despeito dessa distinção, Habermas reconhece que, quando são objeto de uma generalização posterior, a influência e o prestígio associados a certas pessoas resultam, respectivamente, em meios de controle (como o poder e o dinheiro) e em sistema de status. Nesse sentido, podem-se imaginar os desdobramentos da influência e do prestígio nos meios

de comunicação de massa, sobretudo os noticiosos, generalizando, a partir do modelo cognitivo de interpretação da realidade sempre impregnado nos critérios de noticiabilidade e na definição da agenda midiática, a forma de operar fechada que caracteriza os subsistemas funcionais.

9 Enquanto os atos ilocucionários não podem ser definidos independentemente dos meios lingüísticos do

entedimento, os atos perlocucionários estão vinculados à racionaliadde orientada a um fim com uma dinâmica extralingüística (agir estratégico): “O uso estratégico latente da linguagem vive parasitariamente do uso normal da linguagem, porque ele somente pode funcionar quando pelo menos uma das partes toma como ponto de partida que a linguagem está sendo utilizada no sentido do entendimento (...) a ação latentemente estratégica fracassa tão logo o destinatário descobre que o falante não deixou realmente de lado a sua busca de sucesso (...) No agir estratégico a constelação do agir e do falar modifica-se. Aqui as forças ilocucionárias de ligação enfraquecem; a linguagem encolhe, transformando-se num simples meio de informação (...) As condições de validade normativa foram substituídas por condições de sanção (...) No agir manifestamente estratégico os atos de fala, emasculados ilocucionariamente, perdem o papel de coordenação da ação em favor de influências externas à linguagem. (...) Ameaças são exemplos de atos de fala que desempenham uma função instrumental em contextos de agir estratégico, que perderam sua força ilocucionária e que emprestam o seu significado ilocucionário a outros contextos de aplicação, nos quais normalmente as mesmas frases são proferidas numa perspectiva de entendimento. Tais atos, que se tornam independentes de modo perlocucionário, não são realmente atos ilocucionários, pois não visam a tomada de posição racionalmente motivada de um destinatário” (HABERMAS, 1990b, p. 74-76).

E, assim, é possível identificar, na comunicação de massa, um subsistema da sociedade, da mesma maneira como são concebidos o Estado, o mercado e o direito. Noutra ocasião, chega a observar que, quando o poder social de sistemas de funções de grandes organizações, “inclusive dos meios de comunicação de massa”, se transforma em poder ilegítimo, ou quando as fontes do mundo da vida, que alimentam comunicações públicas espontâneas, não são mais suficientes para garantir uma articulação livre de interesses sociais, o fluxo do poder regulado pelo Estado de direito é anulado. Contudo, Habermas não chega a explicitar esta concepção. É Niklas Luhmann quem, em 1996, explicita a formulação dos meios de massas como um novo subsistema funcional.