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1.2 O novo conceito de esfera pública

1.2.3 O sistema da comunicação de massa

Na sua teoria de sistemas, Luhmann parte do pressuposto de que a sociedade é pura comunicação, pois assim está conformada na estrutura internalizada na subjetividade dos indivíduos pelo processo de socialização. E, como conceito social mais amplo, não esbarra em nenhum entorno; estando completamente auto-contida (auto-referenciada), não pode ser alterada por nada que esteja fora dela. A sociedade, então, é uma ordem emergente que não pode ver-se afetada por nada que está fora dela. A sociedade é o universo de todas as comunicações possíveis.

Dentro desse arcabouço da teoria de sistemas, ao distinguir consciência e comunicação, Luhmann confina a linguagem em um conceito estritamente técnico-instrumental que só se presta à generalização simbólica do sentido que a precede10.

A função da comunicação, assim, é permitir que os seres humanos tornem-se dependentes desse sistema de ordem superior através do qual podem viabilizar seus contatos recíprocos, sem que se tornem absolutamente dependentes uns dos outros. Portanto, a mídia é uma galáxia de comunicação que processa e reprocessa, de maneira peculiar, os temas, construindo um universo específico – fechado em sua operação – dos veículos de comunicação e fazendo com que as informações e representações que elabora da política, da economia, do direito, da ciência e da arte já não sejam mais política, economia, direito, ciência nem arte.

No sentido estrito da teoria de sistemas, a comunicação de massa constitui um sistema autopoiético (reproduz a si mesmo) que, não se destinando à comunicação entre presentes, não depende da interação. Portanto, os veículos de comunicação caracterizam-se como uma forma diferenciada de comunicação universal com código próprio: informável/não-informável (LUHMANN, 2000, p. 26). A binariedade deste código implica a seletividade de conformar critérios para designar o que merece ou não ser informado, o que evidencia o seu funcionamento como necessariamente uma construção da realidade11.

10 Reportando-se a Spencer Brown, a forma é concebida por Luhmann como cálculo que se auto-desenvolve em

dupla binariedade: a primeira e mais elementar consiste na distinção entre a referência a si mesma (auto-referência) e referência ao que lhe é externo (heteroreferência); e a segunda, mais complexa, supõe um código desenvolvido do qual se fixa um valor positivo e um valor negativo, excluindo-se uma terceira possibilidade. Enquanto o valor positivo identifica a possibilidade de união e operação do sistema, o valor negativo presta-se apenas na condição de reflexão do sistema (Cf. LUHMANN, 2000, p. 15).

11 Isto fica evidente, segundo Luhmann, no fato de que, embora a presunção da verdade seja indispensável ao

jornalismo, este não se orienta pelo código da verdade/falsidade (característico do sistema da ciência), mas sim pelo código informação/não-informação (Cf. LUHMANN, 2000, p. 56).

No cerne do seu livro “A realidade dos meios de massas”, Luhmann ilustra o surgimento do subsistema da comunicação de massa exatamente na diferenciação que a mídia promove ao duplicar a realidade: aquilo que os cidadãos têm por realidade porque foi tomado dos meios de comunicação, pois assim é ou parece ser a realidade para os meios de massas; e as operações reais por meio das quais o sistema se reproduz a si mesmo e se diferencia do seu entorno.

O que sabemos sobre a sociedade e ainda o que sabemos sobre o mundo adquirimos através dos meios de comunicação para as massas (...) Mas, por outra parte, sabemos tanto graças aos meios de comunicação de massa que não podemos confiar-nos a esta fonte. Defendemo-nos com decisão antepondo a suspeita de que manipulam. Com certeza, este receio não produz conseqüências notáveis, devido a que o conhecimento que provém dos meios de massas parece estar elaborado de uma textura auto-reforçada que se entrelaça a si mesma (LUHMANN, 2000, p. 1-2).

Para Luhmann, o que as pessoas têm como realidade não é nada além de um reconhecimento daquilo em que o sistema construiu, oferecendo, com êxito, provas de consistência para justificá-lo, processando internamente a realidade e a dotando de sentido (sensemaking). Entretanto, quando de maneira expressa na comunicação de massa se destaca a realidade como uma experiência “verdadeira”, deixa-se transparecer inequivocamente com esse dito que não só é possível, simultaneamente, a dúvida, mas que também é até, inclusive, adequado e conveniente duvidar (LUHMANN, 2000, p. 10).

A descrição da realidade produzida pela mídia está baseada em um marco de seleção prévio, conformado por valores e normas, mas também em outras formas de seleção, que produzem efeitos mais velados e que não se podem eludir.

Na classificação de Luhmann, os meios de massas dividem-se em três campos programáticos: notícias/reportagens, publicidade e entretenimento. Estes campos utilizam o código informação/não-informação a sua maneira diferenciando-se entre si de acordo com os critérios com os quais selecionam a informação. No campo das notícias/reportagens, pela importância de que se reveste para a construção da realidade, “os meios para as massas difundem

ignorância e, para que esta não se note, realizam-na sob a forma de fatos que devem ser permanentemente renovados” (LUHMANN, 2000, p. 39).

O efeito comum mais importante produzido pela comunicação de massa na elaboração de sua descrição da realidade, então, nessa visão sistêmica, seria que os mass media, no processamento da informação, levam à construção de um horizonte de incertezas, que deve ser alimentado sempre por mais informação. Portanto, a mídia proporciona uma contínua reatualização da auto-descrição da sociedade e de seu horizonte cognitivo do mundo, seja em sua forma consensual ou dissensual.

O esforço extremo de negar a distinção entre interação social e interação sistêmica faz Luhmann (2000, p. 148) classificar o público simplesmente como o entorno interno da sociedade e, conseqüentemente, de seus subsistemas funcionais, como é o caso da comunicação de massa. Dessa maneira, é descartada qualquer possibilidade de regulação social efetiva sobre o Estado, a economia, a mídia, o direito e os demais subsistemas.

É interessante registrar o que pode ser uma contradição de Luhmann ao ponderar que, na repercussão da inconfidência do ministro Rubem Ricupero durante a eleição presidencial de 1994, as conseqüências negativas desse fato para a candidatura governista de FHC certamente teriam sido maiores se a sociedade brasileira fosse mais desenvolvida. Será que, nesse caso, o entorno poderia crescer e engolir o fechamento operativo autopoiético do sistema?

De qualquer maneira, como denúncia da face negativa dos subsistemas, a teoria de sistemas oferece um instrumental relevante para destacar o fechamento de suas operações funcionais. Por outro lado, como observa João Pissara Esteves (2003, p. 105-106), incorre no mesmo ceticismo dos pós-modernistas de não reconhecer a viabilidade de uma ação política

racional no sentido da mudança social, a partir da crise de legitimidade e legitimação decorrente da colonização do mundo da vida pela racionalidade sistêmica.

Aparentemente concedendo um estatuto privilegiado à comunicação, vinculando-a a tudo na vida social, Luhmann, porém, utiliza o conceito de comunicação de forma altamente limitada, restrita a um entendimento puramente informacional. Assim, dentro de sua teoria de sistemas fechados, nega ao ser humano a capacidade de sujeito, mas atribui ao poder uma linguagem especializada, que substitui socialmente a própria linguagem, ao produzir generalizações simbólicas que “aliviam o processo comunicativo da linguagem, pesado, espesso e no qual se perde tempo”, evidenciando seu restrito conceito da comunicação explícita ao reduzi-la a “uma função residual inevitável” (LUHMANN, 1985, p. 31).

No Brasil, o estudo do jornalismo como sistema remonta a 1981, com o trabalho pioneiro de Edvaldo Pereira Lima (1981), que inicia essa tradição com a característica de uma teoria de sistema aberto. Assim, opta por uma estratificação ampla, abrangendo, no sistema da comunicação de massa, além das empresas jornalísticas, todas as instâncias que interferem na elaboração dos jornais, desde os fornecedores de matéria-prima até as escolas que preparam mão- de-obra para o setor. Em 1985, Rivadaneira Prada (1985) avança com a proposta de que o jornalismo como sistema aberto pressupõe a existência de um supersistema (a própria sociedade) e os outros subsistemas que configuram o entorno dos veículos de comunicação de massa.

A dificuldade de fixar as fronteiras internas e externas do jornalismo dentro da teoria de sistema leva Ronaldo Henn (2002, p. 26) a ponderar que, “apesar das condições que lhe garantem a qualidade de sistema, o jornalismo também pode ser concebido como subsistema de um sistema maior, formado pelos meios de comunicação social em geral”.

A linha de estudos do jornalismo como sistema aberto parece indicar a superação das contradições apontadas pela controvérsia estabelecida entre a teoria da ação comunicativa de Habermas e a teoria dos meios de massas como sistema fechado de Luhmann, ilustradas na distinção entre integração social e integração sistêmica e na crise de legitimação que a prevalência da razão instrumental acarreta no sistema político.