• Nenhum resultado encontrado

Diante da disposição de diálogo com as diversas correntes e teorias científicas que Habermas evidencia, vale lembrar a consideração de Barbara Freitag sobre a sua transferência do conceito de razão para um espaço de intersubjetividade, libertando-o daquela concepção, centrada no sujeito epistêmico kantiano, onde era mantido por Adorno e Horkeimer restrito ao âmbito subjetivo da Filosofia da Consciência, o que fazia esses autores permanecerem presos ao subjetivismo de entender que a razão, preexistente nos indivíduos, é que organizaria o mundo, não percebendo que, ao contrário, a organização racional dos procedimentos sociais é que cria a razão.

O autor da Teoria da Ação Comunicativa passa a conceber a razão como resultado de um processo dialógico, objetivo, construído coletivamente pelo consenso no terreno das relações sociais. No modelo habermasiano, o conceito de razão é construído em um contexto social composto por atores lingüisticamente competentes e pode ser elaborado como querido e aceito por todos. Assim, razão e verdade não podem mais ser entendidos como valores absolutos, passando a representar valores provisoriamente válidos, conforme o entendimento consensual que funciona como veredicto dos atores concernidos e envolvidos na discussão em questão (FREITAG, 1999, p. 111-112).

Também na opinião de Agnes Heller, a proposta de Habermas se constitui na melhor alternativa para solucionar o problema original que desafia a sociologia, ou seja, explicar e/ou interpretar a questão da racionalidade e da racionalização na modernidade, sob pena de não conseguir explicar ou interpretar a própria modernidade - e as suas formas de vida múltiplas e fragmentadas, impossíveis de serem compreendidas através da intuição, do puro insight; bem como de serem explicadas, seja na sociologia empírica ou no nível da vida cotidiana, sem que, em certa medida, os sujeitos sejam reificados em categorias universais.

Para Heller, a modernidade exige que as ciências sociais levem em conta tanto a racionalização quanto a racionalidade, combinando teoria de sistemas e teoria de ação, o que significa que precisam

trabalhar com categorias fetichistas (reificadas) e não podem deixar de reificar metodologicamente os atores, mas só se tornarão verdadeiras teorias se começarem a realizar esta tarefa sob orientação de um paradigma filosófico (ou metateoria) que desfetichize (ou desreifique) os sujeitos, a ação, a fala e a consciência dos seres humanos (HELLER, 1991, p. 214).

A construção metodológica dualista de Habermas, baseada na cisão histórica sistema/mundo existencial, que lhe permite diagnosticar, na modernidade, a colonização do mundo social, vem motivando uma discussão recente sobre a possibilidade de ser obscurecido o potencial real da abordagem teórico-comunicativa, em face das seduções da teoria de sistemas (HOONETH, 1999, p. 542-544).

Isso, talvez, como conseqüência da tendência que Outhwaite identifica no positivismo, para transmutar-se em formas permissíveis de convencionalismo, que pretendem o desenvolvimento de alternativas racionalistas ou realistas que salvaguardem a verdade das teorias científicas como necessariamente verdadeira, enquanto forem mais orientadas ontologicamente.

Para Outhwaite, o realismo científico, a versão mais defensável, almeja descrever a natureza e o poder causal de coisas que existem independentemente de nossas descrições delas, o que torna problemática a conexão pretendida por Habermas entre a reivindicação empírica de que ciência e tecnologia envolvem a dominação da natureza e a quase-transcendental reivindicação de que essa orientação é que estabelece o significado das demonstrações científicas sobre o mundo natural. Se o realismo se constitui numa melhor teoria de ciência, então o modelo de interesse cognitivo fica consideravelmente reduzido na sua dimensão.

A despeito da incompatibilidade das duas posições – a abordagem transcendental exclui, em última análise, qualquer coisa como verdadeira para a realidade no sentido postulado pelo realismo científico-, Outhwaite vê o quase-transcendentalismo de Habermas tornando-se cada vez menos transcendental e, assim, identifica uma forte inclinação no modelo habermasiano para absorção da proposta realista pelas ciências reconstrutivas, com a aplicação de reconstruções aonde quer que as descrições teóricas possam ser interpretadas de maneira realista (Cf. OUTHWAITE, 2000, p. 35).

Assim, Outhwuaite não considera Habermas disposto com relação à aplicação da proposta nas ciências sociais, devido à inexistência, nessas áreas, da “aparente” grande convergência de conhecimento que se verificaria nas ciências naturais e no fato de que um realismo sobre teorias científicas naturais está geralmente baseado num realismo sobre entidades postuladas por teorias. No domínio das ciências sociais, essas identificações ainda seriam necessariamente tentativas. Sem abdicar do projeto de uma interpretação realista para as ciências sociais, Outhwaite, mais recentemente, tem encontrado evidências mais nítidas de que Habermas, embora não tenha abraçado uma posição realista, tem feito assertivas de tipo realista extremamente fortes, precisamente no domínio das ciências sociais.

Para o filósofo português Boaventura de Souza Santos, emergindo numa época em que a própria sociedade apresenta-se revolucionada pela ciência, um novo paradigma científico não pode ser apenas científico, que seria o paradigma do conhecimento prudente, mas também precisa ser um paradigma social, o paradigma de uma vida decente.

Na fundamentação de sua proposta, Santos também pretende, a exemplo do realismo crítico, refutar a tradicional distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências sociais,

atribuindo-a a uma concepção mecanicista da matéria e da natureza à qual são contrapostos os conceitos de ser humano, cultura e sociedade (SANTOS, 2000, p. 37).

Assim, o novo paradigma tende a ser um tipo de conhecimento não dualista, superando distinções familiarizadas como insubstituíveis até pouco tempo, tais como “natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa” (SANTOS, 2000, p. 40).

Isso, porém, não significa um retorno ao naturalismo, mesmo que parcial, como no caso dos realistas críticos, pois não contém nenhum reconhecimento especial aos pressupostos das ciências naturais, antes, ao contrário, verifica-se, no conteúdo teórico das ciências que mais têm progredido no conhecimento da matéria, que “a emergente inteligibilidade da natureza é presidida por conceitos, teorias, metáforas e analogias das ciências sociais” (SANTOS, 2000, p. 41).

Essa tendência holística das ciências pretende superar o confronto iniciado com a própria constituição das ciências sociais, entre a vertente tradicionalmente hegemônica representada pelo positivismo, com as suas epistemologia e metodologia pretensamente as únicas merecedoras do estatuto científico, que concedia primazia às ciências naturais, e a vertente anti-positivista, que abrigava sob o seu guarda-chuva uma gama complexa de tendências filosóficas (fenomenológica, interacionista, simbólica, hermenêutica, existencialista, pragmática), todas reivindicando a especificidade do estudo da sociedade, mas incorrendo em argumentação baseada numa concepção mecanicista da natureza.

Na descrição do positivismo, são apontados o totalitarismo, com o qual se pretende monopolizador de toda a ciência e de todo conhecimento válido; o determinismo mecanicista, caracterizado pela ênfase utilitária e funcional, que tende a concentrar o esforço científico na

busca da capacidade de dominar e transformar o real, negligenciando o aprofundamento da compreensão sobre ele e se tornando cúmplice dos interesses seccionais da burguesia desde a emergência de sua hegemonia; e a aversão à reflexão filosófica.

Dessa maneira, Santos observa que a tendência do novo paradigma holístico da ciência é entender o que era considerado obstáculo e fator do atraso nas ciências sociais como condição do conhecimento em geral, tanto científico-social como, inclusive, científico-natural. E que, nesse processo, é inevitável a revalorização dos estudos humanísticos em sua característica de resistência à separação sujeito/objeto, com a opção pela compreensão do mundo, em vez de comprometer-se com a manipulação do mundo. Assim, o sujeito, lançado pela ciência moderna na “diáspora do conhecimento irracional”, é reabilitado com a responsabilidade de construir sobre si uma nova ordem científica.

A concepção humanística das ciências sociais enquanto agente catalisador da progressiva fusão das ciências naturais e ciências sociais coloca a pessoa, enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento, mas, ao contrário das humanidades tradicionais, coloca o que hoje designamos por natureza no centro da pessoa. Não há natureza humana porque toda a natureza é humana (SANTOS, 2000, p. 44).

Portanto, a distinção sujeito/objeto foi construída sobre a base de um conhecimento objetivo, factual e rigoroso, que não podia tolerar a interferência dos valores humanos ou religiosos e que, por isso, removeu, como fez com Deus, o homem como sujeito empírico, embora o tenha consagrado como sujeito epistêmico. A mecânica quântica, no domínio das ciências naturais, já havia anunciado o regresso do sujeito, ao demonstrar que o ato de conhecimento e o produto do conhecimento são inseparáveis.

Nessa perspectiva, o objeto é uma continuação do sujeito e todo conhecimento é autoconhecimento, pois a ciência não descobre (causas e leis), cria, e o ato de criação precisa ser conhecido antes de ser instrumento de conhecimento do real, o que faz com que os juízos de valor, os sistemas de crenças e os pressupostos metafísicos não se localizem nem antes, nem depois da explicação científica da natureza ou da sociedade, já que são constituintes dessa mesma explicação.

A distinção entre o conhecimento científico e o senso comum também é revista na análise de Santos. Para ele, a ciência moderna distinguiu-se desqualificando o senso comum como falso, ilusório e superficial, mas, com isso, desprezou algumas virtualidades dessa forma de conhecimento (visão de mundo pragmática assente na ação e no princípio da criatividade e da responsabilidade individuais, bem como compromissada com a transparência e o princípio da igualdade de acesso ao discurso e às competências cognitiva e lingüística), que podem enriquecer a sua relação com o mundo, com a dimensão utópica e libertadora que pode ser potencializada através do diálogo com o pensamento científico.

Na ciência moderna a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico; na ciência pós-moderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o conhecimento do senso comum. O conhecimento científico pós-moderno só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum (SANTOS, 2000, p. 57).

O autor de Um discurso sobre as ciências adota, dessa maneira, o esforço de Habermas de refutar o cientificismo identificando conhecimento válido no mundo da vida para, com isso, propor como missão, não só a tarefa de descrever a realidade, assumida pela ciência tradicional, mas, sobretudo, de transformá-la através da ética do discurso prevista pela ação comunicativa.

Segundo Santos, o conhecimento se deve traduzir em autoconhecimento, tal como o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida, para que a prudência, como insegurança assumida e controlada, possa agregar-se ao nosso esforço científico, evidenciando

preocupação similar à expressa por Popper na tese do falsificacionismo, e por Habermas na concepção radicalmente democrática de seu modelo.

Na justificação dessa insegurança, Santos observa que a prática científica não acompanha o avanço e a sofisticação da reflexão epistemológica em face da nossa divisão e fragmentação, já que a condição epistemológica da ciência reflete-se na condição existencial dos cientistas: “Afinal, se todo o conhecimento é autoconhecimento, também todo desconhecimento é autodesconhecimento” (SANTOS, 2000, p. 58).

Dentro desse contexto de convergências com o modelo habermasiano, o filósofo português também atribui, ao novo paradigma científico, a tarefa de descobrir categorias de inteligibilidade universais, para superar as fronteiras erguidas pela ciência moderna para dividir e encerrar a realidade. Assim, se poderá fazer o mundo deixar de ser dividido em natural e social para ser visto como ambos, ou um texto, um jogo, palco ou biografia, enfim, “o mundo é comunicação e, por isso, a lógica existencial da ciência pós-moderna é promover a ‘situação comunicativa’ tal como Habermas a concebe” (SANTOS, 2000, p. 45).

3 Parcialidade, manipulação e mudança social no discurso jornalístico

Atualmente, qualquer pessoa com formação média que se inicie na profissão de jornalista há de se esquecer, em dois ou três anos, o pouco que sabia no começo. Ter-se- á destruído mental e moralmente e se tornará uma pessoa indiferente e frívola, que já não acredita em nada de grande nem se esforçará por obtê-lo, dedicando-se unicamente ao poder da Camarilha (LASSALLE apud KUNCZIK, 2001, p. 13-14).

Essa declaração, que até se poderia pensar referir-se, exclusivamente, a um conceito negativo do jornalismo contemporâneo, foi proferida, em 1863, na Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, o que demonstra a preocupação que já se tinha, naquela época, com a

parcialidade e a manipulação que comprometem o discurso jornalístico com a estrutura de poder, através dos mecanismos de controle sistêmicos. A crítica contida nessa afirmação, assim, parece ainda refletir o fato de o jornalismo, apesar de ter surgido alguns séculos antes, só vir a despertar o interesse das universidades no século XIX37.

No 1º Congresso da Sociedade Alemã de Sociologia, em 1910, Max Weber propôs o desenvolvimento de uma “sociologia do setor dos jornais”, advogando o reconhecimento da importância estratégica dessa área como um comércio capitalista de propriedade privada em que se evidenciava, de forma crescente, o problema da concentração, devido à necessidade cada vez maior de capital. Weber questionava a respeito de como a imprensa consegue o material que passa para o público, ou seja, sobre os critérios utilizados para definição do que é notícia entre os acontecimentos disponíveis para divulgação, bem como quanto à escolha das fontes dos eventos alçados à condição de merecedores de chegar ao conhecimento público38.

Portanto, o objetivo deste capítulo não é abordar as reflexões destinadas a enfrentar os desafios colocados pelo advento da sociedade de massa (sociologia da comunicação), que estavam no âmago mesmo das motivações dos fundadores da sociologia. Nosso intuito especial é (1) procurar entender as concepções específicas sobre a mídia noticiosa (sociologia do jornalismo) e a sua capacidade - ou incapacidade - de produzir efeitos na sociedade, bem como as relações de poder envolvidas no embate pelo controle do campo jornalístico.

37 Segundo Nelson Traquina (2001, p. 52), “foi apenas no século XIX que o jornalismo começou a ganhar um

pequeno lugar na universidade, nomeadamente nos Estados Unidos e na França; já no século XX, as (poucas) disciplinas foram substituídas por um número impressionante de cursos universitários em jornalismo (e em comunicação) ao nível do bacharelado e ao nível da pós-graduação (mestrado e doutorado), que cresceu em quase todo o mundo, em particular a partir dos anos 80. Há mais de setenta anos que existem programas de mestrado e doutoramento em jornalismo”.

38 De acordo com KUNCZIK (2001, P. 20-21), neste evento, três perguntas foram atribuídas a Weber: “(1) Quais

são as conseqüências do esforço para obter lucros derivados da forma de organização da empresa capitalista? (2) A necessidade crescente de capital conduz à monopolização? E isto, por sua vez, (3) produz consórcio de jornais?”

Em seguida, (2) há a exposição e crítica das teorias da notícia como espelho da realidade, da ação pessoal (Gatekeeper), organizacional, e da ação política. Finalmente, são apresentadas (3) as teorias etnoconstrucionista (News Making) e estruturalista, que compõem o paradigma da notícia como construção, as convergências teóricas das novas abordagens, fundadas a partir da "guinada lingüística" e a relação entre o discurso jornalístico e a mudança social.