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1.1 O contexto da esfera pública e o jornalismo

1.1.1 Esfera pública, origem e características

Pode-se identificar, nas condições que possibilitaram o surgimento da esfera pública, como decorrência da expansão do capitalismo financeiro e mercantil primitivo - dos primeiros depósitos, passando pelas grandes feiras periódicas até a consolidação das grandes cidades comerciais como centros de troca de informações -, o desenvolvimento de uma ampla rede horizontal de dependências econômicas, que não se conformam mais nas relações verticais, estabelecidas na economia doméstica fechada da velha ordem feudal.

Assim, mais ou menos contemporâneos às bolsas, surgem o correio e a imprensa, que institucionalizam canais permanentes de comunicação. Contudo, Habermas ressalva que, da mesma maneira que só se pode falar de correio quando a possibilidade de transporte regular de cartas torna-se acessível ao público em geral, também só se deve reconhecer rigorosamente a existência da imprensa quando a transmissão regular de informações passa a ser uma possibilidade pública, ou seja, também acessível ao público em geral. Portanto, para ele, os significados dessas duas instituições estão essencialmente vinculados ao advento do decisivo elemento da publicidade3.

2 Para Leonardo Avritzer, o enfrentamento central da modernidade, decisivo para determinação da capacidade de

sobrevivência de formas de comunicação e interação que originaram os mais expressivos movimentos sociais modernos, dá-se na intersecção das estruturas interativas do mundo da vida com os subsistemas funcionais (Cf. AVRITZER, 1996, p. 18).

3 Para fazer frente à redução de representatividade provocada pela mediação dos senhores feudais às decisões das

autoridades estamentais, é objetivada a esfera do poder público, através da atividade estatal continuada, baseada na administração e no exército permanentes, mas sobretudo respaldada na permanência dos contatos de intercâmbio de

Pode-se verificar, na tese de livre docência de Habermas (Mudança estrutural da esfera pública), a identificação do advento de cada um dos lados da atual dupla face do jornalismo em distintos momentos históricos. Inicialmente, para viabilização do mercado com a transformação do valor de uso dos produtos em valor de troca das mercadorias. Para isso, foi necessário não só um sistema de troca de produtos, mas também um sistema de troca de informações, capaz de subsidiar, referenciar e lastrear a fixação dos preços das mercadorias através da especulação sobre a oferta e procura dos bens e serviços.

Com a reestruturação promovida pelo capitalismo mercantilista, toma corpo o segundo elemento do sistema de trocas pré-capitalista, a imprensa, como “uma peculiar força explosiva”. Esse fato se deu aos poucos, à proporção que a notícia também vai se transformando em mercadoria, e não só pelo interesse particular dos “escribas dos boletins” ou por pressões exercidas pelo “público” dos periódicos. Inicialmente, os primeiros jornais diários, chamados “políticos”, não refletiam esse potencial devido à censura oficial das administrações e extra- oficial dos grandes comerciantes, que filtrava o grande fluxo de informações contido nas correspondências privadas, onde se relatava amplo noticiário de assembléias parlamentares, guerras, resultados de colheitas, impostos e comércio.

Nesse filtro passavam, essencialmente, informações menos importantes do comércio, da corte e do estrangeiro, além do repertório de “novidades”, herdado dos folhetins: “as curas miraculosas e os dilúvios, os assassinatos, epidemias e incêndios. Assim, as informações que chegam à publicação pertencem ao rebotalho do material noticioso em si disponível (HABERMAS, 1984, p. 34 - 35).

mercadorias e notícias (bolsa e imprensa). Com isso, “público” deixa de fazer referência à corte e à autoridade de uma pessoa para reportar-se “ao funcionamento regulamentado, de acordo com competências, de um aparelho munido do monopólio da utilização legítima da força” (AVRITZER, 1996, p. 32).

Essa atividade especulativa vivenciou um fantástico incremento devido à exploração das colônias e utilização dos inventos científicos como tecnologia na produção das oficinas e, posteriormente, corporações de ofícios e primeiras unidades fabris.

Dentro desse novo contexto de vertiginoso crescimento dos negócios e da economia de uma maneira geral, o jornalismo, como sistema de troca de informações de acesso geral, além de se constituir em componente essencial na formação do mercado, igualmente foi instrumento de viabilização e consolidação de outra instituição imprescindível para o surgimento da sociedade moderna: o aparelho de estado burocrático e policial-militar permanente.

Assim, a despeito de sua utilização para adequar e ajustar a interação do Estado com a população nos ritmos da emergente economia capitalista mercantilista burguesa, a imprensa, desde o início, também despertou os temores das cortes e dos monarcas, pelo seu potencial ameaçador com relação à preservação das estruturas do poder teocrático, ao tornar as decisões administrativas do governo um assunto de interesse geral, formando uma esfera pública, onde se passou a produzir algo como um discernimento ou uma racionalização pública sobre as questões políticas, econômicas e sociais.

Portanto, desde o início, o Estado evidenciou-se ciente da sistemática utilidade e até necessidade da imprensa para a administração, mas também da potencial ameaça que esta pode representar para a preservação do seu poder. São inúmeros e incontáveis os exemplos de esforços para controlá-la através da censura (HABERMAS, 1984, p. 36). Contudo, a autoridade dirige a sua comunicação a um público culto, que lê, constituído basicamente da camada burguesa atingida e interpelada pela política mercantilista, sobre a qual provoca tamanha repercussão que

o publicum, o correlato abstrato do poder público, acaba por revelar-se conscientemente como um antagonista, como o público da esfera pública que então nascia. Ela, enquanto tal, desenvolve-se especialmente à medida que o interesse público na esfera privada da sociedade burguesa não é mais percebido apenas pela autoridade, mas também é levada

em consideração pelos súditos como sendo sua esfera própria (HABERMAS, 1984, p. 38).

E este componente crítico de um público pensante é constituído em função das intervenções públicas e dos preços das taxas e impostos, que incidem sobre a economia doméstica privatizada, cuja reprodução da vida passa a depender sobretudo da esfera onde é definido o interesse público, através da imprensa, instrumento utilizado pela administração para tornar a sociedade uma coisa pública, em sentido estrito.

Convocados pelos senhores feudais, os intelectuais burgueses transmitiam ao público, através da imprensa, idéias e informações sobre descobertas que pudessem ser aplicadas. Logo, as idéias formuladas passaram a expressar os interesses burgueses, voltando-se contra aqueles que as haviam encomendado. Para deter essa ameaça, as autoridades tentaram impor a proibição de veiculação, pela imprensa, de juízos sobre as decisões e atos governamentais e até desautorizar qualquer pessoa privada como incapaz de julgá-los, por entender que lhe falta o conhecimento completo das circunstâncias e dos motivos, formulando a, ainda hoje forte, doutrina do segredo de Estado.

Assim, essas opiniões que se pretendia sufocar são consideradas juízos “públicos”, dentro do contexto de uma esfera pública que, certamente, era anteriormente entendida como monopólio do poder público, mas que, então, passava também a ser apropriada como o fórum para onde se dirigiam os cidadãos com o intuito de constranger o poder público numa situação nova de fragilidade social, na qual precisaria legitimar a sua posição perante a opinião pública.

Dessa maneira, a esfera pública burguesa, regulamentada pela autoridade, passa a ser reivindicada pelas pessoas privadas, constituídas por ela como seu público, para dirigi-la contra a própria autoridade, a fim de exigir a discussão política das questões de interesse coletivo,

construindo, de forma inusitada sem precedente na história, uma lógica administrativa caracterizada pela “racionalização pública”.

Instituição por excelência da opinião pública, o jornalismo conseguiu, com o tempo, dobrar as resistências do antigo regime e afirmá-la como expressão da vontade geral e, por isso, fonte única e exclusiva das leis do Estado de direito democrático. Portanto, foi a partir do poder simbólico- comunicativo exercido pela imprensa que os monarcas passaram a ser obrigados a comparecer ao tribunal da opinião pública (“fórum do público”) para justificar seus atos e omissões sob pena de ter que revisá-los, caso não obtivessem o consentimento da maioria. Portanto, o jornalismo conquistou a posição de artífice da publicidade crítica, que suplantou a política do segredo, característica da monarquia absolutista, e possibilitou a racionalização publica, geradora da sociedade moderna.