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2.2 As representações sociais na sociologia contemporânea

2.2.3 O poder e o inconsciente

Nessa linha, também se pode identificar Michel Foucault, a quem deve ser atribuído o mérito da revelação dos dispositivos de segurança colocados em funcionamento pelos círculos concêntricos de poderes, que invadiram o inconsciente com o discurso psicológico, ajustando o

26 Poderes estes, que, segundo Bourdieu, só existem “numa representação e pela representação, na confiança e pela

confiança, na crença e pela crença, na obediência e pela obediência (...) É um poder que existe porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe (...) Ele (o homem político) retira o seu poder propriamente mágico sobre o grupo da fé na representação que ele dá ao grupo e que é uma representação do próprio grupo e da sua relação com os outros grupos (...) seu capital específico é um puro valor fiduciário que depende da representação” (Ibid., p. 187).

indivíduo às circunstâncias altamente complexas de manutenção de controle e domínio exigidas pela modernidade na sociedade industrial de massas. Nesse contexto, uma das teses da genealogia é a de que “o poder é produtor da individualidade. O indivíduo é uma produção do poder e do saber” (MACHADO, 1984, p. XIX).

O avanço dos poderes é denunciado nas suas relações com o sexo e o prazer, que se ramificam e se multiplicam através do isolamento e da intensificação das sexualidades periféricas, penetrando nas condutas. Houve uma concentração analítica do prazer e a majoração do poder que o controla, pois “prazer e poder não se anulam; não se voltam um contra o outro; seguem-se, entrelaçam-se e se relançam. Encadeiam-se através de mecanismos complexos e positivos, de excitação e incitação” (FOUCAULT, 1985, p. 48).

Portanto, a invasão dos mecanismos de controle até sobre o inconsciente dos indivíduos nas sociedades industriais modernas não deve ser entendida como recrudescimento da repressão específica contra o sexo, antes o contrário: “nunca tantos contatos e vínculos circulares, nunca tantos focos onde estimular a intensidade dos prazeres e a obstinação dos poderes para se disseminarem mais além” (FOUCAULT, 1985, p. 40). Com isso, “a própria representação se modifica ao nível mais profundo de seu regime arqueológico” (FOUCAULT, 1999, p. 320).

A representação do poder não pode ser mais codificada pelo jurídico, em face aos novos procedimentos de poder, que funcionam pela técnica, pela normalização e pelo controle e não pelo direito, pela lei e pelo castigo, sendo exercidos em níveis e formas que estão além do aparelho de Estado27.

27 Assim, poder não é o conjunto de instituições, aparelhos e regras que garantem sujeição ao Estado, pois deve ser

compreendido na seguinte ordem: “primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se

A dicotomia dominantes/dominados também é questionada por Foucault, que apresenta a exótica proposição de que “o poder vem de baixo”, supondo que

as correlações de forças múltiplas que se formam e atuam nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e instituições, servem de suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social. Estes formam, então, uma linha de força geral que atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si; evidentemente, em troca, procedem as redistribuições, alinhamentos, homogeneizações, arranjos de série, convergências desses afrontamentos locais (FOUCAULT, 1999 p. 88) 28.

Ao entender a verdade como o conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados, Foucault assume uma postura contrária ao racionalismo, ou mesmo irracionalista, negando, categoricamente, qualquer possibilidade de uma verdade universal.

Dessa maneira, considera a verdade circularmente ligada a sistemas de poder e até um produto destes. Portanto,

não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder - o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder - mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento. Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade” (FOUCAULT, 1984, p. 14).

A verdade, produzida por múltiplas coerções, é deste mundo e nele produz efeitos regulamentados de poder. Assim, a desvinculação do poder da verdade das hegemonias estabelecidas significa a investidura de novos sistemas de domínio, com o que pretende refutar, de forma absoluta, o ideal iluminista de superação das tutelas para a conquista da autonomia.

É nesse contexto da crítica de Foucault à modernidade que Habermas vai contrapor o argumento de que esta ainda deve ser entendida como um projeto inacabado, considerando que as

originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais” (FOUCAULT, 1985, p. 87).

suas utopias não foram traídas, mas apenas ainda não alcançadas, uma vez que continuam se constituindo na grande promessa de emancipação da espécie. Nesse ponto, Renato Ortiz acrescenta a observação de que "a modernidade é, inevitavelmente, um 'projeto inacabado'", por entender que ela sempre "está em contradição com a situação concreta na qual se erige, mas que ao mesmo tempo se contrapõe" (ORTIZ, 2001, p. 208).

Em trabalho posterior (O discurso filosófico da modernidade), Habermas vai se dirigir no sentido proposto por Ortiz, seguindo considerações de Baudelaire, acentuando o caráter transitório e efêmero da modernidade, que tem como ponto de referência "uma atualidade que se consome a si mesma" (HABERMAS, 2000, p. 14-15).

Para o filósofo alemão, Foucault utiliza um conceito de poder, com o intuito de oferecer o denominador comum para os componentes de significados contrários, retirados do repertório da própria filosofia da consciência, na qual o sujeito só pode encetar, nas relações com o mundo de objetos representáveis e manipuláveis, relações cognitivas, reguladas pela verdade dos juízos, e relações práticas, reguladas pelo sucesso das ações. Nessa concepção de que o Poder é aquilo que o sujeito exerce sobre objetos em ações bem-sucedidas, o êxito da ação depende da verdade dos juízos que entram no plano de ação. E, assim, através do critério do sucesso da ação, o poder permanece dependente da verdade, mesmo que “Foucault inverta completamente essa dependência do poder em relação à verdade em uma dependência da verdade em relação ao poder. Conseqüentemente, o poder fundante não precisa mais estar vinculado às competências dos sujeitos que agem e atuam: o poder torna-se sem sujeito” (HABERMAS, 2000, p. 385).

Além disso, Habermas acusa Foucault de incorrer numa contradição performativa, quando considera que a razão e a verdade, sempre construídas intersubjetivamente através da crítica de

pretensões de validade, representam apenas reflexos diretos do poder, haja vista que o pensador francês também se utiliza de argumentos com pretensões de validade racional, na tentativa de justificar “racionalmente” sua crítica às ciências humanas (HABERMAS, 2000, p. 391).

É a partir dessa intransponível permanência do poder, da negação absoluta da possibilidade de sua superação ou transcendência, implicando a submissão total da verdade e da razão à coerção do poder, que Jean Baudrillard vai basear sua observação de que “o discurso de Foucault é um espelho dos poderes que ele descreve” (BAUDRILLARD, 1984, p. 13).