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1.1 O contexto da esfera pública e o jornalismo

1.1.2 Publicidade e Segredo

A divisão entre Estado e sociedade passa a demarcar também a separação do setor privado da esfera pública, garantida pelo princípio da publicidade inerente à opinião pública, ao contrário da situação anterior quando a política do segredo propiciava a autonomização da corte e do estamento dominante de qualquer pressão social. Assim, nos cafés, salões e associações, desenvolvia-se um tipo de sociabilidade burguesa em que prevalecia, em oposição à convenção cortesã, algo como a igualdade de status, ilustrada pelo conceito do “meramente humano”. Nesse estilo de polidez burguês, não vigorava mais o poder, e até as relações de dependência econômica, em princípio, deveriam ser suspensas, anulando as diferenças provenientes tanto das leis do Estado quanto das do mercado. Entretanto, Habermas adverte que não se deve crer que,

nesses espaços, a concepção de público tenha sido efetivamente concretizada, mas, neles, “ela foi institucionalizada enquanto idéia e, com isso, colocada como reivindicação objetiva e, nessa medida, ainda que não tenha se tornado realidade, foi, no entanto, eficaz” (HABERMAS, 1984, p. 51). Com esses padrões de convivência, os freqüentadores dos cafés foram aumentando progressivamente até que o círculo multiforme por eles constituído não poderia mais manter sua coesão senão através do jornal, cujos artigos eram não só objeto de discussão como também apreendidos como parte constitutiva desse público, conferindo um caráter literário a essa esfera pública.4 Este espaço público literário é entendido por Habermas como origem do processo em que os indivíduos se conscientizam da força que representam como público, refuncionalizando o vínculo de coesão de literário em político, quando passam a utilizar a esfera pública, antes dominada pela autoridade, através da crítica exercida contra o Estado, com sua reivindicação de substituição da prática do segredo pela da publicidade, afirmando a opinião pública como única fonte legítima de leis genéricas e abstratas.

A efetividade prática desse princípio da universalidade jurídica, característica do Estado de Direito Burguês, é questionada por Habermas na constatação de que “a esfera pública burguesa desenvolvida baseia-se na identidade fictícia das pessoas privadas reunidas num público em seus duplos papéis de proprietários e de meros seres humanos” (HABERMAS, 1984, p. 51). Tal coincidência de papéis, porém, no seu entendimento, só aconteceria se as condições

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“...clubes do livro, círculos de leitura, edições por subscrição, brotam por todo lado e, numa época em que, como na Inglaterra depois de 1750, a circulação dos diários e hebdomadários também é duplicada em menos de um quarto de século, a leitura de romances torna-se hábito nas camadas burguesas. Estas constituem o público que, daquelas antigas instituições dos cafés, dos salões, das comunidades de comensais, há muito já se emancipou e agora é mantido reunido através da instância mediadora da imprensa e de sua crítica profissional. Constituem a esfera pública de uma argumentação literária, em que a subjetividade oriunda da intimidade pequeno-familiar se comunica consigo mesma para se entender a si própria” (HABERMAS, 1984, p. 68).

econômicas e sociais possibilitassem as mesmas chances a todos de preencherem os critérios de acesso à esfera pública: propriedade e formação educacional.

Sem a concretização dessas promessas, até a metade do século XIX, no entanto, o modelo liberal ainda era suficientemente verossímil para confundir o interesse da classe burguesa com o interesse geral e legitimar, naquela fase do capitalismo, a dimensão pública do Estado de Direito Burguês. Afinal, como ironiza Habermas, se todos, como podia parecer, tinham a possibilidade de se tornar um cidadão burguês, “então só burgueses deveriam também poder ter acesso à esfera pública politicamente atuante, sem que, por isso, estes perdessem o seu princípio” (HABERMAS, 1984, p. 107).

Nesse sentido, faz-se necessário salientar que o argumento universal insere-se num momento histórico de luta político-ideológica da burguesia para sobrepor-se à lógica do antigo regime, ilustrado pela participação do público em conflitos para superação da censura prévia imposta à imprensa, como forma de transformá-la em instrumento contra o Estado, que se ressentia dessa ameaça e considerava os cafés “focos de agitação política”. Vencida a censura prévia, são institucionalizados os comentários críticos às medidas da Coroa e deliberações do Parlamento que “modificam a natureza do poder público, chamado agora perante o fórum do público. Através disso, o poder torna-se “público” em duplo sentido. O grau de desenvolvimento da sociedade mede-se daí por diante pelo grau de discussão entre Estado e imprensa” (HABERMAS, 1984, p. 76-79).

Nesse contexto, pode-se verificar que a cultura burguesa não se reduzia à mera ideologia, porque o raciocínio das pessoas não estava subordinado ao ciclo da produção e do consumo. A distinção, no setor privado, entre o proprietário e a pessoa natural separava os negócios particulares, de um lado, daquela sociabilidade que vinculava os integrantes do público, por

outro. Essa fronteira é apagada à medida que a esfera pública literária avança no âmbito do consumo, pois se a esfera reservada às pessoas privadas enquanto público também é penetrada pelas leis de mercado, que dominam a esfera do intercâmbio de mercadorias e do trabalho social, “o raciocínio tende a se converter em consumo e o contexto da comunicação política se dissolve nos atos estereotipados da recepção isolada” (HABERMAS, 1984, p. 193)5.

Com o fim das associações, clubes e sociedades, o conceito de “dever social” esvaziou-se nas novas formas de convívio social que compartilham, apesar de sua multiplicidade, uma abstinência quase completa quanto ao raciocínio literário e político.

Ao distinguir a cultura como algo que exercita o espírito, Habermas observa que a cultura de massa, ao contrário, não só não acumula, como faz regredir. O mundo criado pelos mídias só aparentemente ainda é esfera pública. O sensacionalismo é parte essencial do modelo dos meios de comunicação de massa e torna ilusória a integridade da esfera privada, pois passa a ser o espaço “onde se publicam biografias privadas” e as decisões públicas relevantes são deformadas pela personificação, culminando em sentimentalismo, com relação a pessoas, e cinismo, em relação a instituições6.

5 A partir do século XX, as intervenções estatais na esfera privada evidenciam a capacidade das grandes massas de

transformar os antagonismos econômicos em conflitos políticos, embora estas medidas satisfaçam, em parte, os interesses dos mais fracos economicamente, também se prestam para a sua neutralização, tendo em vista que preservam o equilíbrio do sistema que não podia mais ser mantido pelo livre mercado. Este papel do Estado da social-democracia expressa ainda uma compensação sócio-política pela quase extinção da base de influencia da esfera íntima da familia, pois, além das ajudas materiais de rendimentos, são atingidas as funções existenciais, como as de criação e educação dos filhos, proteção, ou seja, funções elementares de tradição e orientação.

6 A discussão, inclusive, passa a ser ela própria bem de consumo, onde o raciocínio público transforma-se em

atrações nos programas do rádio e da televisão. Assim, “incluída no negócio, formaliza-se; posição e contraposição estão de antemão sujeitas a certas regras de apresentação: o consenso no procedimento. Colocações de problemas são definidas como questões de etiqueta; conflitos, que uma vez já eram descarregados em polêmica pública, são desviados para o nível dos atritos pessoais. O uso da razão arranjado desse jeito preenche, por certo, importantes funções sócio-políticas, sobretudo a de um aquietador substitutivo da ação; a sua função ‘jornalística’ se perde, contudo, cada vez mais” (HABERMAS, 1984, p. 194-195).

A “cultura” processada pelos meios de comunicação de massa é uma cultura de integração, que envolve, em sua esfera, não só a informação e o raciocínio, como também assume funções de propaganda, influindo “política e economicamente, tanto mais apolítica ela se torna no todo e tanto mais aparenta estar privatizada” (HABERMAS, 1984, p. 208). Essa refuncionalização da esfera pública está vinculada à evolução da “sua instituição por excelência: a imprensa”, que, através de sua comercialização, acaba com a diferenciação entre circulação de mercadorias e de informações, entre esfera privada e esfera pública.

Com a legalização de uma esfera pública politicamente ativa e a consolidação do Estado de Direito burguês, as pressões sobre a imprensa são aliviadas e esta vai abandonando sua posição polêmica e se tornando manipulável à proporção que se comercializa. Enquanto não se transformou num instrumento da cultura consumista, a imprensa funcionou como uma espécie de mediador e potencializador da esfera pública de cuja politização originou seu desenvolvimento.

À medida em que vai se convertendo em empreendimento capitalista, a imprensa, paulatinamente, vai caindo sob a influência de interesses estranhos à empresa jornalística, “desde que a venda da parte redacional está em correlação com a venda da parte de anúncios”, o que a torna de instituição de pessoas privadas enquanto público em “instituição de determinados membros do público enquanto pessoas privadas – ou seja, pórtico de entrada de privilegiados interesses privados na esfera pública” (HABERMAS, 1984, p. 217-218).

O lado negativo da dupla face do jornalismo começa a se evidenciar com a sua mercantilização, com a transformação dos jornais em empresas e as notícias em mercadorias. As organizações empresariais jornalísticas passam a apresentar uma segmentação em duas áreas distintas, a direção da empresa e a redação, com lógica, princípios e critérios diversos, que implicam tensões e conflitos geralmente resolvidos em função dos interesses pecuniários (muitas

vezes, extremamente imediatistas e deslocados da realidade específica desse tipo de negócio altamente dependente da credibilidade pública) dos que respondem pelo investimento de capital dessa atividade econômica.

Evidentemente que o papel nefasto do jornalismo disseminador da cultura consumista e manipulador da opinião e do consenso não teve a mesma dimensão desde o advento de sua refuncionalização, quando a esfera pública torna-se politicamente ativa, como instrumento de poder objetivando a hegemonia das idéias da emergente classe burguesa. Essa tendência foi avolumando-se paulatinamente à proporção que o novo modo de produção consolidava-se, na sociedade urbano-industrial, e vem se tornando cada vez mais complexa na modernidade tardia.

Essa mudança estrutural da imprensa, que reflete as tendências gerais do capitalismo de concentração e centralização, bem como o desenvolvimento técnico dos meios de transmissão de notícias, foi incrementada de forma fantástica com o surgimento das novas mídias do século XX. Diante da evidência da crescente necessidade de capital exigido neste novo estágio e da enorme dimensão da ameaça do poder jornalístico-publicitário, alguns países impuseram o controle estatal como forma de evitar a cartelização econômica da imprensa e deter a metamorfose da esfera pública em meio de propaganda.