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A complexa relação entre Estado e sociedade

2.2 RELAÇÃO ESTADO-SOCIEDADE E A LUTA POR DENTRO DO SISTEMA

2.2.2 A complexa relação entre Estado e sociedade

Se na contemporaneidade permanece a diferenciação entre os dois conceitos – sociedade civil e Estado – não é possível desconsiderar as relações entre essas instâncias, sobretudo quando se trata dos processos de democratização. A valorização do potencial democratizador da sociedade civil e o consenso em torno dessas contribuições foram constatados por Gohn (2005) e Dagnino, Olvera e Panfichi (2006). Esses autores apontam a necessidade de considerar de modo criterioso diversos aspectos relacionados à sociedade civil e ao Estado nas investigações sobre o processo de democratização na América Latina nos últimos anos, questões que são aqui levadas em consideração.

Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) recomendam como necessário o reconhecimento da heterogeneidade tanto da sociedade civil3 quanto do Estado4, que não devem ser tratados como atores unificados, segundo ressaltam. Os autores também se mostram insatisfeitos com tendências analíticas caracterizadas por um tratamento que isola a sociedade civil da sociedade política, estabelecendo uma dicotomia entre elas e ignorando suas relações. Eles acreditam que, com todas as suas diferenças, sociedade civil e sociedade política, em sua heterogeneidade interna, estão atravessadas por

3A noção de heterogeneidade da sociedade civil, segundo Dagnino, Olvera e Panfichi (2006, p. 28),

descreve a diferenciação interna existente em termos de atores sociais, formas de ação coletiva, teleologia da ação, construção identitária e projetos políticos. Isso ajuda a compreender, como ressaltam, que no interior da sociedade civil coexistem os mais diversos atores, tipos de práticas e projetos, além de formas variadas de relação com o Estado. Eles afirmam que essa heterogeneidade, inclusive, na América Latina, foi, em alguns casos, incentivada por políticas estatais dirigidas para atender seletivamente interesses ou demandas específicas, em lugar de promover e garantir o acesso a direitos gerais. A proliferação de ONGs é outro resultado da ação do Estado no sentido de estimular a reconfiguração da sociedade civil, Em alguns países da América Latina, afirmam os autores, essas organizações tiveram papeis atribuídos pelo Estado na implementação de políticas neoliberais.

4 A coexistência de instituições fundadas em princípios organizacionais distintos caracteriza uma forma

de heterogeneidade do Estado, segundo Dagnino, Olvera e Panfichi (2006). É preciso considerar ainda os diversos níveis de governo (federal, estadual, municipal, nos países federais, e provincial, regional e ou local nos demais). Em alguns países da América Latina, há espaços de pluralidade política e de experimentação democrática em alguns níveis de governo, permanece preservado o poder das elites locais, de acordo com os autores. A heterogeneidade do Estado manifesta-se também nos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Na América Latina, a necessidade de formar governos de coalizão para assegurar a governabilidade também conduz à heterogeneidade de projetos políticos no interior do Estado.

projetos políticos que constituem um terreno das relações entre elas. Uma terceira preocupação dos autores está relacionada ao que consideram uma concepção simplista do processo de construção democrática, baseada em uma visão apologética da sociedade civil. Por essa concepção, a sociedade civil seria considerada “como pólo de virtudes democratizantes, sua participação e seu poder de influência frente ao Estado e aos partidos constituiriam o eixo da construção democrática e concentrariam o peso explicativo das características que esta assume” (DAGNINO, OLVERA e PANFICHI, 2006, p.16). Contra essa tendência, eles ponderam que o reconhecimento da existência de diferentes projetos no interior mesmo da sociedade civil e sua identificação cuidadosa podem apontar para uma visão mais complexa e realista do processo.

Em primeiro lugar, esses procedimentos evitariam a concepção maniqueísta que considera a sociedade civil como o demiurgo do aprofundamento democrático e a sociedade política, o Estado especialmente, como a “encarnação do mal”, na medida em que evidenciariam a presença tanto de projetos democratizantes como de cunho autoritário, em seus vários matizes, em ambos os espaços. Em segundo lugar e como consequência, o processo de construção democrática poderia então ser considerado o resultado de um intrincado jogo de forças em disputa, que se trava nas mais diversas arenas e que inclui uma gama muito diferenciada de atores, em lugar de ter seu terreno reduzido ao do conflito entre sociedade civil e Estado, no qual a primeira, em sua suposta capacidade inerente de confrontar o impulso autoritário, também inerente do Estado, é convertida na responsável única dos avanços democráticos (DAGNINO, OLVERA E PANFICHI, 2006, p. 16).

Como afirma Bresser Pereira (1999), o problema da relação entre o Estado e a sociedade torna-se central para a sociologia e a ciência política desde o momento em que surge o Estado moderno. A passagem para as formas capitalistas de produção representou uma mudança importante, exigindo a afirmação do Estado perante a sociedade ou desta sobre o Estado, quando a esfera pública começou a se distinguir da esfera privada e o mercado se tornou o mecanismo institucional básico de coordenação econômica e de apropriação do excedente de produção. Quando essa separação torna-se clara, afirma o autor, o primeiro problema que surge é o da construção e consolidação do Estado nacional ante uma sociedade fragmentada e oligárquica.

Esta foi uma luta que durou séculos na Europa, e nos países em desenvolvimento só terminou neste século. Nesse processo, temos, em um primeiro momento, a luta de uma burguesia liberal contra a aristocracia e, em um segundo, a da burocracia socialista contra a burguesia. Enquanto essas duas lutas se travavam sem vitoriosos e vitoriosos tão nítidos quanto muitos esperaram, no nível da sociedade, uma sociedade civil se afirmava perante o

Estado e, no nível do Estado, os regimes autoritários eram substituídos por regimes democráticos (BRESSER PEREIRA, 1999, p. 67).

Para Bresser Pereira, na medida em que os sistemas econômicos e sociais tornam-se historicamente cada vez mais complexos e os sistemas políticos cada vez mais democráticos, a ideia de agentes políticos autônomos da sociedade, localizados dentro do próprio Estado perde legitimidade e poder explicativo. Isso porque, no regime democrático, em princípio, o ator deveria ser a sociedade em geral, ou sua expressão política abstrata, o povo, o demos, o conjunto dos cidadãos com direitos iguais. O que acontece na realidade, segundo o autor, é que a sociedade civil é quem desempenha esse papel. Por sociedade civil ele entende a sociedade que, fora do Estado, é politicamente organizada, e o poder que nela reside é o resultado ponderado dos poderes econômico, intelectual e principalmente organizacional que seus membros detêm. E a sociedade assim estruturada na forma de sociedade civil passa a ser o ator fundamental que, nas democracias contemporâneas promove, de um modo ou de outro, as reformas institucionais do Estado e do mercado. Com isso, ele diz estar dando ênfase à mudança deliberada e privilegiando o papel do agente coletivo – a sociedade civil no caso - e não do agente individual.

Bresser Pereira explica que sua intenção não é idealizar ou normatizar o papel que a sociedade civil vem assumindo como agente de mudança, mas analisá-lo de um ponto de vista histórico.

A sociedade civil é crescentemente o agente transformador nas sociedades democráticas, mas isso não autoriza transformá-la em um conceito moral, como fez Hegel com o Estado, Marx com o proletariado, o comunismo vulgar com a burocracia, e o neoliberalismo com o mercado. Ao contrário, a sociedade civil é, em relação ao Estado, um fenômeno histórico que resulta do processo de diferenciação social; e, ela própria, é o resultado de um processo interno de transformação no qual os agentes individuais que dela participam tendem a se tornar mais iguais, e, assim, a sociedade civil, mais democrática (BRESSER PEREIRA, 1999, p. 72).

Destaca-se uma argumentação importante quando o autor afirma que, assim como não se pode pensar a sociedade civil como o campo dos interesses privados e o Estado o do interesse geral, não se pode cometer o equívoco de atribuir à sociedade civil um papel libertador, tornando-a a consubstanciação do interesse público. E acrescenta: “assim como o Estado defende, com freqüência, interesses privados, a sociedade civil

pode lutar pelo interesse geral, mas a defesa de interesses particulares é inerente à própria ideia de sociedade civil. Esse é o ponto de vista adotado nesta tese, ou seja, tanto o Estado como a sociedade civil podem defender interesses gerais ou particulares.

A respeito do que argumentam Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) e Bresser Pereira (1999), é necessário esclarecer neste momento que esta tese trata do processo histórico de institucionalização da participação política. Na análise, abrange-se o processo de aprofundamento e de implantação de inovações democráticas na América Latina nos últimos anos. A hipótese que esta tese procura confirmar é uma das possíveis na análise do processo histórico de institucionalização da participação política. Sabe-se que, como todo fato político, o que se investiga neste trabalho pode resultar de causas diversas e muitas vezes combinadas. Assim, a defesa da hipótese de que “o processo histórico de institucionalização da participação política é resultado da ação de forças sociopolíticas (sob formatos variados e orientadas pela satisfação de direitos e interesses diversificados) que pressionam e influenciam governos” não traz embutido nenhum juízo de valor sobre essas ações ou sobre os interesses que as movem. O que se quer evidenciar é que a institucionalização da participação política é um processo que pode se efetivar pelo movimento de forças sociopolíticas em defesa de direitos e interesses, quaisquer que sejam eles, sem nenhum julgamento axiológico.

A análise desenvolvida neste trabalho também não é centrada unicamente na ação de atores da sociedade civil, mas pressupõe a existência de ações inclusive de entidades do Estado pressionando os governos a tomarem decisões destinadas à institucionalização da participação política. Não se desconsidera do mesmo modo na análise a existência de relações entre as forças sociopolíticas e os Estados.