• Nenhum resultado encontrado

Dahl: Poliarquia e não democracia

2.3 TEORIAS DA DEMOCRACIA E MOTIVOS PARA A

2.3.7 Dahl: Poliarquia e não democracia

Foi Dahl, talvez mais do que qualquer outro autor, que buscou especificar a natureza exata da “democracia pluralista9”, segundo Held (1996). Dahl argumentava que sistemas eleitorais competitivos são caracterizados por uma multiplicidade de grupos ou minorias ligados intensamente a questões diversas. Com isso, então, os direitos da democracia serão protegidos e as desigualdades políticas severas serão evitadas de forma mais segura do que por meros arranjos legais e constitucionais. Para Dahl, evidências empíricas sugeriam que os Estados Unidos e a Inglaterra satisfaziam essas condições. O autor descobriu, em estudos sobre cidades da América, que o poder é efetivamente desagregado e não cumulativo; é compartilhado e negociado por numerosos grupos na sociedade, representando interesses diversos.

Segundo Held (1996, p.205) em seu estudo Who Governs, de 1961, Dahl revelou que múltiplas coalizões buscam influenciar as políticas públicas. Havia vários conflitos sobre resultados das políticas quando diferentes interesses faziam pressão, mas o processo de negociação de interesses através dos órgãos governamentais criava uma tendência direcionada para um “equilíbrio competitivo” e um conjunto de políticas que eram positivas para os cidadãos em geral no longo prazo.

Para Dahl (2012), a visão inicial da democracia ateniense, praticada pelos gregos, como o governo de muitos, na primeira metade do século V a.C, nunca perdeu completamente a sua capacidade de encantar a imaginação política e alimentar a esperança de que uma república ideal possa se concretizar. A ideia de governos de muitos também se corporificou na cidade-Estado de Roma, mas essa concepção “extraordinária” de governo, segundo Dahl, quase desapareceu por longos períodos,

9 De acordo com Held (1996, p. 199), os pluralistas tentaram remediar, pelo exame das dinâmicas das

políticas de grupo, as deficiências das concepções shumpeterianas segundo as quais o cidadão é uma pessoa isolada e vulnerável em um mundo marcado por conflitos de elites. Explorando as interconexões entre competição eleitoral e as atividades de grupos de interesses organizados, os pluralistas argumentavam que a moderna política democrática é, na realidade, mais competitiva e os resultados da política são mais satisfatórios para todas as partes que o modelo de Schumpeter sugeria. Os pluralistas argumentavam, segundo Held, que a fluída e aberta estrutura das democracias liberais ajuda a explicar o alto grau de flexibilidade das instituições políticas dominantes no Ocidente. A corrente teve influência nos estudos de política na América nas décadas de 50 e 60 e, embora a predominância tenha arrefecido, seus trabalhos continuam a ter efeito no pensamento político contemporâneo. Mas é criticada por muitos, principalmente os marxistas, que rejeitam a concepção pluralista considerando-a ingênua ou uma celebração ideológica estreita da democracia Ocidental.

depois foi transferida da cidade-Estado para a escala muito maior do Estado nacional, transformação que levou a um conjunto totalmente novo de instituições políticas.

Hoje a ideia de democracia é universalmente popular e, de acordo com Dahl (2012), “até mesmo os ditadores parecem crer que um ingrediente indispensável de sua legitimidade é uma pitada ou duas da linguagem democrática” (DAHL, 2012, p.2). No entanto, como ressalta o autor, apenas uma minoria das pessoas já conseguiu adaptar as difíceis exigências da democracia à realidade política num grau significativo.

Como Sartori (1994), Dahl critica a enorme elasticidade do conceito de democracia, afirmando que atualmente não é um termo de significado restrito e específico, mas “um vago endosso de uma ideia popular”, constituindo uma expressão que significa qualquer coisa e com isso significa nada (DAHL, 2012, p.3). Ele diz adotar a concepção de que a democracia é um processo sem igual para a tomada de decisões coletivas e vinculativas (DAHL, 2012, p.8).

Como causas do conceito ampliado, ele afirma que a democracia se desenvolveu ao longo de milhares de anos e se originou de diversas fontes. Segundo Dahl, as noções grega, romana, medieval, renascentista mesclam-se com as noções de séculos posteriores e geram uma miscelânea, um amálgama de teorias e práticas quase sempre profundamente incompatíveis entre si.

As próprias raízes da palavra democracia - embora de significado bastante simples (demos: povo, e kratia: governo ou autoridade, por conseguinte “governo do povo”) suscitam, como destaca Dahl, questões para o entendimento do conceito – ou seja, é necessário começar indagando quem constitui “o povo” e o que significa para as pessoas “governar”. Até mesmo no ápice da democracia ateniense, lembra o autor, o demos nunca incluiu mais que uma pequena minoria da população adulta e a exclusão de pessoas continua sendo marca da democracia.

Da Grécia clássica aos tempos modernos, algumas pessoas têm sido excluídas da democracia, por desqualificadas, e até este século, quando as mulheres conquistaram o direito ao sufrágio, o número de pessoas excluídas excedeu o número de pessoas incluídas. Foi assim na primeira “democracia” moderna, os EUA, que excluíram não apenas as mulheres e, é claro, as crianças, mas também a maioria dos negros e dos índios. O pressuposto oculto é o de que apenas algumas pessoas são competentes para governar. Esse pressuposto se transforma na teoria antidemocrática da guardiania. A ideia da guardiania, que é provavelmente a visão mais sedutora já criada pelos adversários da democracia, não só foi adotada por Platão na Atenas democrática como também surgiu em todo o mundo numa variedade de formas disparatadas, dentre as quais o confucionismo e o leninismo, embora

muito diferentes, são as que influenciaram o maior número de pessoas (DAHL, 2012, p.6).

A democracia teria, segundo Dahl, um duplo significado o que levaria a mais confusão. Tanto na linguagem comum quanto na linguagem filosófica, é um termo que pode ser utilizado para designar um ideal e também regimes reais que ficam consideravelmente aquém do ideal. Assim, questiona ele, “se a democracia é tanto um ideal quanto uma realidade viável, como podemos decidir quando um regime real se aproxima suficientemente do ideal a ponto de podermos considerá-lo uma democracia?” (2012, p.8). Diante desse dilema, Dahl acredita que os aspectos normativos e empíricos da democracia podem ser combinados numa só perspectiva teórica, tarefa de grande amplitude, uma grande empreitada, como observa. Propõe, então, pensar na teoria democrática como uma enorme teia multidimensional, que parece finita, mas ilimitada.

A teoria democrática é uma grande empreitada – normativa, empírica, filosófica, solidária, crítica, histórica, utópica, tudo ao mesmo tempo, mas é também interligada de uma forma complexa (DAHL, 2012, p.13).

Hoje, segundo Dahl (2012), a heterogeneidade dos cidadãos nas democracias modernas é bem diferente do que os gregos consideravam recomendável. Essas diversidades geram o conflito, que é a marca registrada do Estado democrático moderno, em sua opinião. Outra característica é o elevado número de cidadãos, o que conduz a dificuldades para se reunirem. Então, o que prevalece não é a democracia direta e sim o governo representativo, como salienta.

Ao contrário de Schumpeter e Weber, Dahl, no entanto, é contra o governo apenas pelas elites políticas. Para ele, não se deve superestimar a virtude dessas elites, pois, em todo o mundo, elas “são famosas pela facilidade com que promovem seus próprios interesses estritos – sejam eles burocráticos, institucionais, organizacionais ou de grupo – em nome do bem comum” (DAHL, 2012, p.540).

Dahl adota o conceito de poliarquia para caracterizar muitos dos governos atualmente denominados de democráticos. Até agora, em sua avaliação, nenhum país transcendeu à poliarquia e alcançou um estágio “mais elevado” da democracia. As instituições da poliarquia seriam necessárias à democracia em grande escala particularmente do Estado nacional moderno.

A proposta de Dahl (1989) - uma teoria da democracia como poliarquia, ou seja, o governo das múltiplas minorias - surge a partir das críticas feitas por ele à teoria madisoniana10 e populista11. Para Dahl, a solução madisoniana de controles constitucionais para a tirania da maioria ou da minoria não é suficiente. Os controles sociais mútuos são mais importantes. Já a teoria populista, em sua avaliação, é formal e axiomática, mas carece de informações sobre o mundo real, e não é muito útil para se saber como maximizar a igualdade política, uma vez que considera a consecução perfeita da igualdade política e da soberania popular compatível apenas com o princípio da maioria.

Dahl conceitua poliarquia como o conjunto de instituições políticas que distinguem a democracia representativa moderna de todos os outros sistemas políticos, sejam eles não democráticos ou sistemas democráticos mais antigos. Nas poliarquias, existe um número significativo de grupos e organizações sociais que são relativamente autônomos uns com relação às outros e também no que diz respeito ao próprio governo: é o chamado pluralismo ou pluralismo social e organizacional, percepção que faz Dahl ser classificado como pluralista (HELD, 1996).

Nas poliarquias, há também expansão estarrecedora dos direitos individuais. A poliarquia é uma ordem política que se distingue por duas características amplas: a cidadania é extensiva a um número relativamente alto de adultos e os direitos de cidadania incluem não apenas a oportunidade de opor-se aos funcionários mais altos do governo, mas também a de removê-los de seus órgãos por meio do voto.

Segundo Dahl (2012), são sete as características fundamentais, ou instituições, como ele denomina, da poliarquia: funcionários eleitos; eleições livres e justas; sufrágio inclusivo; direito de concorrer a cargos eletivos; liberdade de expressão; informação alternativa; autonomia associativa.

Dahl acredita que, embora as instituições da poliarquia não garantam a qualidade e o vigor de participação dos cidadãos que, em princípio, poderiam existir na pequena

10 James Madison, um dos fundadores da democracia norte-americana cujos trabalhos foram formulados

antes e durante a Convenção Constitucional daquele país em formação e mais tarde nos “Federalist Papers”, sendo o mais conhecido o The Federalist nº 10. Segundo Dahl (1989, p. 13), o que ele denomina de “teoria madisoniana” de democracia constitui um esforço para se chegar a uma acomodação entre o poder das maiorias e o das minorias, entre a igualdade política de todos os cidadãos adultos e o desejo de lhes limitar a soberania.

11 De acordo com Dahl (1989, p. 53), a teoria da democracia populista postula apenas duas metas a serem

cidade-Estado, tampouco garantem que os governos sejam cuidadosamente controlados pelos cidadãos ou que os políticos correspondam invariavelmente aos desejos de uma maioria de cidadãos, elas reduzem aos extremos a possibilidade de que um governo vá insistir por muito tempo em políticas que ofendam profundamente a maioria dos cidadãos.

Se por um lado o controle dos cidadãos sobre as decisões coletivas é mais anêmico do que o controle robusto que eles exerceriam caso o sonho da democracia participativa viesse a se concretizar, por outro lado a capacidade dos cidadãos de vetar a reeleição e as políticas dos funcionários eleitos é um meio poderoso ao qual eles recorrem frequentemente para evitar que os funcionários imponham políticas indesejáveis a muitos cidadãos (DAHL, 2012, p. 353-354).

Para Dahl, o sonho da democracia participativa permanece, fazendo com que os defensores dessa contracorrente muitas vezes retomem a visão democrática mais antiga, refletida no contrato social de Rousseau e nas imagens da democracia grega, não tanto como ela existia na realidade histórica, mas sim na pólis idealizada. Pelo que se pode depreender de informações fragmentárias sobre aquela época, Dahl (2012) afirma que a política em Atenas e em outras cidades-Estado era um jogo duro e difícil, no qual as questões públicas muitas vezes estavam subordinadas às ambições pessoais.

A ideia de bem comum, defendida por Rousseau, foi esgarçada também no mundo moderno, segundo Dahl, a fim de poder englobar os laços, fidelidades e crenças heterogêneos formados num corpo de cidadãos diversos, com uma multiplicidade de visões e conflitos. Na verdade, Dahl (2012) acredita que essa distensão esgarça de tal modo o conceito de bem comum que “cabe nos perguntarmos se ele pode agora ser pouco além de uma lembrança comovente de uma ideia antiga, a qual mudanças irreversíveis tornaram irrelevante para as condições da vida política moderna e pós- moderna” (2012, p. 346).

O processo democrático não existe, nem pode existir, segundo Dahl, como uma entidade descorporificada, à parte das condições históricas e dos seres humanos historicamente condicionados. Suas possibilidades e seus limites dependem imensamente das estruturas e consciências sociais atuais e emergentes. Acredita, entretanto, que “a visão democrática é tão ousada em sua promessa, que ela nos convida permanentemente a olhar para além dos limites existentes nas estruturas e nas consciências e a romper esses limites” (2012, p. 446).

Ele procura mostrar a necessidade de se olhar a democracia como um processo histórico e não se esquiva de fazer especulações sobre novas transformações que poderiam estreitar o abismo crescente entre elites políticas e demos. Uma das possíveis soluções apontadas por ele depende dos recursos das telecomunicações como forma de garantir informação diversificada sobre a agenda pública aos cidadãos para que estes participem de um modo pertinente das discussões políticas.

Mas Dahl adverte para as diferenças de qualificação entre os cidadãos, lembrando que, embora a tecnologia os capacite a acompanhar a discussão através da votação direta nas questões, o voto sem a compreensão adequada não garante que as políticas adotadas protegeriam ou promoveriam seus interesses. Além disso, pondera que a tecnologia pode ser utilizada para o bem ou para o mal, no último caso, isso levaria à manipulação do público pelas elites.

O autor acredita, contudo, que a visão das pessoas governando a si mesmas, como iguais políticos e de posse de todos os recursos e instituições necessárias para fazê-lo, continuará a ser um programa irresistível, ainda que exigente, na busca por uma sociedade na qual as pessoas possam viver juntas em paz, respeitar mutuamente sua igualdade intrínseca e buscar em conjunto a melhor vida possível (DAHL, 2012, p.545).