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A democratização e a luta por novos direitos

3.2 PANORAMA DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

3.2.4 A democratização e a luta por novos direitos

Com o desenvolvimento paulatino do capitalismo na região, a sociedade tornou- se ainda mais complexa e heterogênea, processo amplificado com a imigração, a emancipação das mulheres, a redução de formas de dominação como se observa no final do século XIX e início do século XX. Com isso, a doutrina liberal que havia influenciado as lutas pela independência e constituição de repúblicas passou a se mostrar estreita para acomodar a emergência dessas novas coletividades e as demandas por inclusão e direitos. Converteram-se, então, em temas-chave de duras disputas políticas a exigência de direitos sociais e também a cobrança do respeito aos direitos políticos, muitas vezes usurpados por eleições fraudulentas e mecanismos de domínio oligárquico em todo o continente (DOMINGUES, 2009, p. 30).

De acordo com Domingues (2009), essas disputas queriam levar a uma modernização democratizadora. As batalhas, segundo ele, foram encetadas em geral pelas novas classes médias profissionais, as novas classes trabalhadoras, os camponeses e as mulheres e, mais timidamente, pela população não branca em vários dos países.

24 A partir da década de 90, os movimentos indígenas em países como Equador e Bolívia não só têm

desafiado a noção e prática de estado-nação, como também têm invertido a hegemonia branco-mestiça. Práticas que buscam posicionar os povos indígenas em nível local, regional e internacional como atores sociais e políticos (WALSH, 2006). A interculturalidade, segundo a autora, coloca em questão a realidade sociopolítica do neocolonialismo como se reflete em modelos existentes de estado, democracia e nação, exigindo um repensar deles como parte de um processo de descolonização.

Ao final da Segunda Guerra Mundial, quando se acreditava que estaria aberta uma janela de oportunidades para as mudanças políticas e sociais na América Latina, deu-se o contrário (BETHELL e ROXBOROUGH, 1996). A Argentina e a Guatemala constituíram exceções que, no entanto, também se reverteram anos depois. Se a primeira fase da conjuntura do pós-guerra se caracterizou por mobilização popular e aspirações reformistas, a segunda representou um movimento de contenção e mesmo de inversão das forças populares, bem como das realidades da reação. “O fim da crise do pós-guerra imediato assumiu as feições de uma derrota decisiva do trabalhismo, da esquerda e da democracia”, afirmam os autores (1996, p. 310). Nos Estados Unidos, segundo eles, a conjuntura pós-guerra também provocou o fortalecimento do conservadorismo que dominou a política interna até a década de 60, quando esse consenso conservador e até reacionário começou a ser solapado por uma série de episódios, como o movimento pelos direitos civis, motins estudantis, Guerra do Vietnã, distúrbios de rua.

A democracia na América Latina continuou frágil e precária ao longo do período do pós-guerra, segundo Bethell e Roxborough (1996). Em 1954, lembram eles, uma década após o início da onda de democratização, só quatro países podiam ser considerados razoavelmente democráticos. Houve um breve período de democratização no final da década de 1950 e começo da de 1960, mas, de meados dessa década a meados da de 1970, os países foram se voltando para modelos autoritários, basicamente na forma de ditaduras militares. A volta à democracia deu-se somente na década de 1980 no continente latino-americano, mas a consolidação desse regime enfrentou vários desafios.

Em 1990, afora Cuba, que ainda conservava o seu regime comunista apesar dos ventos que sopravam da Europa oriental, diversos países da região podem com propriedade considerar-se democracias, ou, pelo menos, democracias em via de consolidar-se. (O Partido Revolucionário Institucional do México continua a vencer eleições que muitos observadores têm por fraudulentas, mas mesmo lá um bom espaço foi aberto à disputa política). Contudo, as democracias latino-americanas, antigas e novas, enfrentam sérios desafios enquanto vão tentando fortalecer suas frágeis instituições num contexto de crescente endividamento, colapso do modelo de desenvolvimento do pós- guerra fundado na ISI [industrialização substitutiva de importações], declínio das taxas de crescimento econômico, inflação alta ou fora de controle, crise fiscal do Estado, padrão de vida deteriorado para a maioria da população, agravamento das desigualdades de renda e, portanto, uma crise social que se aprofunda ainda mais. (BETHELL e ROXBOROUGH, 1996, p. 313-314).

A preocupação com a expansão do comunismo ajuda a explicar - segundo Payne, Falcoff e Purcell (1991) – por que os Estados Unidos, apesar de seu comprometimento com a democracia, tinham frequentemente próximas relações com os regimes militares na América Latina durante os anos da Guerra Fria, uma vez que esses governos eram vistos como garantidores de estabilidade. Já as “democracias populistas”, em especial aquelas com relações amistosas com Cuba, eram vistas como hostis aos Estados Unidos e, portanto, propensas a mobilizar forças sociais que poderiam sair do controle e possivelmente conduzir ao comunismo. A ausência de uma tradição democrática na região sustentava essa crença, assim como a ausência de fortes partidos políticos, de uma cultura política democrática e de elites políticas comprometidas com regras do jogo democrático. Assim, de acordo com os autores, países como o Chile e Costa Rica eram considerados exceções que comprovavam a regra. A preferência de Washington por regimes militares amigáveis em relação a regimes populistas hostis manifestou-se de diversas formas. Governo militares receberam somas enormes de assistência militar e treinamento. Os Estados Unidos também cooperaram com as forças militares nos esforços de retirar líderes eleitos democraticamente cujas políticas pareciam conduzir ao comunismo, como aconteceu com Jacobo Arbens na Guatemala, em 1954, e Salvador Allende no Chile, em 1973 (PAYNE, FALCOFF, PURCELL, 1991, p. 48-49).

A transição para a democracia na década de 1980 na América Latina ensejou novas demandas políticas e sociais pela incorporação dos sindicatos e movimentos populares na ordem política, bem como por direitos sociais (DOMINGUES, 2009). O processo desembocou no estabelecimento de direitos políticos completos e inclusive de novas Constituições. Para fazer frente ao despontar ativo de sujeitos mais livres e de movimentos sociais, os grupos dominantes, na análise de Domingues, tiveram de se adaptar às mudanças e procurar desenvolver uma concepção liberal-democrática de política e criar algumas instituições. O que alguns chamam de terceira onda de democratização, como ressaltou o autor, não deixou qualquer país intocado na América Latina.

Para Domingues (2009), o aspecto “instituinte” da cidadania foi especialmente interessante nesse período de renovação democrática, fazendo com que o sistema democrático de direitos, o que ele denomina de “aspecto instituído da cidadania”, pudesse se estabelecer em fins do século XX, não obstante suas limitações. Para ele, o

que se observa operando no continente naquele momento é a dialética entre a “cidadania instituinte25 e a cidadania instituída. No entendimento do autor, em períodos anteriores, isso também pode ser considerado verdadeiro, embora, por vezes, pudesse parecer que o Estado estivesse apenas agindo de forma dadivosa ao conceder direitos.

Nesse processo de transição e consolidação democrática no continente, os movimentos sociais também têm se tornado muito mais plurais e descentrados do que antes, seja mobilizando setores específicos da população (mulheres, povos originários, negros, desempregados, comunidades de cunho territorial) ou organizando setores específicos da classe trabalhadora ao redor de demandas específicas (como habitação). Como observa Domingues (2009), durante a maior parte do século XX, o sindicalismo foi o grande movimento social na América Latina, assim como em outras regiões do mundo. Na Argentina, no Uruguai, no Brasil, no Chile, no México, as classes trabalhadoras urbanas cumpriram papel decisivo, enquanto em outros países, como na Bolívia, isso ocorreu com o sindicalismo camponês. O próprio Partido dos Trabalhadores no Brasil, lembra o autor, foi em parte resultado de uma renovação das classes trabalhadoras e do sindicalismo. Isso não quer dizer, pondera ele, que o sindicalismo não tenha importância hoje, mas sim que outros movimentos sociais, com ou sem as classes trabalhadoras, ou mantendo uma relação mais perpendicular com elas, cresceram de importância e que os giros modernizadores se originam neles em grande medida.

Já a partir dos anos 1960, na América Latina, os movimentos eram múltiplos e diferenciados. O novo, nessa área de movimentos sociais, foi o movimento popular articulado por vários agentes sociais, destacando-se grupos da esquerda e a Igreja Cristã de modo ecumênico, suas ações pastorais, os Centros Comunitários, os Centros de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana etc. Essas novidades, contudo, conviviam, segundo Gohn e Bringel (2012), com as formas antigas de organizações e movimentos sociais (clientelistas, associadas a partidos políticos; ou libertárias, focadas nos novos movimentos europeus de direitos identitários.

Na última década, de acordo com Gohn (2014), a pauta da agenda social latino- americana tem destacado temas como: inclusão social, democratização, diversidade, diferenças, direitos culturais, identidades de povos originários ou de minorias

25 O primeiro momento refere-se à luta da cidadania por direitos e o segundo é quando os direitos estão

populacionais, sustentabilidade, empoderamento social. Para ela, esses temas são fruto de problemas socioeconômicos históricos e entraram na pauta de governantes e nas políticas públicas após serem demandados, debatidos e pressionados por atores da sociedade civil organizada, em ações civis estruturadas em movimentos ou redes de associações civis não governamentais. Em resumo da situação atual, Gohn (2014) relata que, na primeira década deste século, em alguns países da América Latina, observa-se o ressurgimento de lutas sociais de décadas atrás, a exemplo de movimentos étnicos - especialmente dos indígenas na Bolívia e no Equador -, associados ou não a movimentos nacionalistas como o dos bolivarianos (Venezuela). Movimentos que estavam na sombra e eram tratados como insurgentes emergem com força organizatória, como os piqueteiros na Argentina, os cocaleiros na Bolívia e no Peru, os zapatistas no México. Outros se articularam às redes de movimentos sociais globais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil e a Via Campesina. Observa-se ainda a retomada do movimento popular urbano de bairros, notadamente no México e na Argentina. Surgem também movimentos transnacionais, que ultrapassam fronteiras do Estado-nação e vão além do movimento alter ou antiglobalização, a exemplo da Coordinadora Latinomericana de Organizaciones del Campo (Cloc). As marchas e as ocupações tornaram-se o modelo básico de protesto, que será retomado na segunda década do século XXI, aliado a outras inovações na forma do protesto, que é o uso das novas tecnologias, especialmente as redes digitais e redes sociais.

Na avaliação de Domingues (2009), o fim das ditaduras militares e do regime do Partido Revolucionário Institucional (PRI) no México emprestou uma importância aos arranjos constitucionais nunca antes vista na América Latina, sendo o Chile exceção26. Assembleias Constituintes foram eleitas ou Constituições anteriores, retomadas e emendadas. A democracia liberal representativa, com graus variados de regras participatórias ou de democracia direta a ela vinculadas se encontra bem sedimentada na região, acredita ele, lembrando que isso tem emergido e se consolidado em meio a muito sofrimento e lutas ferozes (2009, p. 70).