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Considerações e síntese sobre a institucionalização da participação política a

2.3 TEORIAS DA DEMOCRACIA E MOTIVOS PARA A

2.3.13 Considerações e síntese sobre a institucionalização da participação política a

A seguir resume-se a justificação de cada autor abordado neste capítulo para o processo histórico de institucionalização da participação no Estado e, ao final, apresenta-se um quadro com o resumo dessas perspectivas e da compreensão sobre democracia.

Defensor do sistema político que se tornou conhecido como “guardiania” (governo pelos sábios filósofos), Platão considerava que as formas de governo estão relacionadas ao tipo predominante de caráter da população de um determinado território ou aos costumes civis.

Embora não acreditasse na capacidade de discernimento dos integrantes da classe pobre, Aristóteles apontou como concessão necessária à multidão o direito de participar de uma parcela das deliberações e julgamentos públicos de modo a acalmar possíveis inimigos, revoltados pela situação de pobreza ou propensos a se insurgir contra governantes corruptos.

Em Rousseau, a necessidade de considerar a opinião de todos os cidadãos e, portanto, de possibilitar a participação nas decisões públicas, é uma decorrência dos arranjos e conceitos políticos que ele esboçou como requisitos para permitir a convivência entre os homens a partir do momento em que eles deixam o “estado de natureza” e passam a viver em sociedade. Esses construtos iniciam pelo “pacto social” (espécie de contrato imaginário firmado para marcar a passagem do estado de natureza para a vida em sociedade), passam pela vontade geral (a reunião de todas as vontades dos cidadãos soberanos) e se completam com o bem comum (o que todos os cidadãos desejariam e escolheriam quando participassem das decisões políticas).

Crítico das criações de Rousseau, Schumpeter considera que a defesa de um modelo participativo está amparada pela associação com a fé religiosa e, desse modo, fora do alcance de uma análise racional. Uma vez que, sendo “a voz do povo a voz de Deus”, não há o que se questionar quanto ao processo participativo e nem quanto às decisões tomadas. A democracia participativa constitui, portanto, um “sistema ideal”.

O uso estratégico de meios participativos para ludibriar as massas poderia também ser feito pelos políticos, segundo Schumpeter, como forma de livrarem-se da responsabilidade de tomar as decisões ou de buscar derrotar adversários. O que ele

denomina de “doutrina clássica” da democracia apenas seria viável em sociedades pequenas, que não sejam demasiadamente diferenciadas e não abriguem problemas sérios, ou sociedades primitivas que serviram de protótipo para os autores dessa corrente.

Weber viu em curso um processo abrangente e inexorável de burocratização (domínio racional-legal) de todas as esferas da vida. Nisso estava incluída a política, por meio do Estado e dos partidos políticos. Contrário à democracia de massas e crítico das decisões políticas via referendos, não chegou, entretanto, a incluir outros meios de participação da sociedade na política, além das legendas partidárias, em sua análise da crescente burocratização.

Para Sartori, a democracia resulta de interações entre o que se idealiza dela e a sua realidade, sendo modelada, portanto, pelo “impulso de um deve ser e pela resistência de um é”. Acredita que o comportamento da população sobre a democracia é influenciado pelo que os pensadores teóricos formularam antes sobre esse sistema de governo. Defende, no entanto, a democracia política enquanto método, ou enquanto procedimento e considera que essa concepção deve preceder qualquer grande realização que se possa exigir de uma democracia.

A forma de governo depende do estágio da civilização e as instituições políticas são obras dos homens e uma escolha da vontade humana, segundo John Stuart Mill, que não defende a democracia participativa como a melhor forma de governo, mas busca reforçar o impacto positivo da participação popular na política sob um regime representativo. Destacou, ainda, a forte influência da opinião pública na tomada de decisões políticas e mostrou a possibilidade de arregimentação da população por atores políticos em favor da concretização de formas de governo preferidas.

Do mesmo modo que Sartori, Dahl procura enfatizar a existência de diferenças entre o significado ideal e o real de democracia. O sonho de uma democracia participativa permaneceria entre defensores dessa corrente que, para justificá-la, constantemente recorreriam às imagens de uma pólis grega que, de fato, não existia na realidade. Dahl acredita que o processo democrático está incrustado nas condições históricas e, por isso, considera mais adequado o uso do termo “poliarquia” para designar o que se tem comumente denominado de democracia, regime ao qual a humanidade ainda não havia chegado em sua opinião. Mas admite que a promessa

democrática é de tal modo ousada que, permanentemente, impulsiona o olhar para a superação dos limites reais das estruturas e consciências.

Mcpherson buscou mostrar a evolução do pensamento e da prática democráticas por meio de “modelos de democracia”. A democracia participativa é o quarto modelo apresentado pelo autor e seu surgimento no pensamento teórico decorreu de pressões “intensas e graves” observadas no mundo real. Na década de 60, essa corrente era o lema dos movimentos estudantis e teria se espalhado também pela classe trabalhadora, revoltada com o crescente processo de sua alienação.

Nas lutas populares é também onde Pateman encontra a justificativa principal para o seu modelo participativo. A autora lembra que a reivindicação de um sistema político com mais participação fazia parte da pauta dos movimentos estudantis e de outros grupos sociais na década de 60.

O modelo deliberativo é uma construção teórica proposta por Habermas para substituir concepções de democracia que ele considera insuficientes para os problemas políticos em seu tempo, sobretudo para a questão da legitimidade das decisões políticas diante das demandas que recaem nos Estados.

Crítica radical do modelo deliberativo, Mouffe procura demonstrar que o conflito é inerente à política, não sendo possível eliminá-lo. Caberia, então, aos representantes políticos criar condições para que as diferentes contradições da sociedade possam ser confrontadas em um “espaço comum” e dessa “luta agonística” entre adversários se produzam as decisões democráticas.

Rosanvalon também critica o modelo deliberativo, mas sua opção é por reforçar o caráter histórico da democracia, regime que ele afirma ser problemático por se constituir em um ideal sobre o qual não há acordo e ser uma concepção marcada por divergências. A democracia está, entretanto, segundo Rosanvalon, sempre sob tensão e é passível de transformações, a partir da exploração e experimentação, sendo, desse modo, um problema a resolver em seu percurso histórico.

A análise sobre as razões apresentadas pelos autores para a adoção de um sistema democrático participativo aponta para perspectivas diversas, que não necessariamente se combinariam para concretizá-lo. A institucionalização da participação política poderia ser resultante, então, das seguintes possibilidades: costumes civis, busca permanente de um ideal, defesa ideológica de uma concepção de governo, decisão política estratégica (para diversos fins, como redução de conflitos,

estabilidade da vida em sociedade, ludibriar as massas ou derrotar adversários políticos, por exemplo), processo inexorável de burocratização de todas as esferas da vida, pressão da opinião pública, luta política e pressão de movimentos e grupos da sociedade, construtos teóricos, transformações históricas.

O que se expressa nesta tese é concordância com a concepção de Rosanvalon de que a democracia configura-se em um processo histórico sujeito a tensões e transformações. Por extensão, incorpora-se esse entendimento à institucionalização da participação política no Estado. Admite-se que, até a atualidade, em relação às sociedades complexas, a democracia representativa mostra-se como o formato mais adequado à tomada de decisões, compreensão expressada por Rousseau, Schumpeter, Weber, John Stuart Mill, Sartori, Mcpherson e Habermas, entre os citados neste capítulo. No entanto, e a história o demonstra, é possível a convivência do regime representativo com mecanismos de democracia direta ou mesmo com a ampliação das formas tradicionais de representação política.

A argumentação de Mouffe de que o conflito é inerente à política, não sendo possível eliminá-lo, também deve ser admitida. Isso não implica negar que o acordo e a negociação são possibilidades a serem buscadas pelas ações políticas.

Os argumentos de Schumpeter, visando refutar os conceitos rousseaunianos de bem comum e de vontade geral orientando a ação política, são levados em consideração. Paralelamente, admite-se que a busca de direitos e de interesses (que podem ser pessoais, coletivos ou de repercussão geral) integra a ação política.

A ideia de Dahl de que sistemas eleitorais competitivos são caracterizados por uma multiplicidade de grupos ou minorias, intensamente ligados a questões diversas, e de que o poder é compartilhado e negociado, é orientadora desta tese.

A constatação de Mcpherson e de Pateman da existência de pressões populares demandando o modelo participativo de democracia é considerada na hipótese levantada por este estudo.

Por fim, admite-se que motivos diversos podem justificar a adoção pelos governos de um modelo de democracia mais participativo e deliberativo, como os citados pelos autores analisados neste capítulo, a exemplo de Aristóteles, John Stuart Mill, Schumpeter, Macpherson, Pateman e Habermas.

A seguir, apresenta-se um quadro com o resumo das concepções dos autores sobre democracia e das possíveis causas da ênfase na participação política institucionalizada da sociedade.

Quadro 3: A Participação Política na Teoria Democrática Participação Política na Teoria Democrática

Autor Concepções sobre democracia Possíveis causas da ênfase na participação política

Platão Democracia como governo dos ineptos. Defesa do governo pelos mais qualificados (guardiães).

Formas de governo correspondem aos costumes civis ou ao caráter predominante da população.

Aristóteles Democracia é quando os pobres chegam ao poder, mas eles não têm discernimento.

Para acalmar os inimigos (em geral a população pobre).

Rousseau Muitos requisitos para uma democracia ideal (Estado pequeno, simplicidade nos costumes, igualdade de classes, ausência de luxo).

A soberania popular inalienável e a manifestação da vontade geral são

necessárias para promover o bem comum. O soberano é um ser coletivo.

Schumpeter Democracia como um método institucional para tomada de decisões (decidem os que vencem as eleições).

Democracia é o governo dos políticos profissionais, das lideranças políticas. Cidadão comum não está preparado para a política, é suscetível à manipulação. Refuta conceitos de vontade geral e de bem comum.

Associação a um dogma religioso próprio do cristianismo - parte de um “sistema ideal de coisas”.

Democracia participativa apenas possível em sociedades pequenas e com pouca

diferenciação.

Uso estratégico dos meios participativos pelos políticos para ludibriar as massas.

Weber Democracia como processo.

Maioria dos eleitores é incapaz de contribuir para o processo político. São capazes apenas de selecionar líderes políticos.

Aposta na capacidade do líder político e no Parlamento.

Democracia direta como plebiscito pode servir aos interesses não manifestos de políticos hábeis.

Burocratização em todas as esferas da vida e na política.

Sartori Democracia como um método político. Democracia resulta de interações entre o que se idealiza dela e a realidade.

Democracia direta só existe em pequenos grupos. Participação como um ideal a que não se chega.

Mill ressaltou importância da participação. vilarejos.

Força da opinião pública na conformação dos tipos de governo.

Instituições e formas de governo são uma questão de escolha e dependem do estágio da civilização.

Dahl Democracia é um processo sem igual para a tomada de decisões coletivas e vinculativas. É contra o governo apenas das elites. Democracias são normalmente, de fato, poliarquias (governo das múltiplas minorias).

Visão das pessoas governando a si mesmas sempre continuará a ser irresistível. Promessa democrática é ousada. O sonho da democracia participativa permanece e faz os seus defensores retomarem muitas vezes uma visão idealizada da pólis grega.

Mcpherson Defende certo tipo de sistema representativo e refuta ideia de que a tecnologia permitiria democracia direta apropriada para as comunidades muito populosas. Não se pode prescindir dos políticos profissionais. É necessário torná-los responsivos/responsáveis.

Propôs aparelho democrático piramidal, combinando democracia direta e indireta.

Democracia participativa como lema dos movimentos estudantis da década de 60 e depois dos trabalhadores.

Uma sociedade mais equânime e mais humana exige um sistema de participação política.

Pateman Não basta para a democracia a existência de instituições representativas no âmbito nacional. É necessário o máximo de participação em outras esferas. Mas democracia participativa não pode ser estendida para todos os domínios (político, econômico, social) enquanto se removeria a representação.

Participação como reivindicação dos estudantes e de outros grupos.

Habermas Sugere modelo deliberativo a partir da crítica ao peso ético excessivo imposto aos cidadãos pelo modelo republicano e pela crítica ao modelo liberal (concorrência).

Construto teórico. Necessidade de institucionalizar procedimentos para a deliberação. Deliberação/formação da opinião influenciam as decisões políticas (poder comunicativo).

Busca de legitimidade para os governos. Chantal

Mouffe

Defende um modelo agonístico em oposição ao antagônico e ao modelo de consenso racional de Habermas e Rawls. Para permitir as confrontações em um espaço comum e acontecer as opções democráticas (um autêntico pluralismo agonístico). Não se pode eliminar o poder/conflito nas relações.

Para assegurar a continuidade da democracia que estaria em perigo em razão do

crescimento dos grupos marginalizados da sociedade que poderiam se associar a tendências fundamentalistas.

Rosanvalon Democracia deve ser compreendida em seu processo histórico. É preciso compreender o caráter problemático do regime político moderno e não tentar dissipar o seu enigma por uma imposição normativa.

Democracia é um ideal sobre o qual não há acordo.

Não se pode reduzir democracia a uma experiência contrariada ou utopia traída.

Democracia é a exploração de um problema a resolver e não a confrontação com um ideal.

Fonte: Elaboração própria, agosto de 2015.

Nos próximos capítulos, será investigada a hipótese de que a institucionalização da participação política é fenômeno histórico resultante de lutas, pressões e influências empreendidas por forças sociopolíticas com formatos variados (partidos políticos, classes, grupos, movimentos sociais, associações, ONGs, redes, igrejas, Estados, organismos internacionais, etc). Em defesa de direitos e interesses, essas forças pressionam e influenciam governos, provocando – por ruptura, alternância de poder ou decisão estratégica orientada por motivações diversas – os processos de implantação de procedimentos participativos ou a inclusão de novos atores nas decisões políticas.

3 PROCESSO HISTÓRICO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

Apresenta-se, a seguir, uma análise histórica abrangente do processo de institucionalização da participação política em seus diferentes formatos. No segundo subitem, aborda-se a institucionalização da participação política na América Latina.

3.1 VISÃO GERAL DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO