• Nenhum resultado encontrado

A composicionalidade textual: a noção de plano de texto

Esquema 5: modelo da arquitetura interna dos textos; elaborado a partir de Bronckart

4. A composicionalidade textual: a noção de plano de texto

Ser um todo é ter princípio, meio e fim. Princípio é aquilo que, em si mesmo, não sucede necessariamente a outra coisa, mas depois do qual aparece naturalmente algo que existe ou virá a existir. Pelo contrário, fim é aquilo que aparece depois de outra coisa, necessariamente ou na maior parte dos 30 casos, e a que não se segue nada. Meio é aquilo que é antecedido por um e seguido pelo outro. Portanto, é necessário que os enredos bem estruturados não comecem nem acabem ao acaso, mas sim apliquem os princípios anteriormente expostos.

Aristóteles, Poética, tradução e notas de Valente, 2008: 51

Como evidencia o excerto acima apresentado, a reflexão sobre a organização e estrutura formal dos textos já estava presente nas primeiras propostas de definição de tipologias, como, por exemplo, na Arte Poética de Aristóteles, em que os conteúdos e a sua organização eram entendidas como propriedades diferenciadoras dos textos, bem como, na Epistola ad Pisones de Horácio, na qual o autor relacionava os aspetos temáticos dos textos com a sua estrutura formal. Entre os estudos mais recentes que procuram analisar a composicionalidade textual, destacam-se os contributos da Teoria das Superestruturas, proposta por van Dijk (1980), as já referidas sequências prototípicas de Jean-Michel Adam (1999) e o plano de texto, noção também desenvolvida por Adam e retomada pelo ISD no Modelo da Arquitetura Textual ([1997]1999).

80

4.1. O estatuto do plano de texto no ISD

Integrando a infraestrutura geral, camada mais profunda do modelo da arquitetura interna dos textos, o plano de texto diz respeito ao que Bakhtin ([1979]1984: 60) designava por estrutura composicional, uma das três propriedades dos géneros. Como observa Bronckart ([1997]1999: 120), o plano de texto é responsável pela organização global do texto, correspondendo, desta forma, à “organização de conjunto do conteúdo temático”. Além disso, de acordo com o autor, o plano de texto pode assumir formas muito variáveis, pois depende do género a que pertence e de vários fatores, nomeadamente das dimensões do texto, da natureza dos conteúdos tematizados, do suporte, da modalidade (escrita ou oral), entre outros. Neste sentido, um plano de texto pode ser mais ou menos previsível, consoante o género a que pertence o texto. Importa, ainda, sublinhar, que o plano de texto é visível na leitura (ou escuta) e é reconstruído na escrita (ou na oralidade), assumindo, desta forma, um papel fundamental na orientação da leitura, interpretação e produção textuais. Embora a introdução do plano de texto neste instrumento de análise textual do ISD sublinhe a “necessidade de identificar uma unidade de estruturação (ou composição) que permita apreender a globalidade do texto” (Miranda, 2010: 136), esta noção, tal como admite Bronckart, continua a ser utilizada num “sentido fraco e não técnico” (Bronckart, [1997]1999: 248), necessitando, por isso, de um aprofundamento teórico. Importa, assim, abordar o trabalho de Jean-Michel Adam no que se refere ao plano de texto, dado que foi o autor que propôs esta noção.

4.2. O trabalho de Jean-Michel Adam

Assumindo que os textos são altamente complexos, Adam (2013) propõe um modelo de complexidade, sublinhando que é necessário distinguir os níveis que constituem a sua globalidade. Neste modelo, a seguir apresentado, cada nível corresponde a uma unidade de análise ligada às restantes, mas específica e distinta das outras.

81 Esquema 6: modelo de complexidade; extraído de Adam (2013: 20)

Conforme é ilustrado no esquema, através de siglas, como, por exemplo, ISD e CDS, Adam especifica os módulos de análise em que se inscrevem diferentes quadros e perspetivas teóricas.

Assim, para analisar o texto como um todo complexo, neste modelo, o autor distingue e identifica na base cinco planos de organização textual que se interrelacionam: atos de discurso, enunciação, semântica, textura e estrutura composicional (Adam, 2013: 20).

Como se observa no esquema, o plano de texto situa-se ao nível da estrutura composicional. Neste nível, Adam distingue um micronível, no qual se integram as sequências prototípicas e um macronível, onde se situa o plano de texto. Como sublinha Adam (2008: 254), “o reconhecimento do texto como um todo passa pela percepção de um plano de texto, com suas partes constituídas, ou não, por sequências identificáveis”.

Estabelecendo correspondência entre os níveis de organização textual e as componentes dos géneros identificadas por Adam, o plano de texto integra a dimensão composicional, correspondendo, assim, a uma das oito componentes dos géneros: enunciativa, pragmática, composicional, semântica, estilístico-fraseológica, material, peritextual e metatextual.

82 Contudo, importa sublinhar que, embora o plano de texto se inscreva na componente composicional, as suas propriedades dependem das propriedades de outras componentes dos géneros.

Na perspetiva de Adam, o plano de texto é o principal fator unificador da estrutura composicional, desempenhando um papel fundamental na composição macrotextual de sentido (Adam, 2002a: 377-378; 2008: 255-256). Segundo o autor, o plano de texto corresponde ao que a Retórica Clássica designava por dispositio (ou disposição), “parte da arte de escrever e da arte oratória que regrava a ordenação dos argumentos tirados da invenção” (Adam, 2008: 255). Contudo, observando que o modelo da Retórica não abrange todas as possibilidades de planos de texto, Adam faz a distinção entre os planos convencionais e os planos ocasionais, consoante a maior ou menor fixação dos géneros (Adam, 2002a: 377-378; 2008: 256). Neste sentido, os planos de texto, entendidos como uma das propriedades dos géneros, integram, com os géneros, a memória textual dos grupos sociais, permitindo, como já se referiu, reconstruir a organização global do texto associada ao género.

Tal como sublinha Adam (2008: 256), “um plano de texto pode ser convencional, isto é, fixado pelo estado Histórico de um género (…)” ou “(…) ocasional, inesperado, deslocado em relação ao género (…)”. Deste ponto de vista, alguns géneros pré- determinam um plano de texto fixo, como, por exemplo, a estrutura do soneto, a comédia clássica em três atos, e a tragédida em cinco (Adam, 2011: 54). Por outro lado, a convencionalidade ou ocasionalidade do plano de texto dos géneros dependem de múltiplos fatores, conforme se observa em Silva & Rosa (2019: 11):

De fato, em alguns gêneros, o plano de texto é tipicamente muito estável (como na ata e no requerimento), enquanto em outros são atestados diversos graus de flexibilidade (como na tese de doutoramento e na notícia). Para tal, concorrem múltiplos fatores, como a área de atividade socioprofissional em que o gênero é usado, os objetivos que se pre- tende atingir, o grau de cristalização na sincronia atual, entre outros. O conceito de plano

de texto é, então, aplicável a qualquer texto de qualquer gênero, em contraste com o dis- positio da Retórica Clássica, que incidia em textos da tríade de gêneros argumentativos–

deliberativo, judicial e epidítico.

Dando continuidade ao trabalho de Adam, mais recentemente, alguns investiga- dores têm procurado aprofundar esta noção, identificando os componentes que devem ser contemplados na descrição do plano de texto e esclarecendo a relevância deste na orga- nização textual. De acordo com Gonçalves (2011a: 9), “para analisar o plano de texto, é

83 preciso identificar as diversas secções que organizam o texto e que fazem parte da com- posição textual, descrever como se interrelacionam e como são segmentadas no espaço textual”. Já Silva (2016: 193), por seu lado, sublinha que o plano de texto “consiste na distribuição dos conteúdos manifestados e, em suporte escrito, na segmentação formal atestada num texto”. Destas duas citações, destacamos dois elementos que nos parecem fundamentais: a segmentação e a distribuição.

A segmentação corresponde à divisão formal do texto, quando produzido em su- porte escrito, e a distribuição diz respeito à articulação e ordenação dos conteúdos (Silva, 2016: 194). De acordo com Coutinho (2019: 45), “a segmentação é, portanto, um recurso que marca (dá a ver) o plano de texto, de forma mais ou menos explícita, através de re- cursos vários.”. Segundo Silva (2016: 194), na maioria dos géneros, os mecanismos de segmentação dependem dos conteúdos tematizados e a distribuição dos conteúdos de- pende da sua seleção prévia. Para Adam (2008: 261), a macrossegmentação é que sustenta a operação de reconstrução, tanto na produção como na interpretação textuais, do plano de texto. Neste sentido, a segmentação é inerente ao plano de texto, pois é esta que o evidencia, dando a ver distribuição dos conteúdos no espaço textual (cf. Adam, 2002b: 433-434).

Tendo em conta que na maioria dos géneros não existe uma “segmentação canónica”, a questão que se coloca é saber o que é que determina/influencia os mecanismos de segmentação mobilizados nos textos. Se, em alguns casos, como no exemplo do soneto, existe uma segmentação pré-determinada pelo género, noutros, os mecanismos de segmentação mobilizados são bastante variáveis. Como observa Silva (2016: 194), na maioria dos géneros, os mecanismos de segmentação dependem dos conteúdos tematizados e do grau de convencionalidade do género – logo, também do plano de texto que lhe está associado. Isto significa que os conteúdos contemplados e/ou admitidos pelo género condicionam a segmentação atestada nos textos. Nesta perspetiva, é expectável que os géneros que contemplem e admitam uma maior diversidade temática se caracterizem também por uma maior variabilidade de mecanismos de segmentação e, consequentemente, uma maior ocasionalidade do plano de texto. Importa também sublinhar, como referimos anteriormente, que a maior ou menor variação temática num dado género depende de múltiplos fatores, nomeadamente dos objetivos comunicativos do produtor do texto e da menor ou maior estabilidade do género, o que atesta a interdependência das propriedades dos géneros.

84 Para Adam (2013: 25), “le “tissu du discours” subit deux tensions constitutives: une tension entre segmentation et liage des unités, et une tension entre répétition et progression”. A interação entre estas duas tensões (entre segmentação e ligação das unidades e entre repetição e progressão) é inerente à textualização (Adam, 2013: 25). Neste sentido, por um lado, as unidades textuais são desagrupadas através de operações de segmentação e, por outro, são agregadas, através de operações de ligação, tornando, assim, o texto contínuo no descontínuo (Adam, 2013: 28).

Como ilustra o esquema que se segue, o “tecido do discurso” é, assim, construído por operações de ligação e segmentação, em três níveis: microtextual, mesotextual e macrotextual.