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2.3 Corpo, saúde e doença na Umbanda Esotérica

2.3.2 A compreensão da doença e da saúde na Casa de oração

Na Casa de Oração o corpo é o ponto de intersecção entre o material e o espiritual e essa relação amplia o escopo de significação do mesmo. Entendendo que o corpo é um local privilegiado de inscrição de sentidos, é sobre esse corpo complexo, em toda a sua profundidade semântica que a doença se inscreve, não apenas em sua epiderme ou superfície concreta. O corpo físico é o local de manifestação do simbólico, do representacional. Nele estão sintetizados dados biográficos, o mundo sócio cultural, a natureza e o cosmos. É no corpo simbólico que se inscreve a doença que assume a forma de uma desordem espiritual interpretável e domesticável. A compreensão simbólica da doença possibilita tecer os elos que existem entre o homem, sua subjetividade, seu meio natural, social e cósmico. Nesse corpo simbólico, outra ordem de fenômenos que não os físicos interage na produção da doença que não é senão um sinal e sintoma de uma causa oculta que tem sua raiz na desconexão do homem com o mundo, consigo mesmo e o próximo. A doença, parafraseando Montero (1985 p.125), não seria senão uma aparência, uma forma, um modo de manifestação de fenômenos transcendentes e o meio para que esses fenômenos tornem-se sensíveis e inteligíveis à consciência, através do símbolo, possibilitando, assim, que a natureza sutil e física do mal expresse algum sentido, e significados nem sempre lógico ao modo racional de interpretar.

Todo e qualquer sinal mórbido assume no interior da umbanda sempre o sentido de uma desordem mais abrangente. É o mundo dos espíritos pensado como formas energéticas, vibrações, agentes mágicos o pólo propulsor de toda compreensão umbandista da doença. Espíritos malignos, energias deletérias, fluidos perniciosos, formas pensamento, larvas psíquicas, ovóides, vampiros, quiumbas, obsessores, compõem o variado universo imaginário da doença e do doente. Tanto a umbanda como o kardecismo e mesmo inúmeras igrejas neopentecostais creditam a essas entidades fatos verídicos que pululam no imaginário religioso tornando-os os agentes responsáveis por gerar desajustes psíquicos e somáticos.

A sobrevalorização do termo vibração conduz a algumas interpretações das patologias na umbanda. Em primeiro lugar, como diz Dona Graça, “o sentimento é muito ligado à doença”, entendendo que o pensamento e o sentimento são vibração. E continua dona graça: “o homem constrói doenças graves e menos graves inconscientemente que ficam no subconsciente (campo astral). É “a vida mental da pessoa”, como diz Dona Graça, “que cria a doença”, a sintonia em que estão seus pensamentos e sentimentos, a imaginação. Todos

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atraem determinados tipos de forças. O mal, (ovóide, larva, chip, obsessor), segundo W.T. é criado primeiramente no plano astral, fixa-se no corpo energético desequilibrando o funcionamento dos chakras, cria bloqueios psíquicos e se instala no nível físico.

A aura brilhante começa a ficar cinza, perde a luminosidade, as cores ficam escuras, a expressão se altera. De acordo com a qualidade do sentimento a aura se altera por influência mutua. O vidente vê sua aura, a cor e a partir disso atua. Esse trabalho mostra você como você está se sentindo. (W.T., 2014)

A visão da doença na Casa parte de uma leitura holística do problema. Diante disso W.T. afirma que não existem doenças em si mesmas mas, sim, pessoas doentes. Como a pessoa está inserida em um conjunto de relações, ampliam-se os sentidos sociais e subjetivos da doença e esta, mais do que algo material é algo representativo que traz dimensões espirituais implícitas que só podem ser interpretadas simbolicamente. A doença não seria, portanto, apenas um agente material externo ao homem ou eventos naturais. Um ovóide fixado na nuca, um chip instalado em determinada parte do cérebro como diz W.T, uma larva que acomete algum órgão, um obsessor vindo do antepassado, enfim, toda e qualquer entidade que seja constatada pelo médium no corpo do consulente desencadeia diversos sintomas e reações materiais, infecções, patologias correlatas. Seja uma gripe, infecção ou acidente aparentemente frutos de uma casualidade podem assumir – nem sempre – um significado subjacente interpretado segundo o esquema religioso e cosmológico da casa. De modo geral a doença seja ela material ou psíquica é muitas das vezes resultado de práticas magisticas realizadas por terceiros ou pelo próprio indivíduo consciente ou inconscientemente como afirmou Dona Graça, o fruto de relações kármicas em outras vidas. Nas interpretações, sejam elas magísticas ou kármicas, o indivíduo é sempre incluído em uma teia de relações: ancestralidade, relações interpessoais, condicionamentos sociais, padrões de pensamento e sentimento. De modo geral, o indivíduo é sempre coadjuvante e co-criador. A tônica mestra é que qualquer doença manifestada seria a expressão de um estado de consciência e vibração do indivíduo. Mesmo a magia feita por terceiros só efetiva-se quando existe um sentido simbólico compartilhado acessível à executante e receptor, sentido esse que o médium umbandista precisa conhecer e desconstruir. Mas de modo geral a tônica sempre recai sobre o papel da consciência do sujeito o que faz com que de certa forma o indivíduo seja responsabilizado.

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Nessa linha de pensamento, outra interpretação da doença não deslocada das demais é a de que ela seria um presente, uma dádiva capaz de purificar não o corpo físico mas o campo astral. Segundo B.P.

a doença seria a limpeza da alma, dos corpos sutis. Vamos supor que em alguma parte do corpo surge algum defeito. A raiva, por exemplo, começou a prejudicar o espírito e deixando o espírito mais sujo. A alma, então, joga para o corpo físico. Para onde vai essa raiva: vai para o corpo e para o universo. O medo, por exemplo, agride os rins. A raiva agride o físico. E por outro lado a raiva libera não só substâncias químicas, mas também ectoplasma (energia) que alimenta diversas entidades. Como doença, ele está liberando certa negatividade, mas ao mesmo tempo o espírito está atuando para se limpar. É negativo para o corpo, mas positivo para o espírito (B.P.).

A interpretação feita na casa é a de que a purificação através da doença, angústia, dor, sofrimento produz a tomada de consciência do problema, em nível simbólico. A visão umbandista ressignifica a visão da doença como pecado, como mal em si, como fim, absurdo ou acontecimento natural. Quando um sentido emerge da doença ela assume um caráter positivo de esclarecimento, de dádiva. Nesse sentido, o papel do preto-velho é positivo, pois uma característica do mesmo é a aproximação da pessoa, com linguagem psicológica, doutrinária e orientadora, além de oferecer o passe magnético. Caso seja mantida uma atitude unicamente de combate e de luta contra esse mal a doença pode fixar-se em níveis profundos. Todavia isso não tira a importância simbólica dos trabalhos de magia de limpeza de caboclo através de passes magnéticos “fortes” nos quais lançam-se mão de um conjunto de técnicas magisticas hard (AMARAL, 2000) com o intuito de limpeza energética, trabalho do poder mental. Por exemplo, nos ritos de caboclo, muitas vezes, sobre o corpo do indivíduo se realiza um embate com forças maléficas que o próprio indivíduo atraiu para si. Nesse corpo as forças devem ser controladas após identificado o espírito obsessor. Valoriza-se, portanto, tanto uma postura intimista de aproximação ao problema como uma postura de distanciamento. Daí a atitude acolhedora e terapêutica em relação ao problema do consulente como ficou claro nos trabalhos de preto-velho que procura, de modo suave, enveredar pelos caminhos ocultos do inconsciente, da biografia e a atitude de presença e força do caboclo que se volta para os elementos exteriores do problema como a limpeza dos corpos densos. O objetivo final, independentemente de técnicas magísticas voltadas para o acréscimo de força, poder, auto- controle, será sempre o da integração do individuo, da harmonização, do equilíbrio.

Geralmente, como será mostrado, os tratamentos umbandistas caminham nesse sentido, o dos níveis superficiais do tratamento que se dão pelos passes magnéticos aprofundando-se

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para os níveis simbólicos onde estão tecidos os sentidos mais profundos, onde o corpo é poroso às figuras do subconsciente. Quase sempre se lança mão de uma linguagem psicológica muito marcante, mesmo que permeada por elementos não acadêmicos. Essas compreensões que os médiuns propagam por meio principalmente dos trabalhos de preto- velho e da apometria favorecem a construção de um sentido para o mal que as ciências biomédicas desconsideram nos tratamentos convencionais e que são estereotipados por inúmeras religiões, inclusive muitas casas de umbanda.

A doença é considerada sempre uma representação de algum estado de desarmonia interior, de uma separação entre o homem e o mundo, que se reflete no mundo exterior, no desequilíbrio emocional, nos problemas de ordem física e material, nos relacionamentos. A saúde seria por outro lado a representação da harmonia em sentido amplo, do equilíbrio dos corpos sutis, dos chakras alinhados o que faria a pessoa vibrar e emanar apenas energias positivas, diz o médium B.P. A saúde seria também o resultado de um contato marcante com a natureza, por si só propiciadora de saúde, equilíbrio e harmonia por seus aspectos simultaneamente energéticos, espirituais e físicos. O estreitamento dos laços com o sagrado e consequentemente com um guia interior seria outro fator propiciador de saúde. Este contato com o sagrado acontece segundo princípios éticos com a natureza, o mundo social e os seus semelhantes que agem segundo a prática do bem, de respeito aos antepassados, postura que naturalmente contribuiria para o equilíbrio cósmico. Segundo o médium, a saúde é mais do que um estado individual e sim um bem holístico.