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2.3 Corpo, saúde e doença na Umbanda Esotérica

2.3.3 Um relato de doença e sua cura

Um dos médiuns entrevistados, B. P, relatou um caso de doença. Influenciado por sua situação financeira, ele viu a necessidade da busca por uma situação de vida melhor, objetivando ganhar bem e melhorar seu padrão social e econômico. Isso foi desencadeado por uma série de cobranças do relacionamento, da família, do trabalho. Começou a trabalhar em três períodos. Mudança de setores de emprego, trabalho em um presídio, processo complicado como servidor público, relacionamento desabando pelo fato de não corresponder à parceira no campo da profissão. Segundo ele, nesse momento se sentiu pressionado ocasionando o surgimento de três hérnias, duas inguinais e uma umbilical. “A causa foi a pressão do momento”, conta.

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É como se alguma coisa estivesse me sufocando, não deixando ser quem eu era e quem eu acreditava ser. Passei a ter vergonha de meus pais, pessoas muito humildes. Estava deixando de ser eu para agradar um meio externo. Estava deixando meu sagrado. Cada um tem o seu sagrado. Estava deixando de ser quem eu era e quem eu acreditava ser. E nesse bombardeio de coisas entrou a hérnia.

As hérnias, simbolicamente representadas pela pressão do externo sobre o interno comenta, “veio no físico demonstrando que algo não estava legal na alma”. “Elas vieram” afirma, “para limpar minha alma me colocar em contato com o meu sagrado”, que seria também seu guia interno como se mostrou em outros momentos. Isso teria acontecido segundo ele, porque existe um “esquecimento de nós mesmos”, uma volta para as coisas externas.

Segundo B.P. ele deu abertura para a entrada de energia estranha ao seu sagrado que foi acionada por uma pessoa do seu círculo pessoal, uma magia negra inconsciente diz. Depois disso ele afastou-se dos ancestrais, das raízes, dele mesmo, de seu guia. E diz mais, “fui vitima de mim mesmo por abrir a guarda a um pensamento alheio, externo, que eu acreditei por um momento naquilo que eu não acreditava”. B.P passou depois disso a dar valor ao dinheiro, ao status e deixou de dar valor à humildade e à raiz de onde veio.

B.P. afirma que o primeiro movimento para se curar foi buscar auxilio da espiritualidade após o resultado dos exames médicos. Relata que a cura iniciou a partir do momento em que ele começou a valorizar sua raiz e seu sagrado. “Todo o aprendizado que me foi ensinado e guardado, automaticamente isso tudo me guardou. A transparência se fez necessária e essencial e o reconhecimento de quem eu sou independente do externo”.

B.P construiu um itinerário terapêutico. Procurou Reiki, tratamento com o preto-velho, com as entidades da umbanda, oberon e terapia. Também continuou buscando a partir de sua própria energia, intuição e conhecimento de técnicas magísticas, relata. Utilizou-se dos elementos da natureza como a água e a fumaça com os quais tem mais intimidade. Considerou esses usos como potentes recursos simbólicos. No caso da fumaça ele a utilizou para purificar o corpo etérico potencialmente contaminado com larvas astrais. Foi constantemente até à cachoeira onde utilizava de recursos de visualização. Conta que imaginava a energia do amor, da entidade oxum lavando sua alma. Andava pela mata e procurava a presença de Oxossi. Todo esse trabalho afirmou ter estado consciente, de modo a racionalizar todo o processo e experiência. Também praticou meditação diz. Todos esses recursos técnicos e espirituais permitiram a cura segundo ele.

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Através da manipulação da energia, da busca, dos banhos de cachoeira, das orações, dos passes energéticos, da umbanda, eu consegui romper isso, com algo que me prendia, uma corrente que veio de uma para outra pessoa e que chegou a mim porque eu dei abertura. Através da sustentação energética de todas as entidades e da espiritualidade eu consegui romper isso. Quebrou o que estava próximo de mim até chegar até a pessoa (B.P., 2014).

B.P. conta que chegou à compreensão de que os erros devem ser interiorizados (karma), e o aspecto sombrio da natureza, a sombra, não pode ser negado. Quanto mais se nega mais ele cresce internamente e mais se alimenta a doença.

Quanto mais você negar as sombras, mais ele vai crescer dentro de você, deixar ele aparecer. Quando surgir uma doença, vamos supor que você não consiga identificar, é bem mais difícil. Mas se você descobre a doença, deixa ela vir à tona, porque ela pode auxiliar a ter a percepção do seu eu (B.P.).

Próximo da operação B.P. fez os últimos exames e não deu mais nada. Ele considera que recebeu um auxílio da espiritualidade e de seu guia interno. Segundo ele a cura seria um processo muito pessoal, mas ao mesmo tempo colocaria em jogo toda uma teia de relações o que mostra que a cura tem repercussões mais amplas que o nosso universo individual. Mas de modo geral ela parte do eu, diz. O processo de ajudar a si mesmo, conta, “contribui para que o universo todo seja curado”. Daí, sua crença de que sua cura repercutiu em uma cura também de muitos à sua volta, o que se configura em uma nítida perspectiva holista e sistêmica.

A meta para toda pessoa que se disponha a trabalhar a mediunidade, diz, é “o equilíbrio entre todos os corpos, e a harmonia de todos os pensamentos e sentimentos”. A saúde viria como uma representação da harmonia própria ao universo, uma coesão e coerência entre o externo e o interno, uma fala claramente psicologizada da saúde biopsíquica e em consonância com a ideia de corporeidade integrativa que implica na busca do ser integral.

Parafraseando Paula Montero (1985 p. 129), curar a doença não significa somente suprimir um sintoma material, mas oferecer um sentido novo ao problema integrando-o em um sistema explicativo mais abrangente. Diante disso é importante considerar que a atuação desse conjunto de forças desagregadoras e a consequente desordem física só podem ser compreendidas no interior de um quadro semântico sócio-religioso amplo, a partir do qual se constroem as lógicas associativas da doença, para além das causas materiais em um nível mais complexo do que o de sua manifestação física, comportamental e psíquica. A experiência subjetiva da doença, angústia ou sofrimento ganha realidade simbólica a partir de um pano de fundo cosmológico e religioso. Os rituais terapêuticos não têm, senão, o sentido de tecer os

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paradoxos da experiência em um cosmos coerente e inteligível. A lógica subjacente à angustia, ao adoecimento deve considerar uma superposição de sentidos e valores que informam uma visão de conjunto na qual fazem-se presentes o ethos, a cosmologia, a experiência e a prática. Ela se torna significativa ao indivíduo na medida em que o rito consegue tecer os níveis de sentido material e espiritual juntamente à experiência vivida do indivíduo, no interior do quadro semântico proposto pela cosmologia. Na casa de oração, às interpretações do fenômeno mórbido sobrepõem visões religiosas, científicas e filosóficas. Qualquer forma de doença ou angústia manifestada por presença de forças sobrenaturais imaginadas e vividas estaria basicamente associada a um nível de desordem integral que tem como fundamentos primordiais a lei do carma, e o princípio de evolução espiritual, a lei do livre arbítrio e a lei das afinidades energéticas.

Esses três fundamentos podem ser considerados as margens teológicas que estruturam a compreensão do sofrimento, da doença e da dor no interior da umbanda que atualmente procuram se reportar constantemente às teorias científicas quânticas que implicam em uma releitura das tradições e uma cientificização do domínio magístico. É preciso que se entenda que de modo geral, em consonância com o pensamento de Montero (1985), são essas três referências tomadas conjuntamente que permitem entender a atuação de forças desagregadoras que venham a manifestar no plano físico, psíquico e social: o karma, a lei do princípio de evolução e o livre arbítrio. Todas elas se colocam em oposição à concepção ortodoxa cristã do bem e do mal. Elas permitem situar o grau de importância do indivíduo como co-responsável pela doença, a posição de terceiros sejam eles vivos ou não vivos, humanos ou não humanos e as conjunturas favoráveis ou desfavoráveis à resolução do problema e a relativização do mal.

De acordo com a lei do carma, motivos desconhecidos, ou conhecidos, gerados por faltas cometidas em existências anteriores podem permanecer impressas em uma possível memória somática ancestral, no nível genético e no plano da personalidade, desencadeando doenças devido ao enovelamento de padrões vibracionais negativos que permitem a fixação de espíritos ou formas de pensamento de antepassados. Estas podem acompanhar o indivíduo por gerações quase nunca no nível consciente. O mesmo poderia acontecer quando da transgressão de determinados princípios e regras morais.

O indivíduo que tem determinada conduta ou hábito oposto aos códigos cristãos pode tornar-se suscetível à influência de forças nefastas seja por

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fazer mau uso de seu livre arbítrio ou interferir no livre arbítrio alheio por meio de magia negra consciente ou inconsciente (W.T.).

Diante dessa pequena diversidade genérica do quadro causativo da doença na perspectiva umbandista é preciso atentar ao fato de que mesmo admitindo a atuação de espíritos maléficos, feitiços, karma, destino ou evolução, o que poderia levar a interpretação de uma possível determinação desses sobre o indivíduo e sua vitimização, a umbanda fortalece a responsabilidade individual por diversos problemas do consulente. Porém, essa responsabilidade individual não é de modo algum associada à noção cristã de expiação da culpa ou pecado por ter agido de modo contrário a um preceito ou dogma externo ao indivíduo (MONTERO, 1985). A umbanda procura construir um sentido positivo para a doença de modo distinto à resignação cristã, “assim como era no princípio agora e sempre”. No percurso da doença à cura a Casa se predispõe a contribuir não só para o fortalecimento espiritual do indivíduo, mas para sua transformação por meio da oferta de espaços em grupos de estudo em que ensinam técnicas de auto-defesa, equilíbrio, harmonização, desenvolvimento mediúnico a fim de desenvolver o progresso moral, a disciplina, o autocontrole. Por outra via coloca-se como necessário participar constantemente de passes regulares e sessões de conversas com o preto-velho.

2.4 Desenvolvimento mediúnico e incorporação na Casa de Oração como base do