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A Comunidade mateana e o judaísmo formativo

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2.6 A Comunidade Mateana

2.6.1 A Comunidade mateana e o judaísmo formativo

O movimento conhecido como judaísmo formativo e o grupo de Mateus são dois movimentos emergentes, mas não são os únicos, que lutavam num processo de definição e consolidação em uma sociedade fragmentada e dividida. Após a destruição de Jerusalém, do templo e das demais instituições judaicas, tais como a sinagoga, o judaísmo e parte de seus representantes, os saduceus, o que restou foram grupos dispersos que tentavam se reconstruir onde quer que se encontravam. O problema de Mateus e de sua comunidade, portanto, está intimamente ligado ao grupo judaico em formação liderado pelos fariseus.

Esse grupo, em luta com a comunidade de Mateus, era um dos vários movimentos que brigavam para ganhar influência e controle no período pós- setenta.

71 Overman (1997, p. 15) defende que esse movimento não deve ser visto como um movimento amplo que representa, na totalidade ou fala pelo judaísmo. Para ele, é esse processo de definição e luta pela influência que aparece de forma tão intensa no Evangelho de Mateus.

Deve-se considerar ainda que esses dois grupos compartilham uma história semelhante, o mesmo contexto cultural e habitam o mesmo mundo. Diz-se que são comunidades irmãs (OVERMAN, 1997, pp. 15-16).

O grupo de Mateus se desenvolve partilhando e confrontando com um grupo irmão. Foi sugerido que o Cristianismo e o judaísmo são gêmeos fraternos, compartilham a mesma raiz histórica, e com frequência definem-se um em relação ou em oposição ao outro. O judaísmo de Mateus e sua luta com o judaísmo formativo são, talvez, o primeiro capítulo da longa e difícil separação desses irmãos gêmeos fraternos (OVERMAN, 1997, p. 16).

O judaísmo formativo deve ser entendido como antecedente do Judaísmo rabínico, mas não pode ser confundido com ele. O rabinismo judaico se estabelece no poder alguns anos após a elaboração do evangelho de Mateus. Embora não haja consenso entre os autores com relação à data do estabelecimento do rabinismo, o que fica, claro é que o Judaísmo formativo o antecedeu. Houve uma evolução do judaísmo formativo para o rabínico, por meio de um processo longo e complexo anos após a escritura deste evangelho.

Estudos recentes do desenvolvimento do judaísmo rabínico após a destruição do Templo demonstram que os rabinos adquiriram influência e depois poder na sociedade palestinense apenas gradualmente, durante vários séculos (SALDARINI, 2000, p. 26).

Mateus não rejeitava o judaísmo, já que dele fazia parte36. A sua polêmica era

contra líderes que se lhe opunham e, ocasionalmente para o povo que os seguia (SALDARINI, 2000, p. 80). Mas em que, afinal, consistia em a rivalidade de Mateus aos líderes judaicos? Bem, Mateus e seu grupo eram judeus, se viam como judeus frequentavam as sinagogas judaicas, mas também reconhecia Jesus de Nazaré, como o Messias, e queria que toda a comunidade judaica entendesse isso e aceitasse a proposta de renovação para o judaísmo, baseada nos ensinamentos do Cristo.

36 Embora o autor afirme a centralidade de jesus Cristo como Filho de Deus e Salvador, tal afirmação

não contradiz, a seus olhos, uma interpretação judaica autêntica da Bíblia, nem o modo de vida judaico. Ao contrário, o autor entende que Jesus e os que crêem nele são os intérpretes fiéis e fidedignos da vontade divina e das tradições bíblicas (SALDARINI, 2000, p. 24).

72 Precisamos enfatizar, contudo, que, apesar da opinião altamente negativa de Mateus sobre os líderes judaicos, analisado de acordo com normas sociais convencionais, o comportamento deles não era nem incomum, nem mau. Embora sejam mostrados fazendo perguntas hostis a Jesus e acusações negativas contra ele, os escribas e fariseus nunca se empenham em prolongada difamação de Jesus (SALDARINI, 2000, p. 80).

Alguns incidentes registrados por Mateus entre os líderes judaicos e jesus são importantes para demarcar território e para distinguir os seguidores de Jesus (Mt 9,6- 13. 9, 14-17). Aqui, Mateus estava mostrando que a justiça era a base do ensinamento de Jesus, e que seus discípulos eram diferentes dos outros. Eles não precisavam jejuar, já que o próprio Deus estava entre eles. O ensinamento básico era o de que eles eram diferentes dos demais e que o significado fundamental dessas histórias era o de mudar regras sociais.

Em outras passagens como Mt 9,32-34 e 12,22-30, Jesus tem sua autoridade questionada pelos fariseus, quando Ele nesses dois episódios, expele demônios de duas pessoas que estavam mudas, surdas e cegas e é acusado de expeli-los pelo príncipe dos demônios. Novamente, aqui, os fariseus são tidos como adversários de Jesus e

“A acusação de que o adversário está possuído é típica de disputas e brigas faccionais por prestígio e status social.

Tais pretensões são um tipo de acusação de bruxaria usadas por grupos que procuram manter suas fronteiras e identidades contra uma força externa mais poderosa” (SALDARINI, 2005, p. 181).

A relação de Jesus e seus discípulos, com esses líderes parece que vai assumindo ares de uma forte tensão, e isto é perceptível no Evangelho de Mateus. Jesus rebate-os com a sequência de parábolas já mencionadas nos capítulos 21 e 22 e em seguida Mateus afirma que “Os fariseus foram se reunir para tramar como

apanhá-lo por alguma palavra” (Mt 22,15). Estes líderes são vistos em toda parte e

em grande quantidade de ações praticadas por Jesus, lá estavam. Eles são descritos como um grupo ativo e participante de boa parte da vida social, política e religiosa da

sociedade judaica.

Overman (1997, p. 45) afirma que a relação do judaísmo formativo, representado pelos fariseus, com o rabinismo, se deve ao fato de que os fariseus, antes até da destruição do templo de Jerusalém, haviam preparado um programa de desenvolvimento do judaísmo, mesmo sem a presença física do templo. Eles organizaram um método religioso judaico onde era possível uma identidade social e

73 religiosa que não exigia a presença do templo. Os fariseus estavam melhor preparados para a crise pós setenta por isso foram bem-sucedidos com seu programa

de soerguimento do judaísmo37

Tanto o judaísmo formativo como a comunidade de Mateus estavam preocupados em legitimar suas crenças e comportamento. Eles também tinham de apresentar seus respectivos movimentos como tradicionais, aceitáveis e legítimos, ambos procuravam tradicionalizar seus novos movimentos, a fim de legitimar as convicções e ações de suas comunidades (OVERMAN, 1997, p. 48). À antiguidade e tradições somaram-se na lista de prerrogativas dos fariseus, a de serem os melhores intérpretes da Lei. Herdaram do farisaísmo anterior a 70, tanto a preocupação quanto a precisão na interpretação da Torah. Após a destruição do Templo, o estudo e a interpretação da Torah tornaram-se o ritual e a atividade centrais para muitos do judaísmo, substituindo até mesmo o culto do templo (OVERMAN, 1997, p. 73).

Com a mudança de foco, saindo do templo e indo para a Torah, a interpretação desta agora torna-se de suma importância. Os fariseus se apresentam como os legitimados para tal, por terem herdado dos antepassados. Mateus, por sua vez, tenta deslegitima-los, chamando para si e para seu grupo a posição de verdadeiros intérpretes da Lei, pois Cristo veio para trazer um modo mais transparente, espiritualizado e humanizado de interpretá-la (OVERMAN, 1997, pp. 75-80). A Nova Justiça aplicada na interpretação das Escrituras, traduzia a vontade de Deus para aquela e para a posterior geração.

Essa interpretação das Escrituras não era nova, pois desde sempre Deus esteve preocupado com os marginalizados, apesar de estes não terem sido contemplados pelos intérpretes judeus, agora Mateus os apresenta na cena da narrativa. São eles os endividados, as mulheres, as crianças, os velhos, os estrangeiros, os sem pátria, os enfermos, os possuídos, e os despossuídos.

A lei do puro e do impuro, a lei da circuncisão, do sábado, do dízimo são exemplos do rigorismo da tradição judaica amenizadas em Mateus (SALDARINI, 2000, pp, 89-91). Sua postura e a da sua comunidade provoca a ira dos seus companheiros, dando início a um conflito interminável, que irá culminar na divisão dos

37 Os fariseus desenvolveram um sistema centrado na aplicação das leis de pureza no lar e à mesa. O

dízimo, a observância do sábado e o estudo da Torah eram características centrais do movimento. Imagens e temas relativos ao templo eram utilizados pelos fariseus. Não havia, porém, a exigência de um Templo, para a execução de seu programa (OVERMAN, 1997, p. 45)

74 dois grupos. Ao contrário do entendimento dos líderes religiosos judaicos, o Reino dos Céus não poderia ser alcançado por meio de esforço próprio ou por meras ações. Este Reino não era um ideal a ser alcançado, ou um lugar privilegiado.

A forma de interpretação das Escrituras, baseada no ensinamento de Cristo, era o objetivo de Mateus e a proposta para toda a comunidade de Israel. Todavia, eram tempos difíceis que requeriam mais que palavras, era necessário um alto poder de convencimento. O povo estava sofrido e tudo que eles queriam era a ação de um líder para conduzi-los à libertação. Parece que essa disputa se torna muito acirrada,

e “Mateus busca nas origens proféticas, no deuteronomismo, a inspiração para

demonstrar seu novo modo de interpretar a Torah” (CARTER, 2002, p. 70).

A tensão existente entre os grupos concorrentes é visível nos textos do Evangelho de Mateus. Um dos objetivos desse Evangelho é reforçar a fé e a esperança dos seguidores de Cristo. Só Ele tinha a legitimidade para ser o intérprete

da Torah.38 Paz e espada nos remete para a esperança e para a realidade vividas em

Mateus. Enquanto a paz era o alvo e espada era a realidade.

38 A autoridade de jesus não é a de um douto escriba ou fariseu, nem de um rabino mais tardio. Sua

autoridade na narrativa vem diretamente de Deus e é sancionada de forma apocalíptica (SALDARII, 2000, p. 290)

75 3 A PAZ E A ESPADA NO EVANGELHO DE MATEUS

Os Evangelhos noticiam a chegada do Reino De Deus39 e de um tempo de paz

(Is 9,5-6). Todavia, o domínio de Deus e a chegada de seu Reino é causa de tensão entre a paz e a espada, conforme o evangelho de Mateus. A espada é a realidade mais constante na vida do povo hebreu/judeu desde as suas origens. Os hebreus lutaram muito para conquistar a terra prometida. Os judeus lutaram igualmente para mantê-la sob seus domínios. Os vários movimentos, correntes de pensamento, grupos que foram surgindo ao longo de sua história, tinham bem caracterizadas essas lutas, tanto pela conquista, quanto pela defesa.

A luta desse povo não se restringe somente à posse da terra, mas à sua manutenção, sua cultura, sua religião, sua fé, seus valores, sua independência, sua história, suas riquezas, sua tradição, sua etnia. Enfim, tudo que pode haver de mais precioso na construção da identidade de um povo. Essa identidade estava

constantemente sendo ameaçada por invasores, conquistadores, dominadores40. Em

Mateus vemos mais uma batalha travada, compondo mais um capítulo de uma extensa jornada de muitas outras lutas que ocorreram ao longo da história de Israel.

A ocorrência de repetidas campanhas de guerras significava que cada novo conquistador tomava alguma terra e confiscava mais. Mas a pressão econômica mais dolorosa provinha das taxas, exigidas tanto pelos romanos como pelos sacerdotes. A pretensão dos sacerdotes a essa renda apoiava- se na última fonte sacerdotal da Torah mosaica e nas interpretações dos saduceus e fariseus (Mt 23,23; Lc 18,12). A interpretação estrita dos mandamentos era de interesse de ambos os grupos (STAMBAUGH e BALCH, 2008, p. 92)

A relação, paz e espada proposta no Evangelho de Mateus, identifica a continuidade dessa situação de tensão existente em Israel e que vinha se desdobrando em vários capítulos. Importante a distinção dos grupos e movimentos que se identificavam, se rivalizavam, ou que se uniam em prol de determinada conquista, em momento específico, nessa longa trajetória, que se constitui a história

de Israel e a história da igreja41.

39 “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc

1,15) (FEIJOO, 1989, p. 24).

40 Egípcios, Assírios, Babilônios, Persas, Gregos, Romanos, entre outros.

76 Os grupos que vemos em Mateus em situação de tensão, são grupos que foram se formando em razão das circunstâncias e do momento. Por exemplo, os fariseus, que não era um grupo novo, em Mateus, assumem uma nova identidade: os representantes do judaísmo em formação. Da mesma forma os seguidores de Cristo. Em Mateus os vemos em luta pela defesa de sua identidade como cristãos judeus. Essa situação de tensão e de disputa por definição de identidade e por poder, estão refletidas no Evangelho de Mateus e constitui o pano de fundo para a elaboração desse Evangelho.

Assim, o programa alternativo apresentado à comunidade mateana, no Evangelho de Mateus, traz o tema da paz, em Mateus 10, 34-36, aparentemente de forma inversa ao que era esperado de um Messias, e propagado pelas tradições judaicas, que surgiram no período do segundo Templo, conhecido como “o príncipe da paz” (Is 9,6). As correntes tradicionais judaicas diziam que “deve-se esperar a paz perfeita da salvação messiânica”, o Messias é o príncipe da paz (Is 9,5-6) e, em seu Reino, haverá paz sem fim (MACKENZIE, 2011 p. 644).

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