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Interpretando Mateus (10,34-36)

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Cada época privilegia um tipo de interpretação da Bíblia. Geralmente, quem interpreta está inserido em determinados momentos históricos, dentro de um contexto onde se encontram cristãs e cristãos envolvidos em determinadas comunidades (FERREIRA, 2011, p. 12). Outras considerações acerca de interpretação podem ser levantadas. Como a sociedade palestinense à época de Jesus e dos Evangelhos era uma sociedade estratificada, os escritos produzidos ou interpretados a esse tempo também sofreram essa influência. Ou seja, é preciso determinar a origem das interpretações, a partir do exame dos contextos no qual foram produzidos.

93 Os evangelhos são considerados literatura popular e foram pensados e elaborados com este critério. Mosconi (2004, pp. 18-20) apresenta algumas características da literatura popular, presente nos evangelhos: lê o passado em função do presente, é existencial; é feita de pequenos textos. É fragmentária; não aparecem nomes de autores; gostam de enfeites para salvar a verdade dos fatos, usa linguagem simbólica e parabólica, pois isso ajuda a gravar mais os recados;

Os evangelhos são textos compostos por militantes do Reino e a eles se destina, bem como a pessoas que queiram nele entrar. Quem lê os Evangelhos segundo os critérios da literatura moderna e racional, corre o perigo de manipular e violentar os textos. Não vai sintonizar-se com o estilo e o coração dos evangelhos. A literatura popular é científica e séria, tanto quanto a literatura clássica e moderna (MOSCONI, 2004, p. 21).

Este capítulo traz uma interpretação do dito atribuído a Jesus, no Evangelho de Mateus (10, 34-36) considerando o contexto político, social, religioso no qual a comunidade mateana estava inserida, mas também considerando outras

possiblidades de leituras e interpretações de textos bíblicos tidos como literatura55.

É com esse olhar sobre os Evangelhos como literatura popular, produzido pelo povo pobre, cuja única riqueza era a esperança, que serão feitas considerações sobre a perícope de Mateus 10-34-36.

Toda criação humana leva consigo, inevitavelmente, o selo da história. E a literatura não é uma exceção. Nasce e se desenvolve em estreita relação com um país e seu processo histórico. Está escrita por e para homens de uma sociedade concreta e, por isso, reflete de algum modo sua organização social, sua cultura e o conjunto de suas crenças. Para compreender uma obra literária, portanto, será preciso levar em conta todo esse pano de fundo (ABADÍA, 2000, p. 29).

Enquanto a pax romana tinha a finalidade de trazer a acomodação, a ordem, deixar as coisas confortáveis para os romanos, a mensagem de Cristo, ao contrário sugeria a desacomodação, a desordem, a investida contra a ordem imposta. Nesse sentido a espada seria um instrumento essencial para essa desacomodação. Enquanto os não seguidores de Cristo encontram o desconforto pela desarmonia proposta pela Paz de Cristo, os seus discípulos encontram a segurança no Reino dos

55 Além de ser uma manifestação estética, a literatura é, pois, um fenômeno social. A ação da sociedade

manifesta-se: na própria obra, que, direta ou indiretamente, dá testemunho dessa sociedade; no autor, que deve tomar partido diante do sistema de instituições, convenções, sentimentos, crenças e doutrinas que o cercam; e na aceitação de tais ou tais obras por parte do conjunto da sociedade (ABADÍA, 2000, p. 29)

94 Céus. Essa segurança se torna uma tônica devido ao ingrediente indispensável à paz que é a Nova Justiça (Mt 5).

A nova Justiça (dikaiosyné), a eirene (paz), e o Reino dos Céus (Basiléia ton Ouranon) são temas que confrontam o projeto de paz de Roma. Nesse contexto a espada, quanto à sua natureza denota divisão e julgamento de Deus à elite, Para Gallazzi (2002, p. 202) paz não tem nada a ver com neutralidade, com ausência de confrontos, com estar em cima do muro, portanto o conflito seria inevitável, pois a decisão por Cristo, por si só já seria suficiente para dividir as famílias. Este conflito, naturalmente, encontraria sua última instância nas famílias, tendo iniciado, nas cidades, nas relações interpessoais indo desde o alto escalão do poder até se refugiar nas casas e nas famílias. Isto fica claro em todo o capítulo (10) do Evangelho de Mateus.

A missão confronta o mundo de injustiça, poder, ambição, compromissos falsos e morte de Roma, com a misericórdia e justiça de Deus. Desafia os interesses pessoais apesar do conflito, divisão, sofrimento e rejeição. Oferece uma alternativa para a missão de Roma que utiliza a violência militar e o imperialismo cultural a fim de governar as nações “com seu poder”. A resposta à missão envolve consequências escatológicas de vindicação ou condenação (CARTER, 2002, p. 304)

Para melhor compreensão, portanto, do contexto vital do livro de Mateus, deve- se considerar que a comunidade e o grupo fragmentado que restou do judaísmo lutavam para estabelecer, ordenar e definir suas crenças e sua vida. (OVERMAN, 1997, p. 79). O grupo dos fariseus se impunha na disputa pelo poder e na reconstrução do judaísmo e o grupo de Mateus tentava sobreviver entre eles com suas diferenças.

Crucial para compreender a comunidade judaica de Mateus comprometida com Jesus, é o reconhecimento de estar envolvida numa luta local no interior de uma sinagoga por um lugar em uma tradição comum. Eles partilham as mesmas tradições bíblicas. Eles partilham o mesmo interesse sobre a presença divina, em conhecer a vontade divina, em encontrar favor e perdão divinos, no culto, em viver fielmente. Contudo, existe um motivo que causa divisão, a saber, a pretensão de que Jesus ocupa um papel central nessas tradições, que as interpreta definitivamente e que manifesta a presença salvadora do império de Deus. (CARTER, 2002, p. 63).

O evangelho de Mateus enfatiza que Jesus perdoa os pecados, que Ele manifesta a presença de Deus e que interpreta a sua vontade. Tais pretensões a respeito de Jesus entrará em choque com as pretensões dos líderes judeus. Os atritos

95 se tornam constantes e inevitáveis e Mateus começa a considerar a possibilidade de uma separação, uma divisão.

34 "Μη`νομισητε οτι ηλθον βαλειν ειρηνην επι την γην. Ουκ ηλθον βαλειν ειρηνην σλλα μαχαιραν

Não penseis que vim trazer paz sobre a terra; não vim trazer paz,

mas espada.

Neste logion, cuja situação original não é transmitida56, encontra-se

expressamente o termo paz, dito por Jesus, que se recusa ao papel de pacificador. De que espécie de paz Jesus falava? (WENGST, 1991, pp. 90-91).

Considerando a origem do movimento de Jesus, que era galileu, seus

seguidores e discípulos57 certamente não pertenciam à nobreza, nem à elite religiosa.

Então a paz proclamada por Jesus e anunciada juntamente com a chegada iminente do Reino dos Céus, não poderia ser a paz do mundo. Naturalmente, mundo aqui simboliza o poder de Roma e todos os seus aliados. Como o domínio do mundo parece não conhecer limites, ele se imiscui nos assuntos íntimos da fé judaica, provocando reação por parte dos adoradores de Javé, agora presente em Jesus, o Cristo.

Esses adoradores, que conservaram sua fé, são os simples, os excluídos do sistema. A reação vem por parte desse grupo. A espada era a forma de Jesus anunciar que Deus estava lutando ao lado desse povo, e que o juízo viria para os transgressores. Ao povo caberia a fidelidade no seguimento, pois o Emanuel, estaria ao lado deles, ao lado da comunidade, até à consumação dos séculos.

Importante observarmos que sempre houve resistência por parte de grupos e movimentos, por interesses diversos, na história de Israel. Basta observarmos a quantidade de grupos e movimentos que surgiram no período pós-exílio, (Cap. 2). Ora, se Israel sempre lutou, por meio de seus representantes, porque agora Mateus acha oportuno enfatizar que Jesus traria a espada, antes da paz?

Se o anúncio de Jesus, na abertura do Evangelho era a chegada do Reino dos Céus e da Nova Justiça, significando em última análise a paz em sua plenitude, conforme esperada por todo Israel, então qual a razão desse dito em Mateus? Entre

56 Mateus e Lucas oferecem-no em contextos muito diferentes. Lucas o traz no final de um longo

discurso, enquanto em Mateus está inserido no discurso do envio. Daí surte que, na fonte de discursos, ele estava em conexão frouxa, sem enquadramento especial (WENGST, 1991, p. 91).

96 outras coisas podemos dizer que a comunidade mateana parece que estava precisando de um sopro de avivamento, de esperança. Com o soerguimento dos líderes fariseus, com as perseguições por toda parte, a rigidez do sistema do mundo, a expulsão deles das sinagogas, parece que houve um certo recuo por parte de alguns e uma certa incerteza por parte de outros.

Parece ser esta a justificativa para a colocação desse dito justamente no capitulo missionário (10) que enfatiza a missão dos discípulos. Era preciso fortalecer as consciências já cansadas de tanta luta e ao que parece muitas quedas. Agora seria necessário reunir todas as forças e enfrentar o inimigo, pois o próprio Deus estaria com eles, na pessoa de Jesus ressuscitado.

Com este dito, o foco do capítulo 10, (a missão dos discípulos) se move da missão dos discípulos, para a missão de Jesus com três frases: Eu não vim (Mt 5,17; 9,13). A abertura não penseis contraria uma visão errada (5.17) que vim trazer paz à terra. Essa negativa é surpreendente depois da benção de Jesus aos fazedores de paz (5,9) e a instrução a estender a paz (10,13). Várias tradições entendiam que Deus inauguraria uma era futura de paz e plenitude (Is 8,23-9.7; 11,6; 66,25; Zc 9,9-10). Uma segunda declaração negativa enfatiza a contradição (Não vim trazer a paz) (CARTER, 2002, p. 316).

A plenitude dos propósitos de Deus, o reinado de paz, ainda não alvorecera no ministério de Jesus, antes disso viria a espada do juízo para os transgressores. Para alguns a espada, nesse contexto, seria a punição da parte de Deus sobre Israel, por terem transgredido as Leis da Aliança. Parece não ser esta a mensagem de Mateus, ela estaria fora do contexto. Mateus estava considerando como transgressores, não Israel, pelo menos, não os seguidores de Cristo, os judeus/cristãos, mas os infiéis, os aliados de Roma e dos líderes falsos.

35. Ηλθον γαρ διχασαι ανθρωττον Vim, pois, para interpor/ virar o homem

Após 70 d.C. as comunidades cristãs existentes na Palestina se dispersaram e

deram origem a várias outras comunidades em diferentes regiões do Império. Os

membros dacomunidade mateana, em dado momento, não serão mais bem-vindos

nas sinagogas dos judeus também dispersos. As pretensões a respeito de Jesus entrarão em choque com as pretensões dos líderes judeus. Os atritos se tornam constantes e inevitáveis.

97 Nesse ambiente de divisão, a primeira lealdade haverá de ser com Jesus; não se pode renunciar a ela por fidelidade a vínculos familiares.

Essa segunda parte desse dito revela com mais clareza qual a espécie de paz Jesus se referia; a família, no modelo patriarcal-hierárquico aqui, representa a revolução provocada pela parte que sofre as tiranias do poder. Uma família se organiza tendo o pai no vértice do poder, de onde emanavam as ordens. Surpreendentemente não se diz agora que Jesus traz um tempo de decisão, no qual não haverá discussões em casa e, então, também separação (WENGST, 1991, p. 91)

Em Mateus Jesus fala de modo unilateral; a divisão vai apenas de “baixo” contra “cima”: Os costumes tradicionais, o direito e a ordem estão dissolvidos. Visto a divisão ser o fim explícito da sua atuação, ela não deve ser compreendida de modo negativo

(WENGST, 1991, p. 91)58.

A reformulação, em Lc 12, 51-53, baseia-se, seguramente, nas experiências da comunidade segundo as quais, por causa da profissão de fé em Jesus, havia separações dolorosas na esfera mais íntima. A isto corresponde a formulação no estilo de profecia e a isto corresponde também a reciprocidade. Um dito paralelo, expressão das mesmas experiências e formulado com base nelas encontra-se em Mc 13,12s par. Lucas 12,52s, reflete-se sempre aqui à experiência da comunidade. Mt 10,34s é caracteristicamente diferente. Como poderia esta formulação, que não correspondia à experiência da comunidade, ter sido formulada nela? Ela, tem, portanto, que remontar ao próprio Jesus (WENGST, 1991, p. 92).

Na narrativa de Mateus os adversários de Jesus são os líderes da comunidade judaica, as instituições que eles controlam as interpretações da lei e dos costumes judaicos que propõem. Ao apropriar-se dessa narrativa o autor de “Mateus dirige sua polêmica contra líderes rivais emergentes e seus programas concorrentes para entender e viver o judaísmo no fim do século I. Estes grupos têm em comum a disputa pelo coração do povo judeu (SALDARINI, 2000, p. 317)

É provável que a assembleia de Mateus se reunisse em uma casa e tivesse por modelo a família. O uso frequente de terminologia de parentesco para as relações entre os membros e com Deus e Jesus reflete o contexto de uma família (SALDARINI,

58 Jesus não se queixa da divisão vinda de “baixo”, é isso exatamente o que ele quer (WENGST, 1991,

p.91).

36 κατα του πατρος αυτου και θυγατερα κατα της μητρος αυτης και νυμφην κατα της πενθερας αυτης και εχθροι τον ανθρωπον οι οικειακοι αντον

36 contra o pai dele/seu, e a filha contra a Mãe dela/sua; e a nora contra a sogra dela/sua. Os inimigos do homem serão os da sua própria casa. (Interlinear, 2008, p 39).

98 2000, p. 318). Os inimigos do homem serão os da sua própria casa, pode ser compreendido como um momento tenso entre os representantes do judaísmo e a

comunidade de Mateus, que até então formavam uma única comunidade59.

Este momento de tensão se reflete em algumas passagens do Evangelho de Mateus e são constatadas algumas situações conflituosas específicas como: “injúrias verbais, açoitamento em sinagogas, entrega aos sinédrios/tribunais locais, perseguição ou expulsão e casos de homicídio” (STEGEMANN e STEGEMANN, 2004, p. 270).

59 O conflito entre o grupo de Mateus e outros judeus, até mesmo as autoridades comunitárias, sugere

que a comunidade maior considera o grupo mateano dissidente. Isto é, não estão fora da comunidade judaica, mas são censuráveis para a maioria da comunidade (SALDARINI, 2000, p. 318).

99 CONCLUSÃO:

O JESUS DE MATEUS NÃO SE CONFORMA COM O SISTEMA VIGENTE

O Movimento de Jesus foi considerado popular. Surgiu na Galileia, e é de lá que Jesus envia os seus discípulos em missão. O foco principal da missão é sem dúvida “as ovelhas perdidas da casa de Israel”. Por que? Por que os seus atuais representantes, que eram os fariseus, ao tempo de Mateus, estavam distantes do povo. Seus interesses agora, eram interesses de uma classe elitizada. A interpretação que faziam das Escrituras não levavam em conta a questão da justiça e do Reino dos Céus, contidos nas Escrituras desde sempre.

No capítulo 10 de Mateus, fica claro que Jesus enviou os discípulos com poderes tais como os Dele, com uma missão bem definida e uma mensagem igualmente importante. Esta mensagem era a chegada do Reino dos Céus e da Nova Justiça.

Quando o Evangelho de Mateus foi elaborado, ou finalizado, a comunidade mateana estava fazendo memória. E ao fazer memória relembrava os ditos de Jesus e os colocava em ordem de forma a atender seus objetivos. Este capítulo de Mateus tinha como finalidade esclarecer, enviar, instruir, capacitar e advertir os enviados. Quem eram eles? Eram os discípulos de Jesus, os pobres da Galileia. Eles foram colocados na narrativa para representarem a comunidade mateana. Como eles deveriam ir? Deveriam ir sem dinheiro, sem duas túnicas, sem provisão, sem patrocínio algum. Por quê isso? Para se identificarem com os igualmente sem nada. O que deveria ser anunciado? Primeiramente a chegada do Reino dos Céus e do porta voz de Deus para o povo, Jesus. E depois a Nova Justiça, que nada mais era do que a interpretação correta das Escrituras.

O conteúdo dessa mensagem, bem como os seus destinatários, pode ser visto nos capítulos 5 ,6 e 7 do Evangelho de Mateus. Mateus (5, 1- 12) relata o sermão da montanha, onde Jesus esclarece quem são os felizes, os bem-aventurados, os portadores do Reino dos Céus e da Nova Justiça: são eles, os pobres de espírito, os que choram, os misericordiosos, os que tem fome e sede de justiça, os que são perseguidos por causa da justiça, os mansos, os limpos de coração.

Por quê haviam ovelhas perdidas na casa de Israel? Em Mateus há uma forte denúncia das práticas dos líderes religiosos comprometidos com o sistema político-

100 social vigente. Essas ovelhas, guiadas por esses líderes, estavam desassistidas, pois ao tempo de Mateus, a liderança dos fariseus, que eram uma classe com pretensões de liderança religiosa, haviam se distanciado do projeto de Deus, de assistência aos pobres e necessitados, de inclusão, de senso de comunidade e buscavam seus

próprios interesses, por isso as “ovelhas da casa de Israel” estavam perdidas, sem

representantes justos.

Essas ovelhas não estão somente perdidas, elas estão massacradas (GALLAZZI, 2012, p. 184). Mateus acrescenta aos poderes dados aos discípulos em missão o de ressuscitar os mortos. A sua visão desse massacre das ovelhas se assemelha à visão de Ezequiel capítulo 37 (Visão do vale de ossos secos). A causa desse massacre são as sucessivas dominações de reis e imperadores. Importante lembrarmos que Mateus está em um nítido conflito com a liderança religiosa judaica. Ele os acusa de serem infiéis a Deus e à interpretação da Lei. Acusa-os ainda, de terem se aliado ao sistema massacrante e injusto de Roma. Mateus os coloca junto dos saduceus e demais líderes do povo, escarnecendo de Jesus (Mt. 27,41); estes se reúnem, em dia de sábado, com Pilatos para solicitarem uma guarda para o tumulo de Jesus, chamando-o de enganador (Mt. 27, 62-66).

Jesus é o centro da controvérsia entre os judeus que o seguiam e os judeus representantes do judaísmo nascente. A interpretação da Lei é outro fator de controvérsia, particularmente porque Mateus entendia como legítimo intérprete somente Jesus, o Cristo. Essa pretensão confrontava os interesses dos representantes do judaísmo em formação, os fariseus. O Evangelho de Mateus traduz esse momento de divisão trazendo a tensão da narrativa para o cenário, e a consequente separação desses dois grupos, considerados irmãos: o judaísmo e o cristianismo (Mt 10,36).

O sistema imperial romano era cruel, tirano e usava a força das armas para impor seu domínio. Esse sistema age, desrespeitando a religião, a cultura, a fé, a esperança, a história milenar dos seus dominados, especialmente os judeus. Aqui é oportuno perguntarmos pelo judaísmo que desde o início dessa pesquisa, tem sido alvo de interesse, para identificarmos em sua trajetória as principais tradições que deram origem ao cristianismo. São várias tradições conhecidas no Antigo Testamento, eloísta, javista, deuteronomista, cronista, que tentam interpretar o judaísmo no decorrer de sua história. No período de Jesus já não é possível identificar com clareza

101 essas tradições, pois muitas correntes e movimentos com traços de uma ou de outra estão presentes na sociedade palestinense.

Desses movimentos, destaca-se o Movimento de Jesus e seu representante. A história de Jesus é contada nos Evangelhos. O Evangelho de Mateus apresenta traços característicos de trabalho de resistência, de denúncia, e ao mesmo tempo de incentivo. Essas características são perceptíveis na narrativa e na interpretação dos textos.

Esta pesquisa, cuja finalidade é a interpretação da perícope de Mateus (10,34- 36), conclui que a hipótese proposta inicialmente, a de que “O Jesus de Mateus não se conforma com o sistema vigente e o subverte”, só foi possível ser constatada, após um prolongado período trabalho, de estudo e de muitas contradições. Ainda acrescentando que a maior parte dos intérpretes de Mateus, quando diante deste texto, se limita a dizer que ele se refere aos sofrimentos de Jesus, pelos quais os seus discípulos também passariam.

Contrariando a maioria, esta pesquisa aponta que este texto se refere também, ao caráter profético da missão de Jesus. Este dito de Jesus, usado por Mateus e agora aplicado à missão da sua comunidade, tem a finalidade de denunciar as injustiças do sistema político e religioso-social vigente (v 34), ao mesmo tempo que anuncia as consequências desta missão (v 35). Esta injustiça é o reflexo da má interpretação da vontade de Deus expressa nas Escrituras e interpretada de forma equivocada por líderes que “atam pesados fardos e os colocam sobre o povo” (Mt 11, 28-30; 23,4).

Considerando que Mateus, agora, é quem interpreta este dito, temos que considerá-lo dentro de seu contexto. Mais especificamente no capítulo 10, quando parece destoar da missão dos fazedores de paz. O que temos, então? A justaposição entre “paz” e “espada” revela o caráter da missão de Jesus e agora também dos seus discípulos. A paz a ser implantada era aquela ofertada por Deus que se baseava na justiça, na inclusão, no perdão, no acolhimento, na renúncia. Esta paz trazia consigo a oportunidade de uma vida plena com Deus e com o próximo, apesar de Roma e de todo o sistema.

Como isto seria possível? Só por meio da resistência. A espada seria um importante instrumento para a desestabilização do sistema vigente. Ela traz desconforto, inspira a resistência, a persistência. O anúncio da chegada do Reino dos

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