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Crítica da Redação: Espada

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3.1 A Paz para os Judeus

3.1.3 Crítica da Redação: Espada

O capítulo 10 do Evangelho de Mateus é conhecido como o capítulo do envio. Este capítulo narra o envio dos discípulos de Cristo em missão com as devidas recomendações. “As ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10,6) seriam o alvo desta missão. A atribuição principal da missão era o anúncio da chegada do Reino dos Céus,

89 a cura das enfermidades e a libertação de todo tipo de espírito imundo (OLIVEIRA, 2014, p 114. Em (Mt 10,11-15), estão relacionadas estas recomendações: em qualquer cidade ou aldeia em que entrassem, deveriam se informar sobre quem nela era digno, e ali ficarem hospedados. Aqui surge outro componente importante no projeto missionário: saber quem era digno. Digno de que?

Gallazzi (2012, p. 202) explica que ser digno significa precisarmos dele (de Jesus), mais do que de nossos pais, mais do que de nossa própria vida. Significa saber sentir que esta é a única relação que não pode ser rompida, em hipótese alguma. Acrescenta ainda que à palavra “digno” corresponde o verbo “receber”.

Jesus, que começou dizendo aos apóstolos que deviam saber dar, e dar de graça (10,8), termina falando que o apóstolo deve ser recebido e saber receber. É uma relação de mão dupla que faz com que sejamos capazes de construir uma nova casa, onde as relações não sejam determinadas pelo sangue, mas pela capacidade de receber (GALLAZZI, 2012, p. 203).

A orientação dada aos seguidores de Cristo vai ainda mais além: “Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim. E quem ama o filho e a filha mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10, 37). Para Jesus a família não é um valor absoluto, nem prioritário na concepção do Reino de Deus. “Se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher e filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc. 14,26) (ALLGAYER, 1994, p. 74).

O manancial do amor autêntico alimenta-se do silêncio de uma doação completa e não do arrebatamento dos sentidos ou de manifestações ostensivas. Odiar pai e mãe” e a própria vida”, na lógica de Jesus, é promover o afeto familiar e a autoestima em grau máximo. O amor tira alento da renúncia a bens inferiores ao próprio amor. Amor que não é “amor” de gueto, de segregação, de grupo fechado. Somente é digno do Homem-Deus o amor infinito (ALLGAYER, 1994, p. 75).

O foco central da missão de Jesus é exatamente este: enquanto para uns haverá salvação, para outros o julgamento. A negação de Jesus, expressa em uma existência missionária, significa uma negação diante de Deus (CARTER, 2002, p. 316).

A missão confronta o mundo de injustiça, poder, ambição, compromissos falsos e morte de Roma, com a misericórdia e justiça de Deus. Desafia os interesses pessoais apesar do conflito, divisão, sofrimento e rejeição. Oferece uma alternativa para a missão de Roma que utiliza a violência militar e o imperialismo cultural a fim de governar as nações “com seu poder”. A resposta à missão envolve consequências escatológicas de vindicação ou condenação (CARTER, 2002, p. 304)

90 Esta é a condenação no dia do julgamento (CARTER, 2002, p. 316). Exemplos focais de rompimento familiar pela aceitação de Cristo, se dava quando um grupo familiar, composto por parentes, servos e escravos, com normas comportamentais religiosas e cultuais eram determinadas pela família e algum membro dessa grande família divergia do outro acontecia o rompimento (Mt 10,35-37). Reconhecer Jesus como Messias, por exemplo, seria causa de rompimento num grupo só de Judeus. Aceitar a renovação proposta por Mateus ao judaísmo seria outra (SALDARINI, 2000, p. 172).

No decorrer da narrativa do capítulo (10), conhecido como o sermão do “envio” o foco da narrativa é desviado da missão dos discípulos para a missão do próprio Jesus 10, 34-36. “A missão dos discípulos imita a missão de Jesus e deriva dela. Esta missão reivindica lealdade exclusiva contínua a Jesus. Seu impacto demolidor sobre

as famílias significa perseguição” (CARTER, 2002, p.316). Ao desviar o foco da

missão dos discípulos para a de Jesus, Mateus nos leva para a característica profética da mensagem de Cristo, cuja finalidade é primeiro anunciar e denunciar. A segunda característica é consolar e confortar.

Os romanos são os saqueadores do mundo.... se o inimigo é rico, eles usurpam; se é pobre, eles ambicionam dominá-lo. Não se sacia o Leste nem o Oeste... Eles roubam, massacram, pilham, e dão a isso o nome de ‘império”; e onde implantam a desolação, dão-lhe o nome de “paz”. (HORSLEY, 2004 p. 21).

Ao negar que viera trazer a paz e sim a espada, Jesus estaria deslegitimando a pax romana e consequentemente denunciando sua violência contra os fracos e desfavorecidos (Mt 5). Ao mesmo tempo o anúncio da espada nesse cenário evoca não a violência por si só, mas o julgamento de Deus, a justiça Divina, a reviravolta nas estruturas sociais, políticas e religiosas. A espada interfere nas relações pois traz comprometimento por parte de quem ouve e recebe a mensagem do Cristo. A espada como arma de guerra é símbolo da palavra de Cristo que divide, que provoca, que questiona, que exige posicionamento.

Diante de uma paz imposta pela violência, para beneficiar apenas uma camada da elite, a justiça de Deus, que ouve o grito dos oprimidos, entra em cena e Jesus vem oferecer uma paz, não como a de Roma (Jo 14,27), por isso essa paz encontraria resistência. Essa resistência é no sentido de não permitir o confronto, não permitir sua implantação, mas a mensagem profética de Jesus encontrou eco na fé dos seus

91 seguidores e como um grão de mostarda vai se avolumando e aglutinando cada vez mais seguidores. A espada divide, mas este é o caminho da verdadeira paz.

A palavra sobre a paz (vv. 11-15) indica pela primeira vez a dimensão escatológica da ação dos discípulos: são portadores do bem messiânico por excelência, a paz. Realizam a bem-aventurança dos que promovem a paz. Mas, mesmo este bem não se impõe. Ele deve ser recebido livremente. Entretanto, quem o recusa, torna-se seriamente responsável por esta recusa. A missão é portadora de um julgamento: os missionários são portadores da verdade que entra em confronto, e encontra resistência (v. 15) (GORGULHO e ANDERSON, 1981, p. 106).

Os seguidores de Jesus deveriam estar firmes e seguros na verdade da sabedoria de Jesus para enfrentar os ataques dos grupos que representam o sistema da Lei Mosaica (V. 16) (GORGULHO e ANDERSON, 1981, p. 107)

Os fariseus, os saduceus e os escribas são comparados a serpentes venenosas. O confronto com esses grupos suscitará a perseguição que poderá ser no campo religioso e ideológico pelo confronto com a sinagoga e no nível político com reis e governantes. “Os discípulos não agirão por si mesmos, terão a força do Espírito do Pai (vv. 19,20). O confronto que os discípulos enfrentam é uma luta de Espírito a espírito (Mt 12,28), como a própria experiência de Jesus com seus adversários” (GORGULHO e ANDERSON, 1981, p. 107).

A verdade revela que a ideologia dos escribas e fariseus encobria a vontade de Deus, e eles a realizavam em interesse deles mesmos, e para manter o povo em dominação (GORGULHO e ANDERSON, 1981, p. 107).

A ação missionária é uma espada (vv. 34-36). Assim como a missão de Jesus é um julgamento decisivo, conforme a palavra do profeta (Mq 7,5), do mesmo modo será a ação do discípulo. A espada é a verdade que liberta. Ela provoca a divisão por causa da resistência e da defesa que os ouvintes lhe apresentam. A ação missionária dirige-se à liberdade e provoca uma tomada de posição. Ela desarticula as mentiras e as verdades aparentes que cimentam os interesses e o poder absoluto de pessoas e grupos na sociedade (GORGULHO, e ANDERSON, 1981, p. 110).

O aspecto escatológico deve ser considerado na expressão: “Não vim trazer paz à terra, mas espada”. Importante consideração feita por Carter quanto a este aspecto, sob o argumento de que:

A plenitude dos propósitos de Deus, o reinado de paz, ainda não alvorecera no ministério de Jesus. Ainda havia a necessidade da espada, evocando conflito, guerra, violência antes do estabelecimento do império do Reino dos Céus, que se daria num tempo futuro (CARTER, 2002, p. 316)

92 A terra como cenário da implantação deste Reino não estaria, portanto, madura para sua chegada. O evangelho não só propõe a ilegitimidade das estruturas construídas com base na dominação, como apresenta a alternativa vinda das margens. O Evangelho critica o patriarcado romano, e sugere um patriarcado Divino.

Com este dito Jesus recusa-se decididamente a legitimar e abençoar o status

quo de um mundo injusto e sumamente impacífico. Não foi para isso que ele

veio. Pelo contrário, ele trouxe a “espada” para dentro de tal “paz”, que é apenas pseudopaz. Como o contexto mostra, espada é imagem sugestiva para a divisão da casa, que procede de “baixo”; é metáfora para a dissolução, a partir de “baixo”, da ordem estruturada hierarquicamente e do domínio baseado na propriedade, para o desmascaramento e a destruição da paz aparente. (WENGST, 1991, p. 92).

O evangelho encerrou a série de milagres constatando que, por onde Jesus passava, nas cidades e povoados, a multidão estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor (Mt 9,36). Era preciso agir, ir ao encontro do povo. Mas Jesus adverte que o que espera os missionários são: perseguições, hostilidades, rivalidades (VASCONCELOS, et al, 1999, p. 62). Neste contexto, a espada de dois gumes, que é a palavra de Deus, traz o julgamento e anuncia a reviravolta histórica. Não ficará pedra sobre pedra até que venha o Reinado de Deus.

Jesus disse que não veio trazer a paz, mas a espada (Mt 10,34). O contexto indica claramente que a espada significa a hostilidade provocada pela fé nele. Mas em Mt 26, 52, fica claro que Jesus rejeita com veemência o uso da violência em sua defesa. Não é só isso, espada é não aceitação da situação vigente, é resistência. Espada é confronto exige decisão, exige adesão, não comporta conformismo.

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