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José Gil100 refere-se ao corpo enquanto uma “infralíngua” em constante comunicação com o mundo. Neste caso, o corpo ultrapassa os limites do biológico e se torna ator social. A noção de corporeidade que Gil desenvolve, a partir da teoria do corpo sem órgãos, proposta por Deleuze e Guattari,101, 102 aponta para algumas noções novas sobre a corporeidade: a do corpo real, e não a sua representação imaginária e simbólica. O corpo é lugar de investimento de desejo e emissão de pulsões desejantes: o corpo agencia o desejo por meio de seus orgãos.

A noção do corpo como uma máquina desejante e não como um organismo ou um teatro (fantasma e não corpo real), a noção de corporeidade, vai além do próprio corpo. Ultrapassa a idéia de corpo e contorno e corpo e vivências, que é o corpo da fenomenologia103 e a da teoria do corpo sem órgãos que implica numa idéia de inconsciente corporal.

Considerando a relação das corporeidades, europeu e sociedade Tupinambá, no caso do nosso objeto, o sujeito que escreve é Léry, portanto, pretendemos abordar o controle do corpo indígena através do que ele diz ou oculta sobre o corpo tupi a partir de seu prório corpo. Ou seja, através do espelhamento dos modos de fazer e de sentir da cultura européia quando representa o corpo Tupinambá.

97 Significado de antropofágica é usado como uma metáfora irônica, que será desenvolvida no decorrer da dissertação.

98 Os Tupinambá (o novo outro). 99 CERTEAU, 2010, p. 212.

100 GIL, J. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio D’água Editores, 1997, p. 37. Infralíngua: funcionamento do pensamento simbólico.

101 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs; tradução Aurélio Guerra Neto et al. São Paulo: Editora 34, 1999, V. 3.

102 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs; tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1997, V. 2.

Analisando a condição sensível de se relacionar e conhecer o mundo do sujeito que observa e os modos de representação de sua percepção sobre o outro: “As maneiras de sentir têm uma história que se revela por meio de uma hierarquização dos sentidos e se traduz pela acuidade e predominância de certos sentidos sobre os outros. Durante a Idade Média o tato foi, ao lado da audição, o sentido mais importante.”104

Na temporalidade de Léry, o corpo social – coletivo, medieval – havia sofrido uma normatização da hierarquização dos sentidos. O corpo popular105 num processo gradativo, é separado do corpo da corte e do culto,106 a visão passa a ocupar a condição de sentido superior. A condição sensível trata a maneira pela qual lidamos com a percepção: “diz respeito ao que os sentidos, a sensibilidade e os sentimentos geram de ético e estético em nossas escolhas públicas e privadas.”107

A operação histórica do corpo para Certeau é um trabalho alquímico108 e é organizada sublinearmente pelo corpo do autor escritor:

[...] ela transforma o físico em social; ela se credita do primeiro para construir o modelo do segundo; ela produz imagens de sociedade com pedaços de corpos [....] Para ser exato, eu deveria acrescentar que essa operação histórica é organizada em segredo pela experiência corporal de seu autor. O texto que apresenta modelos sociais tem como contraponto determinante as estruturações obscuras (tanto coletivas quanto individuais) do corpo do historiador.109

Em Léry, a escrita percorre a realidade e sabe o que este mundo diz, como se o mundo da oralidade estivesse à espera desse viajante competente para transformá-lo em conhecimento e em escrita. Para Certeau, a história credita aos documentos uma consciência que ele pode reconhecer e ela se desenvolver nas marcas dos processos da escrita, que é a escritura da história. Um processo que se constitui pelos vestígios deixados nos documentos e pelos trabalhos dos historiadores. O trabalho do historiador é ordenar essas marcas ou esses dejetos, ordenar a massa de fragmentos e juntá-los. A história constrói o passado sobre si, e é na modernidade que a história toma consciência de si.

104 HAROCHE, Claudine. A condição sensível. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria Ltda, 2008, p. 199. 105 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Media e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo: Huicitec, 2010.

106 Id.

107 HAROCHE, op. cit., 2008, cf.: Orelha do livro.

108 CERTEAU in VIGARELLO, 2002, p. 409: “Trabalho alquímico da história: ela transforma o físico em social; ela se credita do primeiropara construir o modelo do segundo; ela produz imagens de sociedade com pedaços.”

Nesse pensamento, o processo de trabalho de Léry foi o de usar o selvagem para refletir sobre si. Portanto, em seu texto aparece a palavra instituída como lugar do outro, a voz do outro não tem escuta, e o texto gira em torno de representações sobre o outro, o selvagem. A dimensão que a oralidade adquire na relação europeu-indígena, e a construção do outro nesses relatos do encontro, é a dimensão da construção do selvagem e, consequentemente, o gesto da escrita de representar o outro é o que irá criar o corpo-social-selvagem.

Certeau toma como referência o relato de Léry na observação do espelhamento europeu no indígena: “ainda que suponha tradição medieval de utopias e de expectativas onde já se esboçava o lugar que o “bom selvagem “ virá preencher, Jean de Léry nos fornece um ponto de partida “moderno. Na verdade assegura uma transição.”110

Há, neste espaço da relação, uma operação de rede de analogias, onde a “posição do oral e do escrito se determinam mutuamente.”111 Para Certeau, a escrita é também o espaço da diferença que coloca o ocidental em posição de superioridade e o indígena num lugar de inferioridade:

Entre ‘eles’ e ‘nós’ existe a diferença desta escrita “seja santa seja profana” que imediatamente põe em causa uma relação de poder. [...] Os ocidentais têm a

superioridade. Acreditam que seja um dos dons singulares que os homens da parte de cá receberam de Deus. Seu poder cultural é referendado pelo absoluto: isto não é apenas um fato, mas um direito, o efeito de uma eleição, uma herança divina.112

A escritura de Léry adquire acepção dupla, como argumenta Lestringant: “de uma parte é um registro técnico do pensamento que permite comunicar à distância apesar do intervalo dos espaços e dos séculos.”113 E, de outra, a escrita é a mensagem de Deus para a humanidade “ditada sob o Espírito”.114 Lestringant sugere a questão de saber “se um povo sem escrita tem acesso à verdade da qual a Bíblia é depositária.”115 Aqui emerge um dilema: o da postura protestante e o da católica em relação à cristianização do indígena. O protestante insiste na relação imediata e direta entre a Palavra de Deus, depositada no livro santo, e o crente. A mediação católica, ao contrário, se dá entre o corpo eclesial e a tradição exegética.

110 CERTEAU In VIGARELLO, 2002, p. 214. 111 Ibid., 2002. p. 212.

112 Ibid., 2002, p. 216-17.

113 LESTRINGANT, Frank. Jean de Léry, ou l’invention du sauvage. Paris: Honoré Champion Éditeur, 1999, p. 110.

124 Id. 115 Id.

Segundo Certeau, a escrita possui um poder cultural, ela assinala a diferença e a separação selvagem-civilizado, a escrita “é o contra-sinal do absoluto, não se trata de simplesmente um fato, mas de um direito, o efeito de uma eleição, uma herança divina.”116 Em Léry, os Tupinambás apresentam a marca da diferença: são selvagens em relação aos que conhecem a escrita sagrada e são iluminados pelo Espírito santo. Selvagens que estão “abandonados aos seus sentidos, e deixados em seu estado de cegueira”, porque não conhecem a escrita.117

Ampliando a questão sobre a hierarquização dos sentidos, abordaremos a representação do corpo do indígena atribuída à condição de selvagem. Como diz Certeau,118 quando se trata dos relatos de viagem do século XVI, a diferença nos modos de criar cultura emerge da condição de estar no mundo: “o selvagem está no mundo do sensório e o civilizado está no mundo da razão”.

Para Certeau, a escrita da Histoire de Léry ocupa o sentido de quem escreve “se o sentido passa para o lado do que faz a escrita (ela constrói uma ‘experiência’ tupi – como se constrói uma experiência física) reciprocamente o selvagem é associado à palavra sedutora. O que a literatura de viagem está produzindo é o selvagem como corpo do prazer.”119

Quais espelhamentos da condição sensível do observador-escritor quando define a condição selvagem nesta perspectiva da diferença: civilizado/superior=razão e selvagem/inferior=sensório?

Quando Léry chega ao Brasil, a condição sensível do corpo europeu culto, cristianizado, já é condição cristalizada e em processo de afirmação. No discurso de Léry, pastor huguenote, o corpo é central nas descrições do Novo Mundo: animais, homens, nudez, comida. O que leva a pensar no paradoxo: mas não seria o temor diante deste outro não ocidental, deste encontro de alteridades corporais? Do encontro de um corpo cristianizado com um outro “não cristão”?

Já na primeira imagem do Tupinambá em Léry aparece a possibilidade de pensar o espelhamento do corpo cósmico carnavalesco,120 ao descrever a atitude dos índios que ganharam de presente roupas ocidentais:

116 Ibid., 1999, p. 103.

117 Ibid., 1999, p. 104.

118 CERTEAU in VIGARELLO, 2002, p. 226. 119 Id.

120 BAKHTIN, 2010, p. 51-123, sobre o baixo material e o riso: “A estética do rito do corpo carnavalesco associa-se ao riso […] Na Idade Média a Igreja defendia a ideologia da seriedade legalizando para fora da Igreja, o culto, o rito das festas populares, excluindo dessas manifestações do rito católico a alegria, o riso e a burla. O que originou as formas puramente canônicas ao lado das formas cômicas. Os ritos do riso se alocam em torno,

Ao sentarem-se no escaler os índios arregaçaram-se [as camisas presenteadas] até o umbigo a fim de não estragar as vestes e descobriram tudo que convinha ocultar, querendo, ao despedir-se, que lhes víssemos ainda as nadegas e o traseiro. Agiram sem dúvida como honestos cavaleiros e embaixadores corteses. Contrariando o provérbio comum entre nós de que a carne é mais cara do que a roupa, revelaram a magnificiência de sua hospedagem mostrando-nos as nadegas, na opinião de que mais valem as camisas do que a pele.121

Quando Léry descreve a festa dos Tupinambá no ritual da antropofagia e na simples festa para beber, percebemos a sua perspectiva da dimensão corpo cósmico carnavalesco e o seu espelhamento no corpo cósmico índio:

Mas é principalmente quando emplumados e enfeitados que matam e comem um prisioneiro de guerra em bacanais à moda pagã, de que são sacerdotes ébrios, que se faz interessante vê-los rolar os olhos nas órbitas. Mas também acontece sentarem-se em redes de algodão e uns em frente dos outros beberem modestamente; mas como seu costume é de se reunirem todos, de uma aldeia ou de muitas para beber (o que não fazem para comer), esses beberetes especiais são muito raros.122

Quando Léry chega ao Brasil, a condição sensível do corpo culto, cristianizado, na sociedade europeia seiscentista, já era condição sensível cristalizada e em processo de constante afirmação. Bakhtin sugere que o controle do corpo cósmico carnavalesco, o corpo do rito popular durante os festejos do carnaval, se dá na construção do corpo culto cristão e sério, ao longo da Idade Média. O controle gera resistência: o corpo cósmico carnavalesco vem da tradição das manifestações báquicas da Antiguidade pagã, que perduraram na Idade Média, as quais, embora transformadas, resistem à seriedade dos ritos oficiais da cristianização.

Ainda na reflexão de Bakhtin, o corpo culto é o “corpo sem buracos”, ou seja, a manifestação do corpo no mundo não passa pela percepção dos sentidos, a manifestação através do sensório deve ser controlada, domada.

Lery é pastor protestante, sua vinda ao Brasil seria também uma sondagem sobre a possibilidade de evangelização do selvagem, pois, segundo ele, o selvagem encontra-se na condição de entender o mundo através da percepção sensorial.

fora da Igreja e na festa. Tolera-se até a existência de um culto paralelo, de formas e ritos especificamente cômicos: a festa dos loucos, o carnaval, a festa do asno, etc.”

121 (LÉRY, 2007, p. 79). 122 (LÉRY, 2007, p. 132).