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A ESTETIZAÇÃO DO SELVAGEM NA ESCRITA CONQUISTADORA EM LÉRY

No fenômeno do corpo nu na arte da Renascença e na descoberta do Novo Mundo, na qual a nudez não é a representação na arte, mas é prática integrada na sociedade indígena, a nudez é tecida no comportamento cultural,204 o corpo nu faz parte da vida do indígena. A pergunta que se suscita é: qual dimensão desse acontecimento que o discurso de Léry revela?

Figura 5: The Golden Age, Lucas Cranach, the Elder, 1530. Fonte: BORNGASSER; RAUCH; GEESE, 2011, p. 366.

204 VIVEIROS DE CASTRO, 2011.

A nudez do corpo em movimento, em manifestação de linguagem, é tolerada quando sua representação não incita à lascívia e, sim, quando se associa à beleza divina do corpo. Isso permite que Léry “tolere” a nudez e o gesto indígena quanto ao que ela tem de beleza divina. Há uma “famosa” passagem de seu relato, tratada por Lestrigant, Certeau e Greenblatt, que retomamos agora sob a perspectiva da ambiguidade da representação de Léry em relação aos movimentos e gestos indígenas, que dançam e cantam nus, ora associados à semelhança de Deus ora associados à semelhança do demoníaco.

Em seu relato, entre assustado e maravilhado, Léry presencia uma cena religiosa dos Tupinambá durante a madrugada. Enquanto fazia os preparativos para continuar sua peregrinação a outras aldeias Tupinambá, Léry é presenteado com o movimento da chegada de 500 a 600 indígenas das vizinhanças que reúnem-se numa grande praça. Subitamente, os indígenas separam-se em três grandes grupos: os homens recolheram-se a uma casa, as mulheres entram em outra e as crianças numa terceira. Esse movimento de organização do espaço social indígena não se dá de acordo com uma hierarquização espacial, o que o diferencia do espaço hierarquizado, traduzido como civilidade européia. Há, sim, divisão de função de gênero, que também não se organiza numa hierarquização de valor social e de gênero. Léry suspeita tratar-se de acontecimento extraordinário quando vê caraíbas205 (fig. 6) entre os Tupinambá. Na organização dos grupos, Léry e seus intérpretes são colocados no mesmo espaço em que as mulheres.

É interessante como o escritor, num primeiro momento, descreve o acontecimento, relevando a espacialidade e o tempo, entre sons e silêncios, da cena que presenciou:

Já havíamos começado a almoçar sem nada ainda perceber do que pretendiam os selvagens quando principiamos a ouvir na casa dos homens, a qual distava talvez trinta passos daquela que estávamos, um murmúrio surdo de rezas; imediatamente as mulheres, em número de quase duzentas se puseram todas de pé e muito perto uma das outras. Os homens pouco a pouco erguiam a voz e os ouvíamos distintamente repetir uma interjeição de encorajamento: He, he, he.206

205 Cf.; LÉRY, 2007, p. 205, no título do capítulo XVI: “Religião dos selvagens da América; erros em que são mantidos por certos trapaceiros chamados caraíbas; ignorância de Deus.”

Figura 6: Bacchantes brésiliennes agitant des maracás, Antoine Jacquard, Les Divers Pourtraits et figures

faictes sus les meurs des habitants du Noveau Monde,(?), circa 1620. Fonte: LÉRY, 1994, p. 408.

Num segundo momento, o maravilhamento cede lugar ao medo do desconhecido e ao mesmo, e à analogia dos gestos das indígenas com a estética demoníaca do feio, do disforme, e do caos:

Mas ainda nos espantamos, porém, quando as mulheres por seu turno, a repetiram com voz tremula: - He, he, he, He.... Assim aconteceu durante um quarto de hora e nós não sabíamos o que fazer. Ao mesmo tempo urravam, saltavam com violência, agitavam os seios e espumejavam pela boca até desmaiar como vítimas de ataque epiléticos; por isso não me era possível deixar de acreditar que se tivessem tornado repentinamente possuídas do Diabo. Também os meninos se agitavam e se torturavam, no aposento em que se achavam encerrados e, embora já freqüentasse os selvagens há mais de seis meses e estivesse até certo ponto acostumado com seus costumes, confessarei que tive medo; ignorando o fim disso tudo, desejei achar-me longe dali.207

Com a volta à ordem, Léry descreve “possuído” pelo maravilhamento do belo e da harmonia do som e do silêncio: “Ao cessarem o ruído e os urros confusos dos homens, calaram-se as mulheres e os meninos; mas voltaram a cantar, mas dessa feita de um modo tão harmonioso que o medo passou e tive o desejo de tudo ver de perto.”208 A partir desse momento da estória Léry, que até então participava da cena como espectador, sente desejo de aproximação, de estar entre os selvagens homens, aos quais não via, apenas ouvia.

207 LÉRY, 2007, p. 210.

No desejo de vivenciar o episódio além do ouvido, que distancia a totalidade do corpo da experiência, ele transgride o espaço que separa civilizado-selvagem e, num misto de curiosidade medrosa e coragem impertinente, penetra no espaço proibido dos homens. Surpreende-se quando seu gesto transgressor não é punido, ao contrário, os homens continuam sua manifestação corporal e não se incomodam com a presença dele. Calmo, o viajante pode deleitar-se com a experiência e o prazer de ver: “Como as casas dos selvagens são em geral compridas, abauladas no teto e cobertas de ramos cujas pontas tocam o solo, abri com as mãos um buraco para ver a coisa à vontade.”209

O que acontece aqui em relação ao corpo civilizado de Léry? Podemos suspeitar que esse é um momento de alteridade indígena, em que a voz do Tupinambá se mistura à voz do europeu? Às conclusões de Certeau, de que neste momento do relato a condição sensível do observador é a do olho e a do ouvido associados ao prazer da estetização teatral do corpo e dos movimentos do corpo,210 acrescentamos que, neste momento do texto, transparece a hierarquização dos sentidos ou, a normatização da condição sensível no fragmento de texto de Léry: o ouvido e o olho apreendem o acontecimento da manifestação do corpo coletivo Tupinambá.

Certeau sugere que “o outro retorna sob a forma de ‘ruídos e urros’, ou de ‘doces e graciosos sons’. Essas vozes do fantasma se combinam com o espetáculo ao qual a operação observadora do olho e escriturária reduziu os Tupi. O espaço, no qual o outro se encontra circunscrito, compõe uma ópera.”211 O espelhamento da condição sensível da hierarquização dos sentidos do corpo social medieval europeu é percebido por Certeau na escrita de Léry,

Mas se as imagens e as vozes, restos transformados da festa medieval, estão igualmente associados ao prazer e formam juntos um teatro estético, por detrás do qual se mantém (preservadas pela “escrita”) as vontades fundadoras de operações e de julgamentos sobre as próprias coisas, o quadro se desdobra segundo uma oposição entre o visto e o ouvido. À maneira das imagens que se movem nos livros, conforme as olhemos com óculos verdes ou vermelhos, o selvagem se desloca, no mesmo quadro, conforme dependa do olho ou do ouvido.212

À investigação de Certeau, quanto à estetização do selvagem pela escrita conquistadora, em que o olho e o ouvido estão a serviço de uma “descoberta do mundo”,213

209 Id. 210 CERTEAU, 2010, p. 230. 211 Id. 212 CERTEAU, 2010, p. 230. 213 Id.

que transparece no relato de Léry na cena da dança e no canto dos selvagens, poderíamos acrescentar ainda outra percepção, que abre uma dimensão sensível, além do visto e do escutado (do olho e do ouvido): a dimensão sensível do espaço que se estabelece com o desejo da proximidade física, ou seja, a dimensão de alteridade. O desejo de Léry de aproximação tátil e sua concretização não revelaria um sentido de contaminação da cultura indígena durante uma fagulha temporal desse encontro? Um instante histórico de alteridade?

O corpo cósmico214 dos Tupinambá contamina Léry durante sua aproximação corporal

e de seus companheiros à dança e ao canto dos Tupinambá, que desorganiza o corpo controlado, normatizado de Léry, e o faz viver a des-hierarquização dos sentidos. O corpo cósmico dos Tupinambá abre a vivência do corpo cósmico em Léry, agora sujeito da história e não escritor dela. Esse é o momento da alteridade indígena, no qual a voz do índio é escutada, segundo Certeau. Mas aqui é mais que isso: o corpo cósmico não controlado pelas dicotomias razão-sensação e cultura-natureza, é quem fala, ou melhor, o corpo e o mundo criam, juntos, uma linguagem.

Vinte anos depois, Léry, recomposto, pode racionalizar e escrever a experiência desde a razão, mas deixou escapar um gosto inesquecível pelo maravilhamento do êxtase da experiência do corpo em condição sensível não hierarquizada da cultura indígena.215 Para nós, leitores, Léry oferece um legado do maravilhamento do qual podemos supor a organização espacial e temporal de uma multidão de corpos nus dançando, mulheres e homens separados e simultaneamente unidos pelo canto e pelos urros, em que não há maestro, o que poderia supor caos. Mas, o que acontece é justamente o contrário, há ordem coletiva. E, por um instante, novamente, leitores ocidentais que somos, podemos desfrutar da alteridade indígena, da cultura Tupinambá na qual corpo e mundo criam juntos, uma linguagem.

A nudez, a partir da primeira viagem de Colombo, adquire conotações que remetem a velhos mitos, que se transformam de acordo com o território recém descoberto:

Resurge o mito bíblico do éden materializado em suas terras novas e localizado geralmente em uma ilha ; dito mito reforçado por sua versão helênica, o da Idade Dourada, engendra uma série de variantes, entre as que se conta a da Fonte da Eterna Juventude, localizada também em uma suposta ilha, a chamada Bimini(Flórida) por Juan Ponce de León.216

214 O conceito de corpo cósmico desenvolvido no capítulo 1, dessa dissertação, trata a alteridade indígena segundo o conceito do perspectivismo ameríndio do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.

215 VIVEIROS DE CASTRO, 2011.

216 GLANTZ, Margot. El cuerpo inscrito y el texto escrito o La desnudez como naufrágio. Disponível em: <bib.cervantesvirtual.com/serlet/SirveObras/glantz/00364930978847373085635/p0000001.htm#_o_.>. Acesso em: 5 dez. 2013.

A nudez edênica pressupõe a inocência do mito bíblico de Adão e Eva, a inocência do paraíso, que remete à idéia de imortalidade e de beleza.217 Nos relatos de viagem, aparece outra dimensão da nudez, a imagem do naufrago nu:

A polarização absoluta da nudez se encontra no naufrágio, entendido como a perda provisória da territorialidade e da civilização; figurada, a primeira pela destruição dos barcos, e, a segunda, pela carência de vestimenta. A forma expressa do mito simboliza a caída ou perda do Paraíso e a inocência, ainda, a deserotização do corpo, livrado da imtempérie e da fome (GLANTZ, p. 62-3) .

No relato escrito de Colombo, dando a conhecer a existência e a descrição do primeiro encontro com o Novo Mundo, com o outro desconhecido, seu olhar218 dirige-se para a terra “quer provar que Vê mesmo o continente, e não outra ilha”.219 Dando preferência à terra e não aos homens, “Colombo fala dos homens que vê unicamente porque estes, afinal, fazem parte da paisagem. Suas menções aos habitantes das ilhas aparecem sempre no meio das anotações da Natureza, em algum lugar ente os pássaros e as aves.”220 A cultura material não o atrai:

Sua atitude em relação à esta outra cultura material é, na melhor das hipóteses, a de um colecionador de curiosidades, e nunca vem acompanhada de uma tentativa de compreender; observando pela primeira vez, as construções em alvenaria (durante a quarta viagem, na costa de Honduras) contenta-se em ordenar que se quebre delas um pedaço, para guardar como lembrança (TODOROV, 2011, p. 50).

Colombo estetiza a Natureza quando estetiza o corpo indígena. Esta é a imagem que Colombo fornece dos índios: “Eram todos muito bem feitos, belíssimos de corpo e muito harmoniosos de rosto (11.10.1492). Eram todos de boa estatura, gente muito bonita (13.10.1492). Eram os mais belos homens e as mais belas mulheres que tinham encontrado então (16.12,1492).”221

Tanto em Léry como em Colombo, o que é significativo na primeira referência aos índios é a nudez, ou a falta de vestimentas, elemento fundamental da cultura indígena. Colombo representa a nudez do índio como inferioridade cultural, caracteriza-os pela ausência de costumes, ritos e religião. Léry, como inocência e comportamento selvagem,

217 Ibid., 2013, p. 62-3. 218 TODOROV, 2011, p. 49. 219 Ibid., 2011, p. 19. 220 Ibid., 2011, p. 47. 221 TODOROV, 2011, p. 50.

alegoriza o Tupinambá, estetizando a nudez. Diferente de Colombo, Léry se importa em conhecer a cultura tupi, mas sob a perspectiva de uma Europa civilizada e cristã, o que, no fim, dá no mesmo: os dois relatores creem na superioridade de sua cultura. Ainda que, segundo Lévi- Strauss, o olhar de Léry seja o primeiro olhar etnográfico sobre o indígena.

CAPÍTULO 3

3 ANTROPOFAGIAS – A ESCRITA, UM RITUAL ANTROPOFÁGICO