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Figura 9: L’Enfer au Brésil, avec bradypes et poisons volants. Fonte: LÉRY, 2007, p. 211.

As duas hipóteses, América Paraíso e América Inferno, coexistem no discurso do relato de Léry sobre o conhecimento do Novo Mundo com a mesma intensidade. Revelam a instabilidade na relação de assimilação europeia na significação do encontro com esse mundo americano. A escrita desenvolve a construção simbólica, exótica e ambígua, desse mundo outro, porém, a visão protestante aporta um sentido religioso novo: a relação huguenote e selvage, que é apoiada pela ilustração do Inferno Americano de Bry na Histoire 266 (fig. 9).

Cañizares-Esguerra267 reconstrói a questão da demonização na América sob a perspectiva de uma cosmovisão demonológica. Para ele, o discurso demonológico é atrelado a sua conexão com a colonização da América. Cañizares-Esguerra aponta as semelhanças e as diferenças entre católicos e puritanos268 na crença de que o Novo Mundo é o reduto do demônio, tomando o devido cuidado de não cair em anacronismos, utilizando essas categorias reducionistas, “pois existiam muitas correntes na denominada corrente puritana ortodoxa (e mais variações ainda nos extremos do movimento da Reforma)”.269

O processo de demonização que ele sugere alcançou seu zenit no século XVII e aconteceu, simultaneamente, à condição de terra edênica desde a descoberta. O centro de interesse do autor, nesse texto, é a diferença ontológica entre América Latina e América do Norte, talvez originada na historiografia da colonização que separa essas duas histórias, ou seja, a diferença cultural e a do desenvolvimento. Contudo, o que nos interessou no texto foi o que ele apontou de comum e de diferente entre a visão católica e a protestante.

O caráter edênico do Novo Mundo – já percebido por Sérgio Buarque de Holanda –, a América como o jardim do Éden descoberto, aparece com os espanhóis: é o mito do Paraíso perdido do qual, de dentro da terra, saem seus frutos, o ouro e a prata. Essa visão edênica, ao longo do tempo, se transformará e a América vai se transmutando em purgatório, onde o homem branco vem sofrer (uma penitência para o cristão). Na Europa, essas imagens se alternam: a possibilidade do Paraíso e a possibilidade do Inferno. Esse continente, ao mesmo tempo que cura traz também uma tentação demoníaca – por exemplo, a cobiça do ouro pela qual os homens se desviam da verdadeira riqueza, que é a produção Agrícola da cana-de- açúcar.

266 LÉRY, 2007, p. 210 (cf.: versão em francês: LÉRY, 1994, p. 383).

267 CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Católicos e puritanos en la colonización de América. México: Fundación Jorge Juan; Marcial Pons História, 2008.

268 Ibid., 2008, p. 33: “Os puritanos eram os seguidores de Calvino (1509-1564), enquanto os espanhóis eram incondicionalmente defensores do papa e liders da Contra-Reforma. Estas duas cominidades desenvolveram, porconseguinte, visões muito diferentes sobre Deus, a salvação, a organização eclesiástica e a conversão.” 269 Ibid., 2008, p. 36.

O inimigo demoníaco para os puritanos são: os índios idólatras, os papistas (ou católicos), os fenômenos naturais de destruição (as tormentas que levam ao naufrágio são um exemplo), os dissidentes religiosos e a paisagem. Na literatura viática, o viajante recebia a extrema-unção antes de entrar no navio, portanto, o naufrágio era uma obra, uma força do demônio e, neste caso, a natureza não seria apenas a morada do demônio, mas também seu instrumento. Por isso, a natureza tinha de ser exorcizada.

Do ponto de vista dos católicos, os inimigos são: os índios, a natureza, os colonos aliados ao demônio (os dissidentes religiosos), os corsários, que roubam as riquezas espanholas, os falsos místicos, os escravos africanos (porque manipulam os sincretismos, instrumento do diabo para desviar os católicos de Deus). Para os puritanos, que são calvinistas, a conversão ou a catequese dos indígenas se dá pela palavra: o convertido tem sempre que continuar lutando por sua fé. Como os indígenas são “inconstantes na fé” eles nunca serão convertidos, não serão, portanto, tocados pela graça.

Tanto católicos quanto puritanos usarão a recusa à fé, pelos indígenas, para justificar a matança – a Guerra justa. Genocídio? Para Cañizares-Esguerra, a América já era demonizada no momento da descoberta. Sua posição metodológica é inovadora na medida em que aproxima as duas experiências, na conquista e na colonização. A demonização da América é tratada como uma luta de exorcismo na conquista e na colonização, prática comum aos povos que têm a Bíblia como base da religião. Luta para erradicar o demônio e a idolatria da terra. Num primeiro momento, as armas da América contra o demônio seriam a “espada do espírito”, que não é um ato físico, mas um ato (de violência) da palavra. E, num segundo momento, um ato físico, a matabilidade daquele que não quer se converter. À terra que estava usurpada pelo demônio era preciso investir na reconquista, portanto, a catequse contém sentido e ação de Cruzada, o Espírito de Cruzada.

Tanto Canaã quanto a América foram dadas por direito ao seu povo eleito, o povo eleito de Deus, no caso, os europeus. A visao cosmológica do europeu legitima a propriedade do mundo: o mundo é um só e pertence a Deus. Satã está ursupando as terras do Novo Mundo com a ajuda da inocência dos índios. Para os jesuítas, essa idéia de inocência é a condição civilizatória da página em branco, ou seja, não são civilizados.

Na figura 9, que faz parte das ilustrações da Histoire, está representada a demonização do Brasil. É esse encontro entre o selvagem e o protestante huguenote, que constitui o verdadeiro sujeito da gravura infernal representada por Théodore de Bry. Essa cena se apresenta na perspectiva renascentista da hierarquização do espaço do ponto de fuga, que leva o olhar do espectador para a imagem principal. No primeiro plano do quadro, três

personagens escapam da tormenta demoníaca, como por milagre, dos outros autores da cena, que se localizam numa dimensão da perspectiva espacial de fundo para a cena principal.

O fundo da composição é ilustrado por cenas nas quais uma legião de demônios infernizam os selvagens. O interessante é que esses demônios são projeções das representações religiosas e do imaginário europeu do bestiário fantástico medieval: representando a luxúria, a gula e o orgulho. Os sujeitos da cena principal representam o mundo objetivo da salvação Reformada, e os sujeitos da cena secundária representam a visão do mundo subjetivo do sofrimento e aflição dos selvagens atormentados pelo demônio por não conhecerem a religião reformada e, portanto, não podem separar o real do surreal.

Voltando à análise de Lestringant, sobre a imagem do primeiro plano, sua composição apresenta três personagens. Dois deles são barbudos e estão vestidos – os europeus – e, por seu comportamento gestual e suas vestimentas, tudo indica que são pastores ou gentils- hommes. Nas palavras de Lestringant:

Em frente à eles está um indígena nu, temporáriamente livre dos assaltos do diabo, parecendo estar tomado por uma viva inquietude. O braço e a perna direita elevados, ele se precipita ao encontro dos europeus, em seu direcionamento, parece, existir um pedido. Em resposta a esses instantes de urgência, um dos gentilshommes eleva gentilmente o dedo indicador direito em direção ao céu numa attitude de pregação, ao passo que seu companheiro, que volta as costas ao espectador, é incapaz de reprimir um gesto de pavor face ao espetáculo diabólico que se desvenda à ele. 270

A reciprocidade do texto de Léry com a gravura de de Bry fica evidente na passagem de seu relato sobre a religião dos Tupinambá271 e o estado infernal do Brasil:

Cumpre notar que essa pobre gente é afligida durante a vida por esse espítito maligno a quem também chamam Kaagerre. Muitas vezes como pudemos presenciar, sentindo-se atormentados, exclamavam subitamente enraivecidos: “Defendei-nos de Ainhan que nos espanca”. E afirmavam que o viam realmente ou sob forma de quadrúpede, ou de uma ave ou de qualquer outra estranha figura. Admiravam-se muito quando lhes dizíamos que não éramos atormentados pelo espírito maligno e que isso devíamos ao Deus de quem tanto lhes falávamos, pois, sendo muito mais forte que Anhian, lhe proibia fazer-nos mal. E acontecia que, sentindo-se amedrontados, prometiam crer em Deus. Mas passado o perigo zombavam do santo, como se diz no provérbio, e não se recordavam mais de suas promessas.272

270 LESTRINGANT, 2004, p. 24.

271 LÉRY, 2007, p. 207. 272 Id.

A intenção de catequese protestante que Léry opera como pastor está presente no texto. Qual a diferença entre a operação reformada e a católica? Que a lição de catecismo presente no texto é infrutífera não é a visão somente huguenote, a católica também afirma a inconstância da alma selvage,273 ou o selvagem é móvel. O tema da inconstância ameríndia no Brasil, que tem seus primórdios no exemplo dos Tupinambá, fundado nas observações dos primeiros catequistas que identificaram a “deficiência da vontade” e a “superficialidade de sentimentos” como principais impedimentos “à conversão indígena”.274 Para Viveiros de Castro, essa inconstância:

[...] não foi registrada apenas para as coisas da fé. Ela passou na verdade, a ser um traço definidor do caráter ameríndio, consolidando-se como um dos estereótipos do imaginário nacional: o índio mau-converso que, à primeira oportunidade, manda Deus, enxada e roupas ao diabo, retornando feliz à selva, presa de um atavismo incurável. A inconstância é uma equação selvage.275

A catequese protestante no Brasil não aconteceu fisicamente, ela se colocou na dimensão retórica, pois não estava atrelada à conquista política e econômica do século XVI – essa conquista se deu somente no âmbito católico francês, no século seguinte, no Maranhão. Na dimensão retórica, a salvação protestante “privilegia a relação interindividual em lugar de uma relação institucional, preferindo a comunicação direta das consciências à primazia do corpo eclesiástico.”276

A questão é a conversão pela fé e não pela magia do verbo divino utilizada como exorcismo, que é a pedagogia católica.277 A pedagogia protestante é pela palavra, que trará a consciência através da fé, da crença no Deus cristão e pela graça.

A estratégia “assimilação cultural” utilizada tanto no domínio português quanto no francês, com suas características distintas. O primeiro, separando e incluindo o índio no ambiente católico das comunidades jesuítas. O Segundo, incluindo os excluídos da sociedade francesa, no ambiente indígena. A retórica protestante sugere a construção progressiva e a legitimação da exclusão e da condição de matabilidade278 a esses corpos índios e mestiços? Não seria o Novo Mundo um espaço de exceção? Mundo sem lei, sem rei, sem propriedade e sem escrita? Ou seja, espaço em que as dimensões da construção européia do imaginário sob a

273 VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 186. 274 Ibid., 2011, p. 185-6. 275 Ibid., 2011, p. 186-7. 276 LESTRINGANT, 2004, p. 25. 277 Ibid., 2004, p. 30-31.

condição indígena do Novo Mundo sem cultura e, portanto, selvagem, cria a necessidadede dominar e domesticar o índio para tranformá-lo no Mesmo. E transformar o índio no Mesmo não seria devorá-lo?

3.5 A CRIAÇÃO DO OUTRO: UMA PERSPECTIVA CONTEMPORÂNEA SOBRE A