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A operação da catequese do povo Tupinambá se deu de modos distintos na tentativa portuguesa, e francesa, durante os encontros desses europeus com os Tupinambá, no século XVI. As ações de controle, quanto à domesticação do corpo selvagem na prática católica dos portugueses, passam pela pedagogia: a separação das crianças índias da sua mãe e do ambiente da sua cultura. Uma das estratégias da catequização portuguesa é extipar os “maus costumes” tirando os filhos das índias, ainda pequenos, do convívio com sua cultura, para introduzi-los na doutrina cristã e no que eram considerados “bons costumes” para a cultura européia.253 Na prática francesa, o controle do corpo selvagem passa pelo “fenômeno do endotismo francês”.254

O endotismo foi a prática da catequese francesa católica:

[…] de um modo geral, as referências aos franceses que viviam entre os selvagens são muito frequentes nos primeiros escritos sobre o Brasil, assim como nos relatos de missões Jesuítas, narrativas de expedições, missivas, entre outros. Uma prática corrente na época consistia em abandonar, em plena vida selvagem, meninos, provavelmente recolhidos nos portos da Normandia, para que se integrassem às sociedades indígenas, cujos costumes, dizem os rumores, compartilhavam inteiramente, do casamento ao canibalismo. Uma vez integrados às tribos Tupinambá aliadas, esses truchements estavam aptos a servir de intérpretes para os marinheiros franceses. Os testemunhos mais eloquentes referem-se, obviamente, às regiões que conheceram uma presença francesa mais forte, como o Rio de Janeiro, e, meio século mais tarde, o Maranhão.255

252 AGAMBEN, 2009, p. 39.

253 VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 189.

254 O termo “endotismo”, que designa, no contexto em questão, o fenômeno de penetração dos franceses no tecido colonial indígena, é empregado por Frank Lestrigant num exelente artigo intitulado “Lês débuts de la poésie latine au Brésil: le De Rebus Gestis Mendi de Saa (1563)”, em De Virgile à Jacob Balde. Hommageà

Mme Andreé Thill. Etudes recuiellies par Gerard Freyburger, Publication du Centre de Rechercher et d Etudes Rhénanes, Université de Haute-Alsace (diffusion: Les Belles Lettres), 1987, p. 231-235. LESTRINGANT, apud Daher, O Brasil Francês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 146.

255 DAHER, Andrea. O Brasil francês. As singularidades da França equinoctial – 1612-1615. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 143.

Segundo Daher, uma das primeiras narrativas francesas escritas sobre a existência dos truchements256 no meio Tupinambá é a do protestante Jean de Léry, em seu relato Viagem à Terra do Brasil:

Com pesar sou, forçado a reconhecer aqui que alguns intérpretes normandos, residentes há vários anos no país, tanto se adaptaram aos costumes bestiais dos selvagens que, vivendo como ateus, não só se poluíam em toda espécie de impudicías com as mulheres selvagens mas ainda excediam os nativos em desumanidade, vangloriando-se mesmo de haver morto e comido prisioneiros. E conheci um rapazote de treze anos que copulava com mulheres.257

O papel de inserção dos truchements no tecido social dos Tupinambá tinha como primeiro objetivo comprender a língua e a assimilação da cultura indígena, para estabelecer e garantir eficácia nas primeiras relações comerciais. Essa política social do escambo foi a primeira estratégia implantada para a exploração comercial e a do território, que preparou a segunda, a estratégia teológica católica da colonização francesa no Maranhão.

Em outras palavras, nessa estratégia de poder da relação “franco-tupi”,258 o que chama a atenção é a violência imposta aos corpos das crianças francesas raptadas nos portos da Normandia, arrancadas de seu ambiente cultural e inseridas em outro totalmente desconhecido. O relato de Léry já deixa transparecer que essa prática é natural e, mais, aponta que dessa prática surge o fenômeno da “mestiçagem”. Léry tem dois limites: as relações com as índias e a antropofagia:

Trata-se aqui de uma condenação moral do “ensauvagement” dos franceses, o que não impediu, contudo, o próprio Léry de “ acomodar-se à beira-mar” ao lado dos índios, de frequenta-los e de comer e beber entre os selvagens…Certas passagens das cartas de relatos e religiosos portugueses concordam, de fato, com o parecer do huguenote sobre o caráter “ateísta” dessas relações. De maneira geral, as críticas denunciavam a facilidade com a qual os franceses “amancebavam-se “com as índias. É bem verdade que, para os missionários da Companhia de Jesus, a reação contra a mestiçagem incontrolável baseia-se no temor de seu caráter não somente herético mas, sobretudo, velado.259

Apresentamos, em linhas gerais, a catequese católica portuguesa e francesa. Adentraremos agora na intenção da catequese francesa protestante, que emerge da obra de

256 Franceses normandos inseridos no tecido indígena para servirem de interprétes entre os franceses e os tupinambá.

257 LÉRY, 2007, p. 201. 258 DAHER, 2007, p. 144. 259 Id.

Léry, segundo Lestringant.260 A guerra entre Católicos e Protestantes, nos finais do século XVI, que se estendeu ao Novo Mundo, configurou-se com maior ênfase no ambito das idéias do que no da presença física.261 Foi uma luta protestante por influência moral e intelectual na dimensão da assimilação européia diante da experiência da descoberta e expansão ao Novo Mundo.262 A produção de Léry fez parte da produção de um pequeno grupo de textos interrelacionados, que ilustram diferentes significados adquiridos pela Europa, que competiram e cooperaram na interpretação protestante do Novo Mundo263 em confronto aos textos católicos franceses e à violência católica dos textos espanhóis na América.

No livro de Léry, a composição do texto com imagens de gravuras, de Théodore de Bry, em 1592, sobre a vida Tupinambá não é apenas ilustração. As imagens compõem, com o texto, a conotação protestante na interpretação do Novo Mundo. Lestringant, quando parte da análise de uma dessas imagens em Le Huguenot et Le Sauvage – a gravura L’Enfer americain, ou les Brésiliens persecutes par le demon Aygnam –,264 observa, que, ela também, ocupa lugar primordial na controvérsia da questão da interpretação da natureza das novas Índias, a América, um vestígio do Paraíso perdido, e a América, domínio do Inferno:

De la découverte au siècle des Lumiéres, et de Colombe à Buffon, ce continent ignore par l’Europe durant des millénaires fut tour à tour interprété comme un vestige d’Eden perdu, dont les hôts avaient conservé l’idéale nudité, et comme une antichambre de l’Enfer, oú resident les vices innombrables, où le cannibalisme même était sanctifié par la religion, oú la Nature, enfin, se montrait plus faible dans ses productions.265

260 LESTRINGANT, Frank. Le huguenote coloniale, en France, au temps dês guerres de Religion (1555-

1589). Troisièe édition revue et augmentée. Geneve: Librarrie Droz, 2004.

261 WHATLEY, Janet. Une revêrence réciproque: Huguenot writing on the New World. Copyright of Toronto quaterterly of property of University of Toronto Press Quarterly, volume 57, number 2, winter, 1987/8, pp. 271 - 272, nota 224.

262 WHATLEY, 1977/8, p. 271. 263 Ibid., 1977/8, p. 272.

264 Theodore de Bry, Americae Tertia Pars, memorabilem provinciae Brasiliae historiam continents, Francfort, Theodore d Bry, 1592, f. 223: Aygnan Cacodaemon Bárbaros vexat. Apud LESTRINGANT, 2004, p. 19, nota. 265 LESTRINGANT, 2004, p. 21.